segunda-feira, novembro 07, 2005

Blogantologia(s) II - (11): A mão invísivel do mercado

Publicado originalmente no Blogue-foira-nada, em 19 de Janeiro de 2005 > Blogantologia(s) - XXIII: O Comércio Justo. Revisto reformulado nesta data.

Andei por aí
À procura de lojas
Do Comércio Justo:
Queria comprar dez cêntimos de equidade;
Acabei por encontrar uma, a custo,
Já à saída da cidade.

Ao lado, havia um hipermercado,
Com a bandeira de Portugal;
E, mais à frente,
Uma Loja dos Trezentos;
E a seguir, uma outra, a do Chinês;
E às tantas perdi-me,
Só de contar as lojas
De artigos de marca
Que havia na Grande Superfície Comercial.
Pensei cá para mim:
- Eh!, já não vives na era de Quinhentos,
O planeta está mais quente,
O mundo está mais global, mais plural,
E até mais louco,
Ó Português.
Falta-te o cheiro da pimenta e da canela,
O sangue, suor e lágrimas
Das fábricas de vão de escada.

Entrei na loja do Comércio Justo,
E ouvi estórias
De gente de mil e uma cores e sabores:
- Sou uma pobre viúva da Índia
E faço bonecos de pano,
Comprem, comprem, meus senhores,
Ganham mais vocês num só dia
Do que eu em todo o ano.

Dez cêntimos de equidade
Embrulhada em papel de jornal...
- Essa coisa da equidade
Que o senhor vem à procura
Eu não vendo nem nunca vi;
Não é por ter a pele escura
Mas a verdade, a verdade,
É que só conheço a ruindade
Da ilha do Haiti
Onde nasci.

Equidade não é justiça,
Mas igualdade de oportunidades:
- O pensamento pode ser profundo,
Mas que me adianta, a mim,
Ser bonita e mestiça,
Sem direitos nem liberdades,
Neste sítio do fim do mundo.

A OIT vem agora falar
De trabalho decente...
- Tu, estrangeiro,
Que me acusas de dumping social,
Por extrair o carvão da mina:
Silicótico, ex-mineiro,
Fiz a revolução cultural
E mudei p'ra mensageiro
Do Grande Negócio da China.

A seguir entra em cena
O dono da loja,
Que parece ser o ideólogo de serviço:
- Tu, meu amigo,
Que és um consumidor responsável,
E vives na parte do planeta
Que é a mais habitável,
Põe sempre o olho na etiqueta,
Que o desenvolvimento sustentável
É a minha e a tua meta.

Oiço algures um apelo:
- Sê solidário comigo
Que estou há dias sem vender,
E sem dinheiro para comer,
Compra-me esta estatueta,
Que o politicamente correcto
Não enche a barriga da gente;
Já sei o que me vás dizer,
Que se a peça é de pau preto,
É mau para a ambiente.
E se alimento pai e mãe,
Na Indonésia ou no Brasil,
Dizes-me que é crime também,
Por ser trabalho infantil.

Fico sem jeito,
Ao ouvir todas estas estórias
E lições de geografia:
- Não sabes onde fica o Benim,
Mas podes ajudar-me
Ao meu povo, aos meus irmãos,
Não quero que tenhas pena de mim,
Basta ambos darmos as mãos.

- A mão invísivel do mercado,
Diz o meu professor economista,
Que encontro no piso superior,
Há-de chegar a todo o lado,
Mais devagar ou mais depressa,
De avião, de carro ou a pé,
E poderá fazer-te até
Um pequeno capitalista.

Fico baralhado
Mas, para resumir a lição,
Ouvida na loja do Comércio Justo,
Presto um pouco mais de atenção
Ao meu amigo mandinga da Guiné-Bissau:
- Tu és consumidor, solidário,
Eu sou produtor, acreditado,
Do Comércio Justo és partidário,
Só posso ficar-te muito obrigado.

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