sexta-feira, novembro 23, 2007

(Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos

Peniche > Junho de 2006 > José António Boia Paradela, com o filho Jorge.

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.


Prefácio ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). Ábio de Lápara é o o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ilhavo, onde nasceu em 1937. Arquietcto, é o sócio-gerente da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda.


É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio da Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo:
- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
- We are born to loose everything, everytime and nothing at all.
- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.
- Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…

O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; a Avó materna, a mãe Rosa… Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: O Mestre Zé, marinheiro; o Manuel da América; o Sacerdote Manuel, cego; o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias; o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhado pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, o entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:
- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!

Luís Graça

segunda-feira, novembro 12, 2007

Blogantologia(s) II - (60) Obsessivamente o mar...

Lisboa > Rua de São Bento > Grafito > 12 de Novembro de 2007 > "Vida de Cão"...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados



Obsessivamente o mar
da tua infância.
E as criaturas que o povoavam:

A Sereia
e a sua melopeia,
o seu canto de cigana,
fatal,
a sua rede,
onde afogava os seus pobres amantes,
depois de os arpoar com o seu tridente,
como se fossem lagostas suadas
nas mãos da chefe de cozinha;

A Baleia Azul, com a sua enorme bocarra,
que te transportava no ventre,
qual submarino,
até os mais recônditos e inóspitos lugares
do centro da terra em fogo;

O monstro, o terrível Adamastor,
que aterrorizava os teus pobres patrícios e parentes,
os Maçaricos de antanho,
marinheiros e pescadores,
agrilhoados ao cavername das caravelas;

A feiticeira Atlântida,
a cidade de som e luz,
que sempre fascinou os pobres povos ribeirinhos;

O Pirata de Perna de Pau e Cara de Mau,
que desembarcava na costa,
incendiava, estripava, matava, violava…
Ou comes A sopa
ou Eu chamo o Pirata de Perna de Pau…
;

A Passarola Voadora
que te catapultava para o Novo Mundo,
para os paraísos tropicais,
os canibais,
os praias de palmeirais e de corais,
os macacos e os leões;

O Búzio Gigante,
que podia ser o teu ursinho de peluche,
mimado,
e que era também o teu carrocel marinho,
alucinante
e alucinado;

E por fim o Moínho do Tio Xico Marteleira
que te fazia mover as ondas
e regulava as marés…
e os teus sonhos de criança
e os teus pesadelos
nas noites de invernia.

Ah!, como o mundo era perfeito
Na tua infância.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Blogantologia(s) II - (59): Hoje é dia mundial de qualquer coisa...

Lisboa > Belém > Sinal de proibição...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Hoje é dia mundial de qualquer coisa,
mesmo que o mundo não tenha grande coisa
para comemorar…

Hoje, por acaso,
é Dia Mundial dos Museus,
dia 18 de Maio.
De todos os museus,
sem excepção,
incluindo os museus dos horrores,
das figuras de cera,
dos holocaustos,
das espécies extintas,
dos instrumentos de tortura,
da guerra,
da paz,
dos escravos e dos senhores,
do cinema e dos seus imortais
das alterações climáticas,
da electricidade,
da escravatura,
da psiquiatria,
dos insectos sociais,
do campo e da cidade,
das doenças sexualmente transmissíveis,
dos males de amor,
das guerras coloniais,
dos leopardos e das hienas,
de Sade & Masoch,
de Deus & do Diabo.
E até dos museus dos museus
e dos seus directores,
dos seus vícios públicos e privados,
dos seus mecenas,
e das fundações
do bem e do mal
que aparecem em títulos de caixa alta
no jornal…

Adoro museus,
adoro o espectáculo do mundo musealizado,
das cabeças pensantes mumificadas,
e sobretudo nunca perco uma borla
no Dia Mundial dos Museus.

Quantos dias mundiais de qualquer coisa há no ano ?
Não sei, talvez 365 dias,
ou 366 nos anos bissextos.
Ou até mais,
porque há dias que já dobram
ou se desdobram
em efemérides…
Sei que hoje é Dia Mundial dos Museus,
de todos os museus.
Incluindo o Museu da Vergonha,
da Coragem e do Medo,
do Etnocídio,
da Intifada,
do Gulag,
do Vale dos Caídos,
dos degolados,
dos Fuzilados contra a Grande Muralha
da China,
da Florence Nigthingale,
the lady with the lamp,
do Fado e da Guitarra,
e dos Furacões Tropicais
que devastam a má consciência ecológica
da Casa Branca.

Mas hoje também é,
por ironia ou coincidência,
e para insulto à nossa inteligência
o Dia das Raças Indígenas da América,
mumificadas,
escalpelizadas.
pregadas na parede por alfinetes.

Li isso algures
num sítio que tem ressonâncias bíblicas,
escatológicas
e messiânicas,
A última arca de Noé.
Podia ser o último comboio.
O último avião.
O último barco.
O último aviso à circum-navegação.
A última chance.

Fico a saber que há meses do ano
mais ecológicos do que outros…
Por exemplo, o princípio do ano
não é muito amigável para o ambiente,
pelo menos no Brasil
(cujo Estado, dizem, não manda na Amazónia
nem nas favelas,
nem nos bandos armados
que ditam a lei e a ordem…).
E depois há que distinguir entre
dias locais,
regionais,
nacionais,
internacionais
e mundiais…
E será que já há Dias Globais de Qualquer Coisa ?
Não sei, confesso a minha global ignorância…

Em Fevereiro, dois, é o Dia Mundial das Zonas Úmidas
(com ou sem H,
o que para a Floresta é irrelevante)

Em Março, já os dias são mais compridos e generosos:
temos o Dia Nacional do Turismo (2),
o Dia Internacional da Mulher (8),
o Dia Internacional das Florestas (21),
o Dia Mundial da Água (22)…
Mas também o Dia do Meteorologista
ou Manda-chuva,
como dizemos no Velho Continente (23).
Enfim, temos até um Dia do Cacau (26),
não do dinheiro, mas do verdadeiro cacau
que fez alguns milionários e milhões de pobres.
O Dia do Cacau, no Brasil,
celebra-se na véspera
do Dia Mundial da Juventude (27).

Em Abril, tomem por favor boa nota do sete,
na vossa agenda-planning de executivos,
porque é Dia Mundial da Saúde.
E um semana depois
o Dia da Conservação do Solo (15),
bem como do pobre Índio (19)
e do paupérrimo ou depauperado Planeta Terra (22),
finalizando a maratona das comemorações
no Dia da Educação (28),
tão pouco ou nada ambiental…

Não sei explicar se o Índio
é o que está em vias de extinção
ou o Índio, escalpelizado, morto e enterrado,
depois da chegada ao Novo Mundo
do idiota que acreditava ter chegado à Índia
e que hoje tem nome de praças
e estatuária pomposa
por tudo o que são cidades hispânicas.

Fica bem um dia do Dia do Sol
em Maio, três,
que no hemisfério norte era o Maio Florido,
mas é uma ternura terem pensado
no Dia do Engenheiro Cartógrafo (6)
e guardado o 10 para o Dia do Guia Turístico,
o simpático, sorridente e super-herói
guia turístico.
Eu sou fã dos guias turísticos
que nos tratam como crianças crescidas,
idiotas,
em férias,
nos seus exóticos países,
em alegres e despreocupadas excursões,
às vezes escoltadas por gorilas da cidade….

Segue-se a treze do Dia do Zootecnista,
que eu não sei exactamente o que faz,
mas que presumo ter a ver com zootecnia,
com engenharia da reprodução animal,
com manipulação,
com engorda…
E a 29 o Dia do Estatístico
ex-aequo com o Geógrafo
e, por fim , a 30, o Dia do Geólogo.
O 18, já vimos, é o Dia Mundial dos Museus
e lá na Terra de Vera Cruz
o Dia das Raças Indígenas da América...
E eu a pensar que o conceito de raça era racista
e não existia mais,
abolido por ser politicamente incorrecto…
Afinal, há um dia das raças,
caucasianas,
semitas,
asiáticas,
americanas,
africanas…
Por fim, a 31, a fechar o Maio,
o Dia Mundial do Combate ao Fumo,
passivo, assertivo, activo, proactivo…

O Junho é, por excelência,
o mês mais ecológico do calendário.
Senão vejamos:
De 3 a 8 é a Semana Mundial do Meio Ambiente;
a 5, o Dia da Ecologia/ Dia Mundial do Meio Ambiente,
a 8, o Dia Mundial do Oceano (não sei qual deles),
a 17, o Dia Mundial para o combate da Desertização
e da Seca
sem esquecer (por muito que nos custe)
o Dia Nacional do Combate às Drogas (26)…


Em Julho as corporações ainda não foram de férias,
depois de celebrarem
a 11 o Dia Mundial da População
e a 17 a Protecção das Florestas…
A 12 é o Dia do Engenheiro Florestal
e, a 13, Dia do Engenheiro Sanitarista.
Enfim, não convém esquecer
o dia do pobre do agricultor,
a 28.

No mês de Agosto,
está-se a banhos,
no Hemisfério Norte
mas, pelo menos no Brasil,
ninguém se esqueça
do Advogado, a 11,
enquanto o 14 é dedicado ao Combate à Poluição
e o 17 à defesa, presumo, do Património Histórico
Não fica mal, a 21, falar da Habitação
e da sua crise,
e dos flavelados,
e dos flagelados,
ou das vítimas da economia do quarto mundo,
que é a do crime,
seguida a 27 pelo Dia da Limpeza Urbana
a 28 o Dia da Avicultura
e, por fim, a 29 o Dia Nacional do Combate ao Fumo.

O Septembro (ou Setembro, sem pê)
é um mês bem preenchido,
em matéria ambiental.
Escrevam isso na agenda:
Dia do Biólogo (3),
Dia da Amazónia (5),
Dia Mundial da Alfabetização (8),
Dia Internacional da Preservação da Camada de Ozônio (16)
(ou Ozono, para o lusófono de Lisboa)
e a, 21, Dia da Árvore.
(espero que com força, não com forca).
Por fim, temos de 21 a 27
a Semana Nacional da Fauna
com destaque para o Dia de Defesa da Fauna (22),
que vai decorrer paralelamente
ao Dia do Técnico Agropecuário.

Em Outubro não sei como vamos arranjar tempo
para celebrar
o Dia da Natureza que é simultaneamente
o Dia Mundial dos Animais (a 4),
dando início à Semana de Proteçção aos Animais (4-10)
sendo o 5 dedicado ao Dia das Aves,
incluindo as Aves do Paraíso,
vaidosas,
multicolores,
canoras…
A 12, temos o Dia do Agrónomo
mas também o Dia do Mar ,
seguido, a 14, Dia Internacional
para a Redução dos Desastres Naturais…
É uma agenda pesada
que inclui a 16
o Dia Mundial da Alimentação
a par do Dia da Ciência e da Tecnologia,
o Dia Mundial da Erradicação da Pobreza (a 17)
e, já agora, Dia das Nações Unidas – ONU ( a 24).

Chegamos a Novembro,
e damos conta de que o ano passou
depressa e mal
e que ainda falta comemorar
o Dia Nacional da Ciência e da Cultura (5),
o Dia Mundial do Urbanismo (8)
o Dia do Urbanismo (9)
o Dia do Rio (23)
e, por fim, a 30, Dia da Reforma Agrária/ Dia do estatuto da Terra,
ou da terra a quem a trabalha…

Em plena euforia do consumismo natalício,
temos em Dezembro
o Dia Nacional do Pau Brasil, a 7,
o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
assinada em 1948,
e diariamente atropelada,
acoplado ao Dia Internacional dos Povos Indígenas, a 10,
mais o Dia do Arquitecto/ Dia do Engenheiro, a 11,
que um e outro estão condenados a entenderem-se…

Passadas e repassadas as festas natalícias,
resta-me o Dia Mundial da Biodiversidade,
a 29.
Em 31 de Dezembro comenta o idiota do poeta:
- E eu a pensar
que havia um dia mundial da poesia
e que a poesia
também se festejava
ou comemorava
ou até se comia
ou muito simplesmente se dizia…


Lisboa, 18 cde Maio de 2007