terça-feira, outubro 25, 2005

Blogantologia(s) II - (10): Comment ils sont toujours gais, les portugais

Publicado originalmente no Blogue-fora-nada, post de 27 Outubro 2004 >
Blogantologia(s) - XX: O exercício ilegal da medicina


Olho do alto,
Do mais alto edifício da Lisboa fontista,
O marquês in su situ,
O dito marquês de Pombal,
Le plus fameux marquis du Portugal:
Estatuado,
Bem apessoado,
Em pose de Estado,
Mas sem insígnias de general:
Apeado,
Sem burro, mula ou cavalo
Para se poder passear
Nas avenidas novas,
Largas, burguesas.

Consulto o guia turístico do pós-25 de Abril
E vejo que lhe falta, da polícia oitocentista,
O cassetete e o apito,
Mas ele está bem assim,
Acima do Rei,
Maçon e republicano,
Domando o leão,
Dominando a cidade,
Serena, sibilina,
Com o Terreiro do Paço
E o Rio Tejo, o mundo, ao fundo.
- Comment ils sont toujours gais, les portugais,
Diz a guia, do vinte e sete,
Que vai da Graça aos Prazeseres
Da boa mesa e da cama.
E que engoliu uma cassete
De audio e de dados.


Olho-o de alto,
Ao Marquês e ao seu leão,
Sem desprezo nem paixão,
Com o tal olhar sociológico,
Profundo,
Perscrutador,
Que me ensinou o meu professor
De métodos e técnicas
De investigação:
- Saibam escutar Deus,
E ponham a falar o pecador
.
Deus e a sua corte,
Mais os grandes deste mundo.

Mas só agora reparo
No meu pequeno problema
Do foro oftalmológico.
Não é uma questão de vida ou de morte,
Mas apenas de incapacidade:
Estou com falta de perspectiva,
Não tenho o súbito ângulo de visão,
Nem a suficiente lucidez,
Luminosa, altiva,
Para descer do pedestal
E caminhar, erecto e sozinho,
Pela Avenida, larga, da Liberdade.

O que vale que p'ra baixo
Todos os santos ajudam:
Não, não sou aanto pederasta nem pedófilo,
Sou o Intendente,
Do Largo do mesmo nome,
Pina Manique,
Um seu criado para o servir.
E eu, cá por mim,
Prezo-me de ser um gajo decente,
Não fumo, não bebo, não conspiro,
Sou um anónimo súbdito leal,
Respeitador da lei e da grei:
Je viens du Siècle du Son et Lumière,
Mas sou daqui natural,
Primata social,
De sangue quente,
Português, discreto,
Cidadão avant la lettre,
Jacobino, às vezes,
Maçónico,
Clandestino,
E hoje liberal dos sete costados,
Como o Espada, o Pacheco ou o Barreto;
Por azar, nascido no Estado Novo,
Educado em escola do Conde de Ferreira,
Que antes de conde era visconde,
Como antes tinha sido barão e cavaleiro,
E antes de tudo era o José Ferreira,
Mascido em Gondomar,
Médio camponês, maior roceiro e negreiro,
Filantropo, benemérito,
Apoiante da causa da Dona Maria,
E que eu saiba nunca foi setembrista
Ou capitalista manufactureiro;
Mas que deixou o remanescente
Da sua imensa fortuna
Para fazer a escolinha
Para o menino e a menina,
A escolinha da minha infância;
E ainda, por duplo azar o meu,
Ex-combatente da guerra colonial,
No tarrafe do Rio Geba
E nas bolanhas da Guiné,
Terra de azenegues e de negros;
E ainda por cima
Contribuinte ilíquido,
Cibernauta, blogador,
Com sintomas de burnout,
Ao virar da esquina do século vinte e um.
Desculpe, Senhor Intendente,
Excelência,
Mas não reparei na velhinha
Com o cão pela trela,
Na passagem de peões.
Vota no homem,
Que é bom chefe de família
E benfiquista.

Enfim, andei como tu,
Pobre marquês no ocaso dos dias,
Grande marquês o resto do ano,
Uma vida inteira
A exercer ilegalmente
O mister da existência,
O duro ofício de viver:
A enterrar os mortos
E a cuidar dos vivos,
A destruir o passado,
A construir o presente
E a desenhar o futuro.
Só não matei de morte matada,
Por objecção de consciência.

E afinal,
Alguém me passou um atestado
De robustez física
Para poder circular
Entre o núcleo duro
Da insanidade mental
Da mítica cidade de Ulisses:
Hoje faz parte da blogosfera,
A cidade gravada em cobre por Braúnio
Em Civitates Orbis Terrarum.
Não sei como deixei escapar
Esta exposição
No Centro Cultural de Belém,
Diz o Intendente Pina Manique,
Agora caído em desgraça.

Entre reclusos e negros,
Mouros cativos
E filósfosos esotéricos,
Judeus sefarditas
E cristãos velhos,
Marinheiros e mercadores,
Batedores, dançarinos e cantadores de fado,
Portadores do virús HIV,
Operários sinistrados
Das obras do convento de Mafra
E poetas alcoolizados
No Martinho da Arcádia,
Pederastas e prefeitos
Dos Reais Colégios,
Passei pela consulta do morbo gálico
No Hospital Real de Todos os Santos.
Estava semi-destruído,
Vinte anos depois da Grande Peste
(De que Deus nos livre!).

Afinal, o meu mal era português,
Disse-me o físico,
De serviço ao banco de urgência.
Era já velho, trinta anos,
A cara coberta de bexigas
Por causa da varíola
Ou de algum esquentamento mal curado
- E aos trinta anos, senhor,
Quem não é médico é louco,
Ameaçou-me o maqueiro,
Mal barbeado,
Com ar de galicado
E chulo do Bairro Alto.
Dei-me, o físico, alguns unguentos e sedativos
E um estranho papel com uma receita:
- Senhor real boticário,
É completamente inútil
Este exercício ilegal da medicina,
O mal do doente é português
E quiçá irremediável e universal;
Do coração a sangrar não há sinais,
Dê-se conhecimento ao físico-mor
Para os devidos efeitos
E procedimentos habituais!.

E eu a pensar que o meu mal
Era espanhol,
Quando conquistador no Novo Mundo;
Ou francês,
Da rive gauche, que chique!
Ou veranente italiano,
Florentino,
Católico apostólico romano,
Genovês,
Veneziano...
Não, o meu mal é português,
Irremediavelmente português
Em Goa, Damão e Dio;
Em Cabo Verde ou na Guiné;
Em Angola ou Moçambique,
No Minho ou em Timor.
Tirei a sina na feira da ladra
E a sentença ficou dada:
- Pobrete mas alegrete!


Hoje a cidade está vazia
À hora de ponta
E já não se dispensam mais
Cuidados paliativos.
Facto trivial,
Uma criança é abandonada
Na Roda da Misericórdia,
E um turista acidental
Espreita
À porta, fechada, da cervejaria Trindade,
Enquanto El-Rei, nosso senhor,
No Paço se deita...
Sangra de saúde, compulsivo,
Deixando o seu ministro aflito,
Entre o patíbulo dos Távoras
E a Real Fábrica das Sedas,
Ali, às Amoreiras.
Nas paredes do hospital da cidade
Alguém escreveu um grafito
Jocoso, quiçá subversivo:
- Meu Caro Marquês, em Lisboa...
Nem sangria má nem purga boa!.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Blogantologia(s) II - (9): E na hora da nossa morte, amen

Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em 3 de Abril de 2005, sob o post > Blogantologia(s) - XXVI: Na hora da nossa morte


Mark Twain comentou um dia que a notícia da sua morte tinha sido um exagero... A morte é (e será) sempre excessiva. E mais excessivo ainda tudo o que se disser sobre ela. Por mim, não consegui evitar mandar, a meus amigos, algumas dos meus excessos sobre este momento que nos tocou a todos, de uma maneira ou de outra...

É a minha maneira pessoalíssima de homenagear um homem de paz que, como alguém disse, estava longe de ser o meu papa preferido. Espero bem não ferir, com isto, os sentimentos cristãos (ou até mais: católicos apostólicos romanos) dos amigos (cristãos, católicos ou outros) da minha e-mailing list.


Enoja-me
O espectáculo da morte em directo,
Transmitida pela televisão,
Em todos os canais,
Com direito a uma caneca de cerveja
E um balde de pipocas.
Como no cinema do meu bairro.

A morte de um santo homem de igreja,
De qualquer homem,
Mais justo ou menos justo,
Mais recto ou menos recto,
Cristão, mouro ou judeu,
Budista, hindu ou animista,
Agnóstico ou ateu,
Deveria merecer discrição
E compaixão.
Não este espectáculo impúdico.
Não este serviço público.

Mas estes são os tempos,
Indecorosos,
Em que vivemos,
A contragosto, a custo,
Com o espanto a escancarar as nossas bocas.
Este é o tempo da mensagem/massagem,
Do circo mediático,
Da manipulação.
Tempos também vertiginosos,
Que são os da redundância da comunicação,
Do enfático,
Da função fática,
Do ruído e da sobre-exposição.
Porque televiso, logo existo.

Não sou crente
No sentido etimológico do termo
(O que dá algo como certo, verdadeiro ou confiável),
Mas peço aos deuses,
Aos do sul e aos do norte
(Para ficar bem com todos!):
- Por favor, não sejam tão belicosos,
E tenham pena de nós!
Não sejam tão proactivos,
Sejam simples agentes passivos,
Na hora da nossa morte,
No silêncio da nossa morte,
No minuto derradeiro da nossa vida.
E que essa seja a hora da boa morte.
Por favor, deixem-nos morrer em paz,
Desliguem o botão da máquina
Depois de fazermos as contas
Com a terra, com a vida
E com o tudo o mais que é humano,
Porque, como diz o cante
Do meu irmão alentejano,
"Eu sou devedor à terra
E a terra me está devendo,
Ela paga-me em vida
E eu pago à terra em morrendo".

Só não sei é se vocês,
Celestes criaturas,
Distantes deuses do Olimpo,
Senhores do além,
São capazes de ser compreensivos
E ter pena de alguém,
Dos comuns mortais.

A questão é que
Já não se pode mais
Ouvir o silêncio,
Em estado puro,
Nos novos templos,
Que são os centros comerciais
Do mercado globalizado.
O mundo é hoje um gigantesco shopping,
Com um écrã gigante
Onde tudo é reduzido ao estatuto de mercadoria.

Em Epidauro
Passa hoje uma autoestrada
Da informação e do conhecimento;
Em Epidauro e noutros sítios
Do império e da sua paz tão aclamada,
Já não há lugar para Asclépio
Aparecer-nos em sonhos
E curar-nos das doenças delirantes,
Psicossomáticas e civilizacionais,
De que sofremos,
Nós, o povo dos turistas errantes.
Em Epidauro, na Grécia Antiga,
Ficaram os derradeiros heróis homéricos,
Pisados pelos cavalos dos godos
E dos outros bárbaros,
Que são os tretatvós dos nossos tretavós...

Não invocarei os deuses, em vão,
Nesta hora, neste dia, neste ano,
Em que os feios abutres
Pousam sobre o cadáver
Do velho e mediático globetrotter,
Que não morreu às mãos dos seus assassinos
Em Fátima ou no Vaticano,
Mas pela boca do teleponto,no telejornal.
Por que deles, os abutres, sopram os miasmas
Da irrisão e da loucura
Que nos levam à imitação divina,
Doença essa que julgo não ter cura.

Hoje morreste duplamente,
Karol Wojtyla, João Paulo, o segundo:
Confiscaram o teu corpo,
A tua imagem, a tua identidade,
O teu gesto, a tua voz,
Socializaram o espectáculo da tua morte,
Decretaram o luto em todo o planeta.
E quando o Papa, ou o Faraó, ou o Imperador morre,
Também todos nós,
Seus súbditos,
Morremos, um pouco.
E os nossos mortos queridos
Voltam a morrer,
Pela segunda vez,
Ajudando-nos talvez com isso
A fazer melhor o luto.

Posso talvez não te olhar com ternura.
Ou até mesmo com simpatia.
Porque não tive o privilégio de te conhecer,
Nem de privar contigo,
Como o fizeram os grandes deste mundo.
Mas admiro a tua fibra de lutador
E a tua resistência à dor.
E a tua bonomia de pastor
E o teu papel de mensageiro da paz.
A verdade
É que nunca te ouvi falar com raiva.
Nem com ódio.
Nem com rancor.
Mesmo face à estupidez do mundo,
Ou à exibição fálica das máquinas do terror.
Nunca te ouvi dizer uma palavra excessiva
Sobre os que te queriam matar.
Ou que fizerem de ti um verdadeiro Papa pop-star.
Talvez isso seja santidade,
Ou ingenuidade,
Carisma ou simples telegenia,
Não sei.

Todavia inquieto-me,
Quando os teus concidadãos,
Os teus vizinhos,
Os teus servos,
Os teus rebanhos
E os teus animais de estimação,
O teu povo e o teu Deus,
E a tua poderosa corte de cardeais,
Bispos, padres, diáconos e acólitos,
Às vezes se calam,
Se refugiam na sombra da ambiguidade
Ou não são frontais
Ante o mal,
Ante as forças portentosas do mal,
E os dilemas pouco metafísicos
Da humanidade,
A humanidade concreta,
Os homens, as mulheres e as crianças
Que ocupam este planeta
Da Guiné-Bissau
À Nova Guiné.

Mas quem sou eu
Para te atirar a primeira pedra ?
Quantas vezes tu e eu,
Nós, os homens e as mulheres de boa vontade,
Nós e os nossos concidadãos,
Nós e os nossos amigos,
Nós e os nossos parentes,
Não protestámos,
Não contestámos,
Não nos insurgimos,
Não gritámos,
Preferindo encolher os ombros,
Ou tapar as bocas e os olhos,
Perante o inevitável,
Perante o indizível,
Perante o indescritível,
Perante o inenarrável,
Perante o inumano,
A solidez de pedra do sistema.

O problema é que o comboio passa
E os cães ladram,
Enquanto o filósofo fabrica o seu teorema
E o poeta faz um soneto,
Sobre o custo de vida
Que está pela hora da morte;
E o autarca faz um parque
Para os poetas-cegos
E um canil para os cães
Que ladram aos comboios,
Mesmo que nem uns nem outros
Saibam o sentido da marcha do comboio
E o porquê do ladrar dos cães,
Mas a aplaudam a bondade
Do projecto do autarca.

Não creio que
Esta seja a ordem natural
Das coisas.
Mesmo quando tu és pedra
E sobre essa pedra te edificaram
Um reino, o teu reino eclesial,
Que impressiona muitos dos comuns dos mortais
Pela sua solidez e perenidade.

Estive há dois anos
Na tua histórica Cracóvia,
Na tua Kadowice natal,
Karol Wojtyla,
João Paulo, o segundo,
Papa da Igreja Católica,
Agora defunto.
Não sei nada do Santo Espírito
Nem dos dogmas
De que a tua igreja é a guardiã,
Nem dos mistérios da tua fé,
Polaca e cristã,
Sólida como uma rocha de granito,
Mas que não seriam mistérios
Se o fossem da razão
Ou até tema de discussão
Na praça pública.

Sei pouco da tua vida,
Karol Wojtyla,
Com o teu ar tão adoravelmente tosco
Quanto humano
De lenhador
Ou de camponês,
Órfão de mãe,
Fã de Maria, a Virgem.
Procurei, e não em vão,
Da tua terra entender
Os sinais da história,
E tive pena e ao mesmo tempo orgulho
Da tua Polónia,
Terra mártir.
Dos teus mineiros de sal e de carvão.
E da tua virgem negra de Czestochowa.
E dos teus camponeses, ex-servos da gleba.
E dos teus operários dos estaleiros navais de Gdanz,
Ex-heróis de músculo e de aço do proletariado.
E do seu trabalho de Sísifo.

Mas foi do inferno de Auschwitz-Birkenau,
Bem ao pé da tua casa da infância,
Que trouxe o cheiro do mal absoluto,
Entranhado no meu corpo,
Dos pés à cabeça,
Corpo não de santo peregrino, como o teu,
Mas de vulgar turista.
O cheiro da morte total
Que hoje ainda nos persegue, aos vivos,
E que há-de perseguir-nos
Pelos séculos dos séculos.

Sei que pediste perdão aos judeus,
Ao povo judeu,
Não por este holocausto,
Mas por outros infernos,
E nisso foste digno.
Um outro sucessor teu,
Talvez Pedro, talvez Paulo,
Irá pedir perdão, em vida,
E com a conveniente solenidade,
Aos milhões de homens e mulheres,
Da tua aldeia global,
Que tu conhecias tão bem,
Da América à África e à Ásia,
Passando pela Europa e pela Oceania;
Aos homens e às mulheres que, depois de ti,
Irão morrer
Do HIV/Sida.
Sem fé.
Nem esperança.
Nem caridade.

Afinal, Karol Wojtyla,
É na hora da nossa morte
Que descobrimos que, na terra,
Há mais inferno do que céu.

sexta-feira, outubro 07, 2005

Blogantologia(s) II - (8): Quando os ventos sopram em Assuão

Originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada, em 14 Setembro 2004
Blogantologia(s) - XVIII: Quando os ventos sopram em Assuão é verão




Quando os ventos sopram em Assuão
É verão.
Aqui o verão é fértil,
O verão é fútil,
O verão é fértil em coisas fúteis.
O verão é fértil
No Vale do Nilo.
E fútil
Em Abu Simbel.

É no Verão
Que se come melancia
Ao quilo.
Enquanto amadurecem as tâmaras,
Vende-se a cultura a granel
Em folhas de falso papiro:
- Welcome, sejam bem vindos a Assuão!

Senhores do norte,
Em Agosto resiste-se melhor à melancolia
Do entardecer
Em África,
Bem como ao medo das escuras câmaras
Da morte,
Na linha do horizonte,
Abaixo do Trópico de Câncer.

Em Abu Simbel,
O verão é ostentação.
Eu prefiro
Os ostraca
Onde o operário
De Deir el-Medina
Falava da sua condição
De produtor, de artesão,
De construtor de túmulos,
De guardador de segredos,
De malandro e de grevista,
De salteador e de ladrão,
De violador de medos
E de barqueiro de Queronte.

Eu sempre achei que esta estação
Não rimava com poesia.
Mas eu não sou o Ramsés Segundo
Nem conheço o caminho irreversível
Para a imortalidade.

Aqui o verão é fértil
Em coisas fúteis
Como o escriba acocorado
Perante o espectáculo risível
Do mundo globalizado.

Na terra prometida do pão e do mel
Tenham cuidado, meus senhores,
Com os vegetais,
Bebam águas minerais,
Levem dimicina e ultralevure
Por causa dos desarranjos intestinais.
- E o vírus do Nilo ? É mortal ?
- Descanse, minha senhora,
Que o barco tem escolta policial.


Na Ilha Elefantina
Não há manicure,
Há apenas pessoas inúteis
Que adoram subir aos píncaros do verão.
De camelo.
- Sobretudo não tome uísque
Com gelo,

Pode ler-se numa tabuleta
À beira do lago Nasser.
- Meus senhores, estamos em África,
'Be careful'.


Aqui o verão é, por excelência,
O paraíso com o ocre
Como pano de fundo.
O verão é uma casa de adobe
E uma esteira no chão
E os altos muros do deserto
Estrangulando o fio de água da vida.
- Ah, o nascer e o pôr do sol,
Não esquecer de desfrutar
O deus-sol.

Porque o verão no Egipto
É a rosa do mundo.
O misticismo. A demência.
Os calores de Santa Teresa d’Ávila
Em trabalho de múltiplos orgasmos.
No Vale dos Reis.
E das Rainhas.
E dos Nobres.
Esqueçam, por favor,
A mastabas dos pobres:
- Não vêm nos roteiros turísticos!

O verão é o sexo distendido.
O músculo relaxado.
A alma em carne viva.
A praia. O creme Nívea.
O postal ilustrado.
A alegre promiscuidade
Dos cinco sentidos.
O Cairo em três dimensões.
O meu gin tónico com limão.
A carne em decomposição.
O desastre humanitário.
Mais ao fundo a Núbia, o Sudão.
Os dóceis núbios.
As volúpteis núbias.
A tragédia de Darfur.
A louca montanha russa.
O bazar.
A dança do ventre
Dançada por travestis, canastrões.
A mesquita de alabastro.
O mítico mar vermelho.
A Sagrada Família.
Jesus, Maria e José.
O burrinho puxando a nora.
A felicidade a preço de saldo.
O exotismo com molho de bechamel.
O oásis no deserto.
Todos os estereótipos do mundo.
- Tirem uma fotografia digital.
Da varanda do hotel Marriott.

Gostaria de apresentar uma reclamação,
Por escrito, ao senhor vizir:
- Eu estive em Abu Simbel
E experimentei as dificuldades
Da comunicação humana.

O verão é o Vale do Nilo
Um gigantesco falo
Que penetra, fundo,
A terra árida e seca
Da Mãe África.
Gretada, a terra, a carne.
- White women, carne branca.
I Egiptian man, fertility man.
Portugal ? Good, Luís Figo.


Do alto da mesquita de Najaf,
Mais acima no mapa do corpo humano,
Diz o guia, o nosso guia,
Com o coração sangrando
De dor
Pelos seus irmãos,
Xiitas, sunitas, ismaelistas;
Ou do alto das pirâmides de Sakara
Há um imã que te notifica
Por carta registada com aviso de recepção:
- Que a vida eterna te chama
E exige a mortificação, a mumificação.


Recebi hoje correio de Lisboa
Onde a fertilidade da futilidade
É agora um problema de saúde pública.
Um osso duro
De roer.
Tão duro como o granito de Assuão
Donde sopra o vento que modela
O rosto das esfinges.

De Lisboa ao Cairo
Ergo o templo do futuro
Com paragem técnica em Luxor
Para consultar os arquitectos da eternidade.
A antiga Tebas, a cidade das cem portas,
É hoje um pequeno burgo.
E o meu guia, egípcio, brasileiro,
Diz que tem o coração a sangrar.
Marcos chora pelos seus irmãos
De Najaf, no Iraque,
E confidencia:
- Eu nunca poderia trabalhar
Para os meus inimigos e vizinhos de Israel.
Por muito dinheiro que me pagassem.


Tenham santa paciência.
Os pobres. Os diabos.
Os pobres diabos.
Os santos. Os turistas.
Os contribuintes.
Os camponeses.
Os escribas.
Os guias turísticos.
Os romancistas policiais.
Os arqueólogos.
Os caçadores de tesouros.
As esposas dos ricos homens de negócios das arábias.
Os sacerdotes do templo de Kom-Omb
Que eram carecas.
- E sobretudo os pobres.
Porque deles será o reino da terra.


Pobre planeta, sem rei nem roque.
E com tantos súbditos.
Por favor ponham a escrita em dia.
Pesem a alma.
Meçam as bolsas.
Leiam o Livro dos Mortos
Ou A Morte no Nilo,
Que o barco vai zarpar.
- Um oiro um oiro, amigo.
Para o Habibo.
E para o camelo do Habibo.
Óscar, de seu nome.


E o Estado garante
Que não pode ser,
Que não pode mais no futuro
Garantir que é Estado.
E muito menos Estado-Providência.
E pagar o leitinho às criancinhas.
E o funeral aos velhinhos.
E a múmia do faraó.
Deixem isso às madraças
E à caridade em tempo de Ramadão.

Resta-nos a Alta Autoridade do Nilo
Que regula os influxos
E os defluxos dos deuses.
E a exploração do trabalho infantil
Nas escolas-fábricas de tapeçarias
Em Memphis.

Na verdade,
O verão é apenas uma estação.
De comboio.
Do comboio de via estreita
Que vai do nascer ao morrer.
Ou quem diz estação
Diz cais. De chegar. De apodrecer.
Como esta falua do Nilo à beira Tejo
Que é o rio que passa à minha porta.

Sexta-feira, treze
De Agosto.
Dia de azar,
Quer queiram, quer não.
A indústria do lazer, aposto,
Vai ser o principal foco de infecção
Neste pico de verão.
Tenham cuidado com o cão
E com a maldição
Do Faraó Tutankamon.

Morreu a indústria dos metais pesados,
Viva a indústria do lazer.
Leve. Ecológica. De terceira vaga.
Com homologação.
Com certificação.
Com acreditação.
Com exemplos de boas práticas.
Com análises de custo/benefício.

Graças ao lóbi da qualidade
O mundo vai bem melhor.
Que a vida é dura.
E o que a gente faz para ganhá-la.
Como o búfalo que pasta
Nas margens do Nilo.
Como qualquer búfalo domesticado
Depois de trabalhar o dia inteiro
Para o seu suserano,
O camponês egípcio.
Que por sua vez alimenta
O Faraó e as suas esposas e concubinas,
O seu exército, a sua polícia núbia
E a legião de escribas
Que têm o monopólio da escrita.
E do saber.
E os engenheiros da barragem de Assuão.

Hoje as partes pudendas,
A zona púbica,
A coisa pia
Do Portugal contemporâneo
Vai ser matéria de alto relevo
Na televisão.
Diz o Eça, o escriba acocorado,
Em missão de reportagem
Na inauguração do Canal do Suez.

Já não temos rei.
Nem o tique aristocrático
Do beija-mão.
Nem o Conde de Burnay
Nem faraó. Nem deuses. Agora é
A república quem mais ordena.
Senão popular, pelo menos populista.
A coisa pia mais fino
No Portugal pequenino
Mas democrático.

Imagino.
Sem imagem nem voz.
Porque estou em férias
Num cruzeiro do Nilo.
A observar o elegante voo da garça.
- Onde estará o pelicano ?
E a cegonha preta ?
E os filhos ilegítimos do povo ?


No barco não apanho
A RTP, felizmente de todos nós.
Nem sei se o Porto perdeu na supertaça
E o Obikwelo ganhou
A medalha de prata dos 100 metros
Nas Olimpíadas de Atenas.
- Turco, grego, tunisino ?
Espanhol, italiano, palestino ?
- Não, português !
- Ah!, Portugal, Luís Figo! Compra, amigo.
- Quanto, quanto ? Dez nove oito sete seis cinco.
Quatro três dois, um!
- É só um oiro, amigo.
Que o Habibo tem fome mais o camelo.


Maria do Patrocínio
Minha avó materna.
Lembrei-me de ti, Tia Patxina.
Patxina, de alcunha,
Uma alcunha tão terna,
De ressonâncias bascas.
Nunca foste rainha,
Nunca te chamariam Hatshepstut,
Nem te construiriam o templo
Mais belo do mundo
Na aldeia do Nadrupe.
Morreste cega,
Sem hieroglifos gravados na estela,
Tia Patxina,
Apalpando os netos
O cabelo a cara.
E não te mumificaram
Nem muito menos te operaram
Que no teu tempo
As obras de misericórdia
Eram sete espirituais
E sete corporais.
Como no Egipto dos faraós.
Como as pragas do Egipto.
Como nesta triste aldeia núbia
Que é uma espécie de reserva dos índios
Cá do sítio.
Com crocodilos de plástico
E pretos garanhões de olhos verdes.
E onde há uma velhota
Cega como tu, minha avó,
Que vende bugigangas pró turista.

De Assuão a Luxor
Eu gostaria de ter escrito
Um poema sobre os meus estados de alma.
Tão contraditórios que se anulam.
A verdade é que encontrei aqui
Um povo afável.
Mas que me adianta o pedigree
E os cinco milénios de civilização
E o templo de Edfu
Se nada nudou na minha condição
De burro carrejão ?

Sopra o vento dessecante.
Estou em Assuão.
Nos píncaros do verão.

Egipto, 22-28 de Agosto de 2004.
Portugal, verão de 2004.
Revisto em Setembro de 2007.