sábado, setembro 29, 2007

Blogantologia(s) II - (54): Nós, os pedopapagaios




Alcobaça > Exterior do mosteiro > 22 de Setembro de 2007

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Nós, os pedopapagaios

O alijar a carga ao mar,
em tempo de porcela,
o invectivar os deuses que mandam a borrasca
ou o praguejar contra o patrão do barco
que se livrou desta
porque ficou em terra...
isso é muito teu,
é muito nosso.
Do teu/nosso lado de marinheiro
das setes partidas
que acredita no destino,
na vaga de mar,
no golpe de asa,
no sopro de vento,
no jogo da sorte e do azar,
no capricho dos deuses,
no fatum,
no fado.

Má sorte, má fortuna!...
E os erros meus ?
Essa parte omite-se....
Não somos anglo-saxónicos,
não somos germânicos,
não somos nórdicos,
somos latinos,
somos mediterrânicos,
católicos,
apostólicos,
romanos.
É sempre o mesmo idiota comentário
do tuga,
masoquista,
que adora autoflajelar-se,
em público,
e nomeadamente quando a plateia é estrangeira
e ainda mais idiota,
porque é turista em férias.

Podemos invejá-los.
Há povos invejosos.
Os portugueses estão a ficá-lo:
invejam os vizinhos
e os vizinhos dos vizinhos,
o seu sucesso,
o seu ranking no seio das nações,
os seus índices de desenvolvimento...
Por boas e más razões.

Não seremos únicos no pecado da inveja.
Mas o certo é que a Alemanha
e em geral os países de cultura protestante,
luterana ou calvinista,
exercem, sempre exerceram, um certo fascínio
nalgumas elites ibéricas que lutam,
desde o Século das Luzes,
contra o lastro escolástico,
sebenteiro,
fidalgote,
retórico,
gongórico,
gongorizante,
barroco,
inquisitorial,
fradesco,
cristão velho,
feudalizante,
jesuítico,
da nossa cultura.

Os tipos seriam, por oposição a nós,
metódicos,
organizados,
racionais,
frios,
competentes,
empenhados,
compulsivos em relação à eficiência, à eficácia e à qualidade,
dotados de racionalidade económica,
virados para o cálculo,
a acumulação,
o investimento,
a realização
a ética do trabalho...

Quando vamos a Alemanha,
tudo parece girar sobre rodas,
por isso os gajos são (ou têm sido)
a locomotiva da economia da Europa.
Será assim ?
Outros perguntam:
Por que razão o Zé Portuga
não há-de ter também essas qualidades
que são próprias dos vencedores,
sem perder os traços únicos
que fazem dele isso mesmo,
o Zé,
o Portuga ?
Ah!, o paradoxo português,
Ah!, as idiossincrasias do tuga,
Ah!, a sardinha assada comida com a broa de milho,
mais o caralho das Caldas,
e o galo de Barcelos!...

Não sei qual é a poção mágica
(à parte a pool genética
e as mil e uma combinações
como a economia,
a cultura,
a história,
a ecologia,
a psicologia dos líderes,
a sociologia das elites, etc.)
a misturar no caldeirão...

mas devo acrescentar que a educação,
só por si,
não chega...
Precisamos de uma nova alquimia.
E quando falo em educação
refiro-me às actividades de ensino e formação p.d.
(propriamente ditas):
a escola (no sentido lato) continua a ser,
em larga media,
uma redoma de vidro
(ao menos que fosse um torre de marfim,
sempre seria algo de mais robusto),
uma actividade-meio,
e não uma actividade-fim
que serve para alimentar o sistema...

Nós,
espécie híbrida de pedagogos-papagaios,
pedopapagaios,
adoramos ensinar,
formar,
papaguear,
blá-blá...
Todo o português tem um pouco essa costela
e essas penas de pavão
ou de pedopapagaio,
sabendo de tudo um pouco.
Trapalhão mas sabichão.
E no entanto
somos maus a aprender a aprender...
com os simples,
os mais desastrados,
os irresponsáveis,
os loucos,
os marginais,
os desviantes,
as vítimas,
os doentes,
os fracos,
os perdedores,
os minoritários,
os minotauros,
os deuses,
os diabos,
os estrangeiros,
os estrangeirados...

Já nos pusemos do outro lado da barricada ?
Já nos sentámos no lugar do morto ?
Já nos deitámos na mesa do bloco operatório ?
Já nos pendurámos na corda do pelourinho ?
Já subimos ao mastro real ?
Já tentámos compreender por é que
os operários
e as operárias deste país
têm, às vezes, atitudes e comportamentos
que são claramente de risco,
do género
está-se-mesmo-a-ver-que-vai-dar-merda...

Um pouco mais de humildade,
de imaginação,
de ternura,
de saber ver e ouvir os outros,
de saber pôr a falar os outros,
não te ficará mal,
a ti, pedopapagaio.

Às vezes receio que a educação
e a formação neste país
sirvam apenas para justificar a nossa existência
de pedopapagaios,
sem que com isto eu esteja a querer minimizar
a prestimável classe dos pedagogos
(de que faço parte)
nem, muito menos, os inocentes, pobres e alegres
papagaios,
que estão em vias de extinção.

Talvez o nosso erro esteja justamente aí:
ensinamos para as pessoas,
não ensinamos com e através das pessoas
e sobretudo não aprendemos com elas.
E isso só será possível se
conseguirmos pôr,
definitivamente,
em cima da mesa,
a questão das vantagens da participação organizacional
(na escola,
na empresa,
na administração,
nos sindicatos,
nas associações)...
Essas vantagens são de longe superiores
aos seus custos.
Sem participação
não há educação que nos valhe.
A razão é simples:
a educação é uma co-actividade.
Tal como a saúde.
Tal como a cidadania.
Tal como o amor.
Tal como a amizade.

Outubro de 2003

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