quarta-feira, outubro 12, 2011

Blogantologia(s) II - (96): Não sei qual é mais feio, se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo...


Lourinhã, Praia da Areia Branca > 9 de Outubro de 2011 > O meu último passeio, antes de "ir à faca"... As efémeras impressões da minha pata esquerda na areia.

Fotos (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. 

Dedicatória:

Em homenagem aos nossos médicos,
que passaram pelo TO da Guiné, em geral;
e muito em particular ao meu camarada de armas,
mais tarde cirurgião, ortopedista,
Dr. Francisco Silva,
que me operou em 12/10/2011,
ao meu joanete (LG)


Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete,
se a minha alma,
se o mundo…

Fui fazer um raio X
ao tórax
e à pata,
esquerda.
É tão feio o esqueleto,
assim descarnado.
Uma merda,
dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto,
inteiriço,
que seja apenas uma perna ou uma pata,
até mesmo só a pata da perna esquerda,
la zampa della gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota cardada,
civil e militar,
e já levou muita pisadela nos calos.

É uma merda, o esqueleto
visto ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
gosto de te ver, esqueleto meu!
O ortopedista não concorda:
Afinal, a pata,
é onde ele põe a mão
e ganha o pão.

P’ra mim,
desculpem-me a franqueza
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas de armas, medalhados,
é feio o esqueleto,
o tórax,
o metatarso,
assim radiografado.

Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.
Sem a camiseta Lacoste dos teus verdes 20 anos.

É peremptório o relatório,
médico:
Tenho o metatarso deformado,
o dedo grande do pé todo torto,
dois dedos encavalitados,
um joanete,
um trambolho.
Hallux abductus valgos,
no latinório hipocrático.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias,
da tropa,
da Guiné,
eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.

Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
É feia a alma,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc,
curandeiro,
balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais dos náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…
- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.


Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o
medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
mais torto que o meu metatarso,
mais lúgubre que a minha alma.

Tem um cancro,
generalizado,
local,
regional,
global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta terrestre ao mais fundo do fundo.
Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação.
- Não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia-,
diz-me o cirurgião do mundo…

Explicou-me,
em traços largos,
na capa de uma revista cor de rosa
do tempo da belle époque,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul, quanto mais rosa.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso,
da pata,
do joanete,
da alma…


Resta-me,
impávido e sereníssimo,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé
no dia 12 de Outubro de 2011,
no bloco operatório do Hospital Amadora-Sintra.
- Depois das férias,
meu camarada,
vamos começar por tratar desse joanetinho.…

… E eu tenho a secreta esperança
de que, se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!