quinta-feira, outubro 28, 2010

Blogantologia(s) II- (88): A Caixa de Pandora

A caixa de Pandora




(...Ou um poema panteísta contra a misoginia
No Dia Internacional da Mulher, 21 de Março)


* Luís Graça






Os deuses criaram a primeira mulher,
e puseram-lhe o nome de Pandora.
Dizem que foi por castigo,
como presente envenenado,
oferecido aos homens,
a quem Prometeu, o titã, tinha dado o fogo,
roubado aos céus.


Na sua fabricação,
à imagem e semelhança dos deuses,
trabalharam Hefesto e Atena,
sob as ordens do próprio Zeus,
e com o auxílio do resto do Olimpo.


Cada dividindade se esmerou
e lhe deu uma qualidade:
a graça,
a beleza,
a meiguice,
a paciência,
a persuasão,
a inteligência,
a graciosidade na dança,
o talento para a cozinha,
a destreza para os trabalhos manuais,
o amor maternal…


Porém Hermes, o pérfido,
inocolou no seu coração
o virús da traição e da mentira.


Zeus, o colérico e vingativo pai dos deuses e dos homens,
mandou então a sua obra-prima
para a terra.


Epimeteu, irmão de Prometeu, estava por este avisado:
- Do céu nunca virá nada de bom!
Nunca aceites nenhum presente divino…


Deslumbrado com a sua beleza,
Epimeteu tomou Pandora como esposa.
Em casa, ele tinha uma misteriosa caixa
que trouxera consigo do céu.


Pandora fora instada a nunca a abrir,
em circunstância alguma.
Mas a curiosidade feminina foi superior às suas forças.
… Lá dentro estavam todos os males e todas as doenças,
incluindo a peste (a pior das doenças),
que haveriam de afligir a humanidade,
até ao fim dos séculos dos séculos…


Mas no fundo da caixa, ficou ainda
um resto do recheio da caixa
o único elemento que não se chegara a libertar,
porque Pandora, assustada, acabou por fechar a tampa,
na última fracção de segundo …


E esse elemento era… a Esperança!
Apesar do erro irreparável,
com Prometeu, Pandora vai permitir aos homens
manter acesa a luz ao fundo do túnel,
manter vivo o fogo do conhecimento e da paixão,
ter direito ao futuro,
levá-los, enfim, a superar a sua condição animal…


Com Pandora, não somos definitivamente criaturas divinas,
somos assumidamente seres livres,
humanos,
mortais,
mas donos do nosso destino.


Com Pandora, tornámos irrisórios os deuses,
libertámos as suas criaturas,
humanizámos a vida e a terra…


Pandora não é a fonte de todos os males,
é afinal “a que tudo dá",
em grego.

sábado, outubro 09, 2010

Blogantologia(s) II - (87): A velha Amura dos tugas



A velha Amura dos tugas (*)
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu Bissau.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.

Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha,
em formatura,
nas suas fardas multicolores,
coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria
e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.

Ah! A velha Amura,
inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze,
incandescente...
Casamata,
prisão,
dormitório,
agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.

Eram onze
os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.

Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo,
tu, Osvaldo ? 

E tu, Vieira ?

E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Oio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados de branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.

Vejo mais à frente o Domingos,
o valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada,
em Madina do Boé.

E tu, Rui Demba Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do mítico Congresso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
suja e esburacada,
na capital da tua terra...

E o camponês balanta,
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a sua Kalash de contrafacção ?

Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história
de como venceram, afinal,
os vencidos.



PS - Há quem te espere, 'Nino',
no Panteão Nacional.

Luís Graça
Bissau, 7 de Março de 2008



Revisto em 8/10/2010


(») Originalmente publicada no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, II Série > 25 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3669: Blogpoesia (27): A velha Amura dos tugas (Luís Graça)

segunda-feira, agosto 23, 2010

Blogantologia(s) II - (86): Na antiga picada do Xime - Ponta do Inglês





Na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês
por Luís Graça (*)

Não havia nada
Na antiga estrada
Do Xime-Ponta do Inglês,
Ligando o Geba ao Corubal.

Não havia nada naquele lugar
Que era de tormento,
Àquela hora mortal
Da madrugada.
Nada, onde um homem
Pudesse afogar a sua fome,
Matar a sua sede,
Aliviar o seu sofrimento.

Nem sequer um banco de pedra
Como aquele em que agora me sento,
Frente ao Tejo,
Fresco, límpido, matinal,
E onde alguém escreveu,
Em letra garrafal:
“Amo-te, Marta,
És a razão do meu viver”.

Hoje estou à beira Tejo
E não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
E o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
Que, dizem, é o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
Tarrafo, lodo, merda,
Dois cantis vazios,
Um céu de bronze,
E mil e uma razões para (sobre)viver.

Nem poderia haver
Nenhum banco de pedra,
Nem nenhum jardim,
Nem nenhuma Marta
À minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
Que fosse a minha razão de viver.

Quando muito, um fantasma,
Surgido do cacimbo matinal,
Por detrás do baga-baga,
Armado de Kalash!

Não tinha, de resto, razão de viver,
Raison d’être, diria a minha copine,
Se eu fosse refractário,
E tivesse dado o salto para França.

Não tinha nenhuma razão de viver,
Nem de morrer,
Nem de matar,
Não tinha sequer nenhuma razão
Para estar ali, àquela hora.

Não havia nada
Na antiga picada abandonada
Do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um pub irlandês
Com a ruiva Guiness
A piscar-te olho,
A ti, herói português,
Com um improvável genoma celta.
Nem uma tasca afadistada
Da tua saudosa Lisboa,
Com a perna da morena,
Esbelta,
Lânguida,
A faca na liga,
Deixando antever
Os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
Nem uma decrépita gasolineira
Dos filmes do Faraoeste da minha infância,
Onde abastecer a tua Daimler,
Salta pocinhas, minas e armadilhas,
Em que ias de Bambadinca ao Xime
Simplesmente para beber uma cerveja,
Sem escolta nem picagem,
Num jogo de roleta russa.

Nem muito menos a Marta-Mátria,
Republicana e laica,
Verde e rubra,
De busto farto,
De peito feito às balas,
Dando a volta à cabeça dos rapazes,
Dando-lhes tusa,
Na Feira Grande de Setembro:
- Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
Nem sequer uma simples mulher,
Uma fêmea de bunda larga,
Ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
Cata-ventos,
Bailarina,
Redondinha,
Assexuada,
De pelo na venta
E apito na boca,
No cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
Em defesa da honra das donzelas
Da minha Pátria.
Chamem-se elas Marta ou Mátria.
Não, já não vou, cego, surdo e mudo,
A correr,
Disposto a morrer,
Com ganas de gritar Pátria ou Morte!,
Na velha picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês
Onde não havia nada.
Nem ao menos um tosco espanta-pardais,
Especado no meio do capim,
Em vez do campo de mancarra do fula,
Ou do teu jardim,
Do Éden,
Ou até uma simples seta,
De pau,
A apontar-te a direcção do inferno,
A maldição bíblica do pecado,
Omnipresente,
Obsessivamente eterno.

Havia apenas,
No fim da picada, o inferno.
À minha espera,
À nossa espera.
Às 8h50 da manhã
Do dia 26 de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Da era de Cristo.
E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês ?
A picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
Onde Cristo seguramente nunca parou
Nem amou
Nem penou
Nem sofreu
Nem pecou,
Nem rezou.

O teu Cristo etnocêntrico,
Judeu,
Semita,
Que nem sequer era caucasiano,
E nem muito menos sonhava onde era a Senegâmbia
Nem o Império do Mal(i).

Pensar global,
Sonhar alto,
Agir local,
Meu sacana
Ou melhor ainda:
Não pensar,
Muito menos sonhar,
Tiro instintivo, a varrer o capim.

Eis a ordem do capitão
Que tem acima o major,
Na sua avioneta,
No seu PCV,
E no topo o general,
O Com-Chefe,
O Caco Baldé,
O Homem Grande de Bissau,
Herr Spínola, para mim,

E à frente de todos,
Com o seu inseparável cachimbo,
O Seco Camará,
Seco de carnes,
Velho e valoroso guia das NT,
Pau para toda a obra,
Cão de fila,
Mandinga do Xime,
Herói da minha galeria de heróis,
Verdadeiro líder, etimologicamente falando,
Aquele que vai à frente mostrando o caminho.

Nesta guerra de baixa intensidade,
Não dês vazão ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor poupe, senhor,
As munições.
Da NATO.
Dizem que a glória te espera”,
Escreveu um serial killer,
Roqueteiro,
Com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
Ao longo da alameda dos bissilões.
“Vai para casa, tuga,
Que a tua namorada põe-te os cornos”

Não, não havia nada
Naquela picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês.

Lourinhã, 19 de Agosto de 2010

(*) Originalmente publicado em Luís Graça & Camaradas da Guiné, em homenagem a Luís Henriques e Armando Lopes que fizeram 90 anos em Agosto de 2010. Revisto nesta data.

___________

segunda-feira, julho 05, 2010

Blogantologia(s) II - (85): Elegia fúnebre para um amigo

Elegia fúnebre para um amigo

Querido Nelson

Hoje, em pleno Outono,
O barqueiro de Caronte
Levou-te para a outra margem
Desse rio que nos separa.

É sempre triste
A despedida,
A separação,
Mesmo quando anunciada.
Mas um dia,
De um qualquer dia das Quatro Estações,
Todos tomaremos lugar
Nesse barco do barqueiro de Caronte.

Alguns dirão: É o fim, é o nada.
Mas, não, mesmo para quem não é crente,
Para mim que não sou crente,
Não é uma miragem,
Do lado de cá,
Continuaremos a ver-te
A jogar o teu golfe,
E a seduzir,
Com o teu olhar azul,
Com a tua voz de comando,
Com a tua presença luminosa,
Os que te conheceram,
E tiveram o privilégio
De lidar contigo.
A começar pelas tuas mulheres,
Que te amaram,
E que tu amaste.

E aqui deixa-me
Destacar a Ana,
A tua Ana,
A nossa Ana,
Discreta, mas magnânima,
Aparentando a fortaleza do rochedo,
A Ana
Cujo amor e coragem
São uma referência
Para todos nós,
Seus amigos.
Se há um lugar
Para os humanos
No condomínio de luxo dos deuses,
Lá no Olimpo,
Ela já ganhou esse direito,
Quando também chegar a hora
Da sua partida
No barco de Caronte.

Haveremos então, todos juntos,
De reatar as conversas
Que a tua doença interrompeu.
Não fiques triste, amigo,
Por ires à frente de todos nós.
A tua vida iluminou-nos
E a tua nobreza na adversidade
Engrandeceu-nos,
A todos nós,
Teus amigos.
Temos muito orgulho em ti.

E, no entanto,
Quantos projectos não ficaram
Por concretizar,
Meu amigo!
E se tu tinhas ganas
De viver,
De vivê-los,
Com o teu filho Pedro,
Com os outros filhos que adoptaste,
Com os teus netos,
Com a tua Ana,
Com os teus amigos!

Guardaremos connosco
As melhores recordações
Do melhor de ti,
Tu que foste um homem inteligente
E bom
E generoso
E amigo do seu amigo!
Mesmo quando o teu mar ficava bravo…

Quem fica do lado de cá,
Separado por um rio intransponível,
Fica sempre desolado
Pela perda irreparável
Que é a morte,
A tua morte,
A qual é também a nossa futura morte.

Quem fica do lado de cá,
Como nós,
Fica a dizer-te adeus,
Numa despedida
Que é sempre breve,
Porém dolorosa,
Tingida já da doce e triste saudade,
Que dizem ser tão típica dos portugueses.
Os teus amigos de Alfragide
E de todos os lugares do mundo
Onde foste feliz,
Ficam no cais de Lisboa a dizer-te a adeus,
Convencidos que partiste apenas
Para outra cidade
Noutro continente.

Leva contigo estas últimas palavras
Dos teus amigos,
Que elas te ajudem a atravessar o Caronte,
A fazer boa viagem.

De regresso a casa,
Vamos ajudar a tua Ana,
A suportar um pouco melhor,
A tua partida.
A dulcificar as lágrimas de sal.
A fazer o luto.
A construir a ponte sobre o Rio de Caronte.
É por isso que aqui estamos,
É para isso que servem os amigos.
Os de Santarém,
Os de Angola,
Os do Ministério da Agricultura,
Os do Golfe,
Os de Alfragide.

Alice/Luís

Cemitério do Alto de São,
Hall do crematório,
22 de Novembro de 2008

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Blogantologia(s) II - (84): A Kultura, imbecil

Nestes dias em que flui a música,
Viajo romântico ma non troppo
Do Atlântico aos Urais,
Pelo silêncio fatigado
Dos grandes vales e rios,
Das docas e dos cais,
da Europa.

Há uma orquestra sinfónica,
Ucraniana,
Decadente,
Macambúzia,
A tocar Schuman
No meio das ruínas do terramoto.

Nunca suportei
Os orgasmos colectivos
Dos finais das sinfonias.
Nem o Bela Bartok
A martelar as teclas do piano.
Muito menos o Hino da Alegria.

As palavras não tem corpo
Nem cores
Nem cheiros.
O primeiro violino é careca
E o maestro maneta.
Ou marreta.
E o público cego, surdo e mudo.

Alguém gritou:
- Siga a banda!
Alguém disse:
- O rei vai nu.
O comissário e o curador garantem:
- O povo é quem mais ordenha!
E o grafiteiro escreveu nos muros do Palácio do Rei:
- A Kultura, imbecil! A Kultura…

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Blogantologia(s) II - (83): À uma e meia da tarde, na estrada Nhabijões-Bambadinca

À uma e meia da tarde... (*)

Era uma hora e meia da tarde
quando o meu relógio parou,
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

... O sol dos trópicos desintegrou-se.
O céu tornou-se de bronze incandescente.
Mil e um pequenos sóis riscaram o ar.
O mamute de três toneladas deu um urro de gigante
ao ser projectado sob a lava do vulcão.

Uma súbita explosão…
Um trovão que ecoa até ao Mato Cão...
E depois um silêncio de morte.
O silêncio da morte.

...À uma e meia hora da tarde
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

Sei que gritaste:
- Agarrem-se que a viatura vai despenhar-se!
Sei que foste projectado ao lado do condutor,
batendo violentamente
com a cabeça na chapa do tejadilho.
Sei que conseguiste equilibrar-te
dentro do caixão de ferro,
e sei que não vias nada.


A espessa nuvem de pó, envolvente,
exalava um forte cheiro a enxofre.
Ainda consegui pensar:
- O ar está rarefeito,
milhões de partículas de pó barrento
bloqueiam-me os pulmões,
vou sufocar dentro desta maldita cabina!

Foi quando parou o meu relógio,
à uma e meia da tarde
à saída do destacamento de Nhabijões.

… Um curto-circuito ocorreu no teu cérebro,
como se tivesses sido electrocutado.
Ficaste rigidamente colado ao assento,
a G3 entrelaçada nas pernas,
e a estranha sensação
de que a massa encefálica te tinha saltado da caixa craniana.


O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra.
O gélido terror de quem entrou num mundo desconhecido.
A antevisão da viagem pelo gélido Rio de Caronte.
O calafrio da morte,
trespassando o meu corpo da cabeça aos pés.

...À uma e meia da tarde
na estrada Nhabijões-Bambadinca.

Nunca saberás ao certo
quantos segundos se passaram,
mas houve um solução de continuidade,
essa fracção de tempo
em que a tua consciência esteve bloqueada,
e os pulmões falharam,
e o sangue gelou,
e o coração parou,
de puro terror,
até compreenderes que a velha GMC...
tinha accionada... uma mina.


Outra mina, meu Deus!,
Que horror!,
e instintivamente agarrei-me àquela carcaça de mamute,
mal refeito da surpresa de estar vivo.

....À uma e meia da tarde,
à saída do reordenamento de Nhabijões.

Quando saltaste para o chão,
tinhas, sob o olhar aterrado,
os destroços duma batalha:
corpos por todo o lado,
juntamente com espingardas,
cantis,
canos de bazuca e de morteiro,
granadas,
dilagramas,
um rádio,
bocados de chapa e de borracha,
quicos,
botas,
restos de camuflado,
numa profusão indescritível.


Corpos que gemiam,
que gritavam,
ou que talvez fossem já cadáveres.

...No vulcão de Nhabijões,
a oeste de Bambadinca,
Sector L1,
Zona Leste,
Teatro Operacional da Guiné,
na África subsariana.

– Mortos! Tudo mortos!
– gritava-te o puto Umaru,
os braços abertos,
o pânico estampado no seu belo rosto de efebo,
fula, filho de régulo,
sem o seu inseparável pequeno cachimbo,
que sempre usava para lhe dar o ar de falso Homem Grande.


E logo ali o Transmissões,
o primeiro ferido que reconheceste,
todo encolhido junto ao colosso de ferro amalgamado,
numa postura fetal,
de defesa,
em estado de choque.

Abeiraste-te depois do comandante da 1ª secção,
teu companheiro de quarto,
o Marques,
o teu querido Marquês sem acento circunflexo,
mas ele já não reagia à tua voz
nem às bofetadas que lhe davas no rosto,
o olhar vidrado
dos passageiros do barco de Caronte.
Aparentemente não tinha qualquer fractura exposta
mas de um dos ouvidos corria-lhe um fio de sangue.
Um fiozinho,
vermelho e negro,
rapidamente oxidado em contacto com o ar.
Procuraste desesperadamente
os sinais de que ainda estava vivo,
mas sua respiração era cada vez mais fraca,
e o pulso escapava-se-te, entre os teus dedos.


Trágica ironia:
um minuto antes,
ao subirmos os dois para a viatura,
havíamos disputado amigavelmente o 'lugar do morto'.
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

… À uma e meia da tarde de um dia treze,
ao vigésimo mês de Guiné,
em Janeiro de 1971.

Acabaste por ser tu a ir para o 'lugar do morto',
ao lado do condutor.
Mas daquela vez,
e para sorte tua,
a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC,
embora do teu lado.
A velha GMC do tempo da Guerra da Coreia,
que gastava cem aos cem...
e que acabava de fazer a inversão de marcha,
de regresso ao quartel,
em Bambadinca.

Outra filha de puta de mina,
não detectada pelos nossos picadores,
fora accionada, na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões,
a coqueluche do comando do batalhão.
Porra, camaradas,
a escassos metros da anterior,
já fora da estrada!

… À uma e meia da tarde
de um dia que não era sexta-feira 13,
de azar!

Estavas de piquete,
quando duas horas antes uma viatura nossa
accionara uma mina.
Um frágil burrinho, um Unimog 411.
Ia buscar o almoço para o pessoal do reordenamento
O condutor, o Soares, teve morte imediata.
O Furriel Fernandes, também da CCAÇ 12,
o alferes sapador Moreira e outro militar,
ambos da CCS do batalhão,
ficaram feridos, com gravidade…


Mas só depois reparei no velho Tenon,
no Ussumane,
no Sherifo,
mesmo ao meu lado,
a meus pés,
sem darem acordo de si.
E ainda no Quecuta,
no Cherno
e no Samba, nosso bazuqueiro,
arrastando-se penosamente sobre os membros superiores,
como lagartos cortados ao meio.

…À uma e meia da tarde
na estrada da morte,
com as palmeiras de Samba Silate
e o Geba ao fundo.

As duas secções
que seguiam atrás, na GMC,
tinham sido projectadas pela vulcão de trotil,
como se fossem cachos de bananas.
Caso se seguisse uma emboscada,
então seria um massacre.
Tu eras o único que tinha uma arma na mão,
mas inútil,
inoperacional,
encravada,
devido ao choque sofrido…


Não deixei de sentir um calafrio
ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG
e sob o matraquear das 'costureirinhas'
e das Kalash.

… Ali, à uma e meia da tarde,
em Nhabijões,
na Guiné,
far from the Vietnam.


Tinhas acabado de fazer o reconhecimento das imediações,
detectando o trilho dos guerrilheiros
que, durante a noite,
tinham vindo pôr as minas assassinas…
Eles faziam a guerra deles,
tão cruel e tão suja como a nossa.
Esse trilho, mais fresco,
acabava por confundir-se
com os usados pela população de Nhabijões
que a gente sabia
não morrer de amores por nós…


SOS, evacuação Ypsilon,
vou a correr para o heliporto,
sem soro,
sem garrotes,
sem pensos,
sem maqueiro,
sem mala de primeiros socorros!

...Numa luta desvairada contra o tempo,
na estrada Nhabijões-Bambadinca.


Era possível, entretanto,
que houvesse mais minas
pela estrada fora.
Ainda hesitaste
em mandar picar o terreno,
mais alguns metros em redor,
mas não podias perder nem mais um segundo,
para logo seguires de imediato
para os helis
que aguardavam os feridos mais graves.

Mais até do que a solidariedade
entre camaradas de guerra,
mais até que a minha amizade pelo Marques,
de repente o que me terá movido,
o que me deu força anímica,
foi o brutal sentimento do absurdo da morte,
do absurdo daquela guerra,
a raiva contra aquela guerra.

… À uma e meia da tarde
nessa maldita picada do inferno.

Foi uma corrida louca,
aquela,
na fronteira indefinida
que separava a vida da morte
na estrada de Nhabijões.
No primeiro Unimog que te apareceu à mão,
e que levava um carregamento letal de feridos.
Três deles estavam em estado de coma
e tinham como destino outro inferno:
o hospital de Bissau,
os Alouettes III roncando como o macaréu,
sobre o Geba, largo e medonho,
a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte
aos vinte e poucos anos de idade.

…No dia 13 de Janeiro de 1971,
num dia que nem era sexta-feira,
mas que foi de terrível azar,
às treze e meia da tarde,
quando o teu relógio parou
à saída da grande tabanca balanta de Nhabijões,
finalmente reordenada
e controlada…

Luís Graça

______________

(*) Originalmente publicado em: 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)