quinta-feira, novembro 10, 2005

Blogantologia(s) II - (16): Cá vamos andando

Publicado originalmente Blogue-Fora-Nada, em post de de 16 de Novemnbro de 2004 > Portugal sacro-profano - XXI: 'Ala malek' ou o tráfico do Cairo

Revisto nesta data

Cá vamos andando


Às vezes este país parece-se com o Cairo,
Com o caótico tráfico rodoviário do Cairo.
Sem código da estrada.
Sem regras.
Sem semáforos.
Sem polícia sinaleiro.
Uma perigosa montanha russa,
Um carrossel desengonçado.
Mas mesmo assim a coisa anda, flui,
E a gente sempre consegue chegar a alguma parte.
Pode não ser o sítio certo,
Mas sempre chega a alguma parte.
Ou pelo menos tem essa ilusão de óptica.
Que o importante é chegar, sobreviver, dizem-te.
- Cá vamos andando -, responde-te o Zé Portuga,
Quando lhe perguntas como está.
No Portugal sacro-profano,
A gente lá vai andando.
Ora bem, ora mal.
Conforme o tempo e os humores.
Conforme o caminho e as pedras.
Ou até os companheiros de viagem.

Às vezes a gente tropeça e cai,
Para logo se levantar
E prosseguir a marcha,
Ora lenta ora brusca.
Agora o pobre do país tenta,
A todo o custo,
Não perder a última carruagem
Do comboio chamado Europa.
Há quanto tempo?
Às vezes tenho a impressão
De que essa correria
Atrás do comboio da Europa
É um filme que dura há já muito,
Há anos, há séculos, quiçá desde sempre...
Um daqueles filmes, mudos,
Que a gente via no nosso cinema de bairro.
Quando havia cinema de bairro
E filmes mudos
E a Fénix da Europa renascia das cinzas
E eu vivia num país orgulhosamente só.
- Pobrezinhos mas orgulhosamente sós,
Meu menino! - dizia o padre e
A senhora professora.

Mas tal comparação é injusta e ofensiva
Para com os portugas,
Para com o Zé Portuga,
Que é, afinal,
O nosso único (ou último) herói nacional.
Na realidade, é a política deste país
Que se parece com o caótico trânsito cairota...
É a política, são os políticos,
Os seus dirigentes, a sua elite...
É a gestão da coisa pública,
Ou a falta dela,
O laxismo, o cansaço,
A falta de imaginação,
A perda de valores,
A ausência de liderança,
A opacidade das regras
Ou melhor, o seu vazio,
A ligeireza,
A falta de lata, de vergonha, de carácter...

Às vezes apetece-me gritar,
Ao homem do leme,
Ao motorista do táxi,
Ao condutor do carro de bois,
Ao simples peão,
A mim próprio:
- Ala malek!, mais depressa, homem,
Que se faz tarde,
E que ainda perdes
A última carruagem do último comboio!(1)

_________

(1) Ala malek, em árabe, quer dizer mais depressa.

É sempre bom, em qualquer esquina do mundo, ter meia dúzia de palavras do patois local na ponta da língua... Como, por exemplo, desenrascanço, em Lisboa. Ou esquema, em Luanda.

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