sábado, dezembro 01, 2007

(Pré-)Textos (2) - Um Portugal ao espelho, mas pouco narcísico

Foto de uma imagem de Koudelka (1976), exposta no CCB. Foto de Luís Graça (2005) > Talvez o melhor retrato do Portugal que nasce e renasce.

Exposição no CCB (Centro Cultural de Belém, Lisboa) > Espelho Meu: Portugal visto por fotógrafos da Magnum. Data: 1 de Julho a 28d e Agosto de 2005. Comissariado: Alexandra Fonseca Pinho e Andrea Holzherr (Magnum Photos Paris). Produção: Centro Cultural de Belém e Agência Magnum Photos Paris


Espelho meu: Portugal visto por fotógrafos da Magnum Photos (1)


1. Um país tão pequeno e tão periférico (em relação ao centro do mundo, da notícia, do acontecimento, da história, da geopolítica, da economia global) que cabe em mil negativos do arquivo de uma das mais célebres agências de fotojornalismo do mundo: a Magnum Photos, criada em 1947 por Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e colaboradores.

Havia registos de 1955, da década de 60, do 25 de Abril de 1974, do PREC (Processo Revolucionário Em Curso)… Depois disso, os fotógrafos foram assobiar para outro lado. Que o mundo é vasto e fotogénico, mesmo quando feio, horrível e sujo. Portugal deixou definitivamente de estar na moda quando a festa acabou. Os ratos abandonaram o navio.

Na ressaca da festa, pá, ficaram os bêbados, os loucos, os marginais, os místicos, os poetas, os cães que ladram à lua, as mulheres de preto, os eternos perdedores… Trinta anos depois era preciso bater umas chapas para fazer o upgrade do arquivo. Vieram a Susan Meiselas, , o Miguel Rio Branco, o Joseph Koudelka. Com as suas credenciais da praxe, as suas obsessões de estimação, o seu portfólio, o seu prestígio, os seus mitos, os seus medos, a sua vaidade, o seu génio, o seu código de ética e deontologia profissionais.

“Não era de surpreender a desconfiança com que os meus passos eram seguidos enquanto percorria as ruas da Cova da Moura, mas na Cova são propriedade privada. Cada esquina tem uma personalidade distinta” (Susan Meiselas).

2. A exposição, no CCB, começa na Nos Kasa, a 10ª ilha de Cabo Verde, com seis a sete mil habitantes, incluindo gente oriunda de Angola e de S. Tomé e Príncipe, parte dela imigrantes ilegais. A casa dos náufragos, dos últimos náufragos, do império. Com um fabuloso som de fundo: o coro das mulheres da Cova da Moura. Meiselas teve vontade de lá ir porque ouviu a notícia do arrastão na BBC ou noutra estação global qualquer. De repente, Portugal deu de novo a volta ao mundo. O arrastão de Carcavelos foi notícia (breve), à falta de Tsunami, vulcão, terramoto, atentado terrorista ou castigo divino.

Há males que vêm por bem, dirão uns. As fotos da Meiselas, penduradas nas janelas, nas varandas e nos estendais da roupa do gueto da Cova da Moura, acabaram por dar-lhe uma outra dimensão mediática e contribuir para a melhoria da sua imagem e da auto-estima dos seus habitantes, filhos de um deus menor.

Os jovens perceberam que a fotografia podia ser uma arma. Que uma foto de Meiselas valia mais do que uma presidência aberta. Ou o estafado, inócuo e eleitoralista discurso de um presidente da câmara qualquer. As associações locais comentaram que a notícia (da participação de jovens desta comunidade, local no já famoso arrastão de Carcavelos) foiraum exagero, mas que acabou por ter um efeito positivo na sócio-economia da ilha.

De facto, por 5 euros, os estrangeiros passaram a poder entrar, sem passaporte, na Cova da Moura, com direito a visita guiada e guarda-costas. Por mais 7 euros e meio, o turista, o tótó, podia inclusive provar os sabores da gastronomia local, a melhor cachupa da diáspora creoula.

O período de tréguas, boa vontade e estado de graça acabou no dia 17 de Julho de 2005], mas a exposição do CCB continua aberta até Agosto.

Entretanto, a polícia vem dizer, pelo seu serviço de relações públicas, que afinal o arrastão nunca existiu: fora uma figura de retórica... País de inventonas, de polícias que gostam de fazer notícia e de jornalistas que emprenham facilmente pelo ouvido, de jornalistas que dão demasiado crédito aos polícias... País de minorias que a maioria nega, escamoteia, ignora. Todos iguais, mas uns mais do que outros.

3. Miguel Rio Branco (n. 1946), de ascendência lusitana, é o único dos fotógrafos que fala com o coração:

“Portugal, o berço dos meus antepassados, das primeiras memórias com significado, dos meus primeiros amores, deixa-me sempre profundamente emocionado. Mais uma vez, procuro as raízes que perdi…”.

E quem pode viver sem raízes ? É preciso o trabalho do arqueólogo, do paleontólogo, do geólogo, para voltar a aprender a ler as sucessivas camadas que compõem a realidade de Portugal, o unto, o sebo, a epiderme dos portugueses: um coração talhado na pedra, a pedra, o chão, a sombra, a penumbra, as castanhas quentes e boas, o silêncio, a cruz, o mistério, o profano e o sagrado,

4. Também nada tem de fotojornalismo o olhar de Josef Koudelka… Aqui não há mais tropas, tanques, botas a esmagar a primavera de Praga, os cravos checos. Aqui já não há império, nem do mal nem do bem. Apenas uma paisagem calcinada pelos incêndios que lavram desde o 25 de Abril de 1974 e que nunca mais se extinguiram. Portugal está a arder em fogo lento. Portugal já ardeu. Portugal é consumido por uma trágica paixão. Foi a mensagem que eu li nas legendas que podiam ser em checo ou noutra língua qualquer, desde que falada pelos humanos:

“Passei seis semanas em Portugal. Viajei de norte a sul, de este a oeste. Segui um caminho que eu próprio tracei. Tentei ver o máximo. Fiquei surpreso. Com o que Portugal mudou desde os anos setenta. Mas eu também mudei” (Josef Koudelka).

Todos nós mudámos, camarada. E, connosco, Portugal, a Europa, a tua terra, o mundo … Mas em 1979, cinco anos depois do poder ter sofrido o risco de ter caído na rua, o que atrai o fotógrafo é a Ladeira do Pinheiro, a santa, a Procissão dos milagres, o Portugal no seu pior, o Portugal sacro-profano (Bruno Barbey, n. 1941).

5. Mas se o Portugal não tem raça nem fotogenia, tem-nas, uma e outra, os ciganos, as minorias. Registe-se as cenas de um casamento cigano, em 1998 (Bruce Golden, n. 1946). Há ainda o olhar, eslavo, russo, de Georgui Pinkhassov (n. 1952), sobre o Barro Alto, o Chiado, Alfama (1998), a Lisboa saloia, mourisca, judaica, cristã, cristã velha e cristã nova, exótica, pitoresca, labiríntica, que sempre seduziu o olhar do outro, o estrangeiro, desde os francos, os cruzados, o Bráulio no Séc. XVI ou o Byron no Séc. XIX.

6. Afinal, o único núcleo temático desta mostra (decepcionante, nalguns casos; provocadora, irritante, estimulante, noutros) que se pode qualificar de fotojornalismo propriamente dito é o do 25 de Abril de 1974. Portugal desperta a curiosidade (romântica ? voyeurista ? interesseira ?) dos fotógrafos e de alguns revolucionários profissionais, sem esquecer os perdedores do Chile de Allende, da França do Maio de 68, da contestação à guerra do Vietname…

Guy de Querrec (n. 1941), Jean Gaumy (n. 1948) e Gilles Peress (n. 1946) são os três fotógrafos da Agência que estão de serviço ao Portugal do PREC de 1974/75.

A fotografia que melhor retrata os anos sombrios de 1976, tão sombrios como os de hoje, tão sombrios como o day-after de todas a s euforias, de todas as orgias sociais, de todos os orgasmos colectivos, em todas as épocas e sociedades, ainda é a de Koudalka, a do homem, maneta, que sai do mar, enquanto uma criancinha berra ao colo da mãe que teima em levá-la ao banho.

O Portugal futuro, parafraseando o Ruy Belo, em confronto com o do passado, que acabava de ser liquidado… Confronto ? Nem isso, há um Portugal que sai de cena, o maneta, e outro que entra… Medo de entrar na água ? Mais do que medo, direi que é pânico. O pânico de ter lidar com o futuro, as suas oportunidades e ameaças.

7. Thomas Hoepker conheceu o Portugal dos anos 60. Um certo Portugal, o da minha adolescência. Trás-Os-Montes que eu só conheci mais tarde. Quem viajava nessa época ? Por que estradas ? A salto, para França, por terras de Espanha. Há uma revolução silenciosa em marcha, que nenhum fotojornalista da Magnum captou. Mas também se viajava de comboio, pela calada da noite, até ao barco que nos esperava no cais de Alcãntara ou da Tocha Conde de Óbidos. Destino: o Ultramar, Angola, a jóia da coroa, depois da perda dos brasis, das índias. Mas também a Guiné ou Moçambique.

Em 1964, é ainda o que resta do Portugal rural, pobrezinho, mas feliz q.b., - pobrete mas alegrete - tão bem retratado na fotos do casamento popular ou do latifundiário, à mesa, sozinho, como um cão. Ou ainda do fascismo soft, serôdio, tão podre que irá cair da cadeira com o seu velho criador, uns anos depois. Ainda em 1964, os padres (católicos, não há outros) entronizavam as criancinhas nos ritos e ritmos patrioteiros da Mocidade Portuguesa. Que a Pátria (n)os chamava: “Para Angola, rapidamente e em força!”…

Cartier-Bresson e Inge Morath tinham fotografado os portugas de 1955, o Portugal ronceiro e engravatado do salazarismo, recauchutado e recuperado pela NATO, três anos antes do furacão chamado General Sem Medo:”Obviamente, demito-o”.

Os fotógrafos da Magnum tinham mais que fazer do que documentar o simulacro de eleições livres para a presidência da república das bananas. A estética do realismo social fixa, enquadra, recorta, emoldura, aquilo que era o Portugal very typical do Secretariado Nacional da Propaganda (mais tarde, Informação), ainda e sempre pela batuta do António Ferro. A Nazaré, o Toinho, de pé descalço, a Maria das sete saias… É ainda e sempre esta pobreza envergonhada dos pobres envergonhados que um dia ainda ousaram sonhar ser donos do mundo.

Paralelamente à exposição, um vídeo (uma reportagem que passou na RTP há alguns anos) sobre os documentários (quatro dezenas) que foram feitos por estrangeiros sobre o PREC (o período que vai do 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975). Vários dos jornalistas e realizadores são entrevistados: Robert Kramer, Thomas Harlan… Já o tinha visto na altura. Mas gostei de o rever.

Registo a a intervenção do cineasta Thomas Harlan, que filmou o processo de ocupação da Torre Bela, e que vem falar em suicídio das forças armadas portuguesas. Nunca se tinha visto isso. Uns meses antes, no Chile, um exército de estrutura prussiana, esmaga Allende e subjuga o seu próprio povo. Esse suicídio, a ter acontecido, aconteceu ou começou a ser preparado, lenta mas inexoravelmente, na Guiné. No meu tempo, 1961/71...

Esse suicídio (colectivo, institucional), a ter acontecido, aconteceu ou começou a ser preparado, lá em baixo, na Guiné. Mas a Magnum nunca esteve lá, com os seus fotógrafos, nessa obscura Guiné, província portuguesa, antes colónia, hoje República... da Guiné-Bissau.... Não estava na Guiné para testemunhar o princípio do alegado suicídio das Forças Armadas Portuguesas. Só Deus pode estar em todo o lado... Mas nessa época também Ele devia andar muito distraído.

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(1) Há uma outra versão, publicada originalmente em 24 de Julho de 2005
Socio(b)logia - XVII: Espelho Meu... ou os portugas vistos pelos fotógrafos da Magnum (Luís Graça)