quarta-feira, outubro 10, 2007

Blogantologia(s) II - (58): Tratamento VIC (Very Important Client)

Eu, blogador, me confesso:
sei agora até que ponto sou um tecnicodependente.
Em boa verdade,
sou um pobre tecnicodependente.
Estive dois dias sem computador
e, imaginem!,
fiquei doente,
foi como se eu tivesse partido as pernas,
o mundo tivesse desabado,
a vida perdido o seu sentido.

Eis a estória,
em síntese:
A placa gráfica do meu PC,
de topo de gama
(talvez a peça mais cara do meu brinquedo!),
bifou,
e o resto da máquina recusou-se a trabalhar.
O material é assim.
Neste mundo é o material que tem razão.
Aliás, o material tem sempre razão,
dizem os engenheiros.
Mas, eu, tecnicodependente,
é que não estive nada pelos ajustes.
Tive um ataque de nervos,
digno de um verdadeiro primata,
de um macho babuíno,
de um egocêntrico e miserável mandril.

Triste episódio este,
ridícula situação a minha,
reacção pueril...
Um homem já não é mais mais o que era,
sobretudo depois de regressar vivo,
mas não incólume,
não impunemente,
da guerra (colonial).
É duro, mas tenho de confessá-lo.

À parte este registo intimista,
deixem-me dizer-vos
que felizmente valeu-me,
nesta triste ocasião,
a pronta assistência do meu fornecedor
e sobretudo a amizade do João.
O meu PC estava dentro da garantia
e eu tive um tratamento VIC
(leia-se: very important client).
Por sorte, havia duas placas gráficas
do mesmo modelo e marca em armazém.
Mas por azar nenhuma delas funcionava.
Dizem-me que é um erro de produção num lote inteiro,
um erro de série.
Eu digo que é falha grave
uma falha que escapou ao controlo de qualidade
por parte do fabricante...
Enfim, à terceira tentativa lá se optou
por um novo modelo de placa gráfica,
de outra marca,
mas igualmente made in China.

Podiam ter-me dito:
o seu PC vai para arranjar
e, quando estiver pronto,
a gente telefona-lhe.
Mas não, deram-me um tratamento VIC,
trataram-me como cliente muito importante,
ou simplesmente como cliente,
ou tão apenas como pessoa...

Tenho pena de não poder publicitar aqui os seus nomes,
o da empresa
e a dos seus colaboradores
que me atenderam e resolveram o meu problema.
Em boa verdade,
era naquele momento
o meu pequeno problema existencial.
Mas a minha vontade
era mesmo elegê-los os portugas da semana.

Devo dizer-vos que é gente do melhor.
E bem precisava este país de multiplicar o seu número
por cem.
Juntando mais 10 AutoEuropas
tínhamos muitos dos nossos problemas colectivos resolvidos.
Para já, tudo somado,
eram mais uns 150 mil postos de trabalho
com um significativo peso no nosso PIBezito,
graças ao seu considerável VAB
(leia-se: valor acrescentado bruto).

Já que estou aqui hoje,
e para mais em maré de confidências,
direi que o que é bom no tratamento VIC,
é tu sentires mais do que cliente,
é sentires-te gente,
pessoa, de carne e osso.
Eu gostei de sentir-me gente esta manhã,
mesmo tendo perdido uma manhã da minha vida
à espera que resolvessem
o meu pequeno grande problema,
que o nosso problema é sempre
o maior problema do mundo.

Sentir-se gente é uma coisa
que começa a faltar neste país.
Uma pessoa sentir-se gente,
alivia as dores,
do corpo e da alma
faz bem à nossa auto-estima,
diz o meu psicólogo
que passou a substituir o meu confessor
do tempo em que eu era menino e moço
e tinha fé,
esperança
e caridade.

Quanto ao problema técnico
que causou a minha infelicidade durante dois dias,
ele é apenas um dos muitos efeitos perversos
da globalização.
Graças à mão de obra quase escrava da China,
a globalização operou este espantoso milagre
do embaratecimento do material electrónico,
incluindo os PC
e os respectivos periféricos.
Lembro-me do primeiro PC que comprei
há mais de um dúzia de anos...
Era um oito seis e troca o passo!
Custou-me os olhos da cara.
Hoje nem para peça de museu o queriam em lado nenhum.
Já foi para o lixo,
nem sequer para o ecoponto
(Shame on you!)
depois de anos passados no limbo do sótão
das velharias.

Deixem dizer-vos que me separei dele,
sem uma ponta de emoção:
estava velho, obsoleto, ultrapassado.
Foi para o sótão, foi para o lixo, e pronto!.
Foi tratado afinal como se tratam hoje
os velhos neste país.
Já o mesmo não aconteceu
à minha velha máquina de escrever:
esqueci o nome da marca e do modelo,
mas ainda hoje a recordo
com a ternura dos meus 17 verdes anos...
E que saudades do martelar seco das suas pequenas teclas!

De qualquer modo,
protesto contra todas as formas de tecnicodependência,
seja a do carro,
do telemóvel,
da máquina fotográfica,
da escova de dentes,
do micro-ondas,
do multibanco
ou do PC.
Um dia o mundo desaba mesmo
e a gente não sabe sequer escrever a giz
no quadro de ardósia da nossa velha escolinha,
plantar umas pencas,
enterrar um morto,
cuidar de um vivo,
fugir a sete pés dos nossos predadores,
da peste, da fome e da guerra,
fazer um filho e pô-lo a medrar
nesta vida e neste mundo.

É um cenário aterrador
mas perfeitamente verosímil.
A regressão
(económica,
social,
tecnológica,
política,
cultural,
moral,
humana...)
tem-se passado em muitos países à nossa volta,
nas nossas barbas,
da antiga Jugoslávia ao Iraque.
Perdi o contacto com as minhas amigas jugoslavas,
croatas e sérvias,
todas elas médicas.
Uma amizade que fiz em Valência
em 1991.
Estava eu para partir para Zagrebe,
para frequentar um curso de verão,
o primeiro curso europeu
sobre promoção da saúde,
quando eclodiu a guerra civil nos Balcãs.
Acabei por ficar o tórrido mês de Agosto
em Valência,
traduzindo de espanhol para inglês as más notícias
que nos chegavam da Jugoslávia.
Ironicamente,
em Valência ainda se faziam sentir,
na memória dos mais velhos,
as marcas cruéis e recalcadas
da guerra civil espanhola
de 1936/39.

Passados estes anos todos,
perdi-lhes o rasto,
às minhas amigas jugoslavas,
uma delas sérvia casada com um bósnio...
E sobretudo tenho pudor em perguntar por aí
se elas ainda estão vivas,
se estão bem,
se não foram violadas,
fuziladas,
enterradas numa vala comum...
E se as encontrassse não saberia como perguntar-lhes,
olhos nos olhos,
se elas tinham conseguido voltar à vida
depois do pesadelo
que foi o desmembramento do seu país
e, em muitos casos, das suas vidas,
das suas famíliasd,
das suas rotinas,
das suas memórias,
da sua identidade...

Rezo, ao menos,
para que elas tenham voltado a sorrir
e a ter esperança.
Mesmo sem computador, e-mail, webpage ou blogue.
Mesmo já sem saber rezar
como quando era menino e moço.
Pensar nas desgraças piores que as nossas
sempre alivia um pouco.
É safado dizê-lo ou pensá-lo,
mas alivia.


Originalmente publlicado em: Luía Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-fora-nada > 8 de Janeiro de 2004 > Socio(b)logia - IV: A tecnicodependência

Revisto em 10 de Outubro de 2007:
a pensar no sr. Carlos Pinto,
chefe de oficina da Santogal,
a RTM, de Alfragide,
que me tratou como um VIC,
que me tratou como gente,
quando, desalentado, lá deixei o meu carro,
empanado...
Como é importante, para todos,
as empresas e os seus clientes,
a economia e o país,
terem pessoas como o João
(hoje posso acrescentar, da Databox)
ou o Carlos Pinto, da Santogal,
que nos sabem transmitir confiança,
diagnosticando o nosso problema
e mostrando que afinal
ele é importante
e que tem solução,
mas que, apesar de tudo,
nem tu nem o teu problema
são os mais importantes do mundo.

Blogantologia(s) II - (57): Cais de partida(s)

Cais de partida(s)

Sempre detestei os cais
de partida,
as estações ferrovárias,
os terminais de autocarro,
onde há gente vulgar
com lágrima fácil ao canto do olho
e pombos debicando restos de comida.

São sombrios e tristes os ares
das gares
como é sombrio e triste qualquer lugar
onde se parte
e reparte
e há sempre alguém que fica
com a melhor parte.

Campo Grande,
Rossio,
Santa Apolónia,
Sete Rios
Cais de Alcântara…
Quem parte está a mais
e não conta na cidade
e só quem parte
leva saudade.

Eu sei que tudo isto é à nossa escala,
liliputiana,
e que noutros sítios
há uma verdadeira tragédia humana
a correr, sem testemunhas.
Que Lisboa não é, ainda,
uma megacidade da quarta economia do crime,
nem pertence a um narco-Estado.

Mas o drama da angolana,
com a sua pequena mala,
que quer ir para Freixo de Espada à Cinta
à procura do velho pai
que não conhece,
não pode deixar-me indiferente.
Nem o caso do nordestino brasileiro
que em Sete Rios julga ter entrada no paraíso.
Nem tão pouco do romeno
que reboca o meu carro
e que me contou a história, fantástica,
da avó e dos seus filhos,
fugidos dos nazis
e alimentando-se, meses e meses a fio,
nos Cárpatos,
do leite da única vaca que escapou à orgia da cruz suástica…

Resta-me a grande nostalgia dos comboios
que nunca tive,
nem em brinquedos,
e que nunca sabotei,
porque nunca fiz parte da resistência,
e onde que nunca viajei
pela simples razão
de nem sequer passarem à minha porta.

Menino e moço me levaram da casa de meus pais
para longes terras, Bernardim,
e talvez por isso
me seja hoje mais fácil chegar do que partir.

sábado, outubro 06, 2007

Blogantologia(s) II - (56): Irish people

Lourinhã > O forte de Paimogo, recém-restaurado, visto de longe, da Praia da Areia Branca. Uma silenciosa vigia contra, no passado, os corsários, os invasores e os contrabandistas e, nos dias de hoje, contra os especuladores imobiliários, o cimento armado, o alcatrão, os campos de golfe...

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Irish people


Para os dubliners Richard Wynne e Robert Anderson

Davam grandes passeios
pela praia
os irlandeses
ruivos
de cabelos brancos
e reformas douradas.

Descobrindo o sul
o sal
o sol
o solstício do verão
num país onde o sul
o sal
o sol
o solstício do verão
se vendem a preço de saldo.

A OTA aqui tão perto
diz o outdoor publicitário
e logo mais abaixo o deserto
e ao fundo o azul do Montejunto
e em frente o Novo Mundo
e a norte o manto protector
de Nossa Senhora de Fátima
garante o promotor
imobiliário.

Ah!, Dublin e os meus gentis amigos dubliners
fechando as portas ao vento
em Dezembro
no pub do James Joyce.

Davam grandes passeios
no outono da vida
os irlandeses,
bem casados,
ruivos,
maravilhados,
realizados,
de cabelos brancos,
ao vento.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Blogantologia(s) II - (55): À espera... de esperar

Lourinhã > Casal Charrua >> Anos 20 do Séc. XX > Os camponeses e os seus burros na festa do São João, 24 de Junho, no cruzamento para a Praia da Areia Branca, na estrada Lourinhã-Peniche... (A partir de uma velha fotografia afixada no Café do Manuel Marques, Banheiro... Com a devida vénia, ao dono da fotografia e ao fotógrafo desconhecidos).

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


À espera… de esperar


Que a mulher te seja fiel
E o carro fiável
E que nunca te falte nada,
São os votos eu que te desejo
A ti que andas na autoestrada
Da vida e da morte.
A ti que persegues o norte
A estrela polar
O mar
E que tens pressa de caminhar.
Boa viagem para todos os viajantes,
Qualquer que seja o seu modo de locomoção:
Almocreve
Condutor
Caminheiro
Pássaro errante
Turista
Meretriz
Pastor
Coveiro
Bombeiro
Guru
Asclepíade
Peregrino de Fátima
Terapeuta
Recolector-caçador
Vagabundo
Camionista
Demiurgo
Vendedor de sonhos
Beduíno
Barqueiro de Caronte
Nómada
Ninfa
Big brother
Conquistador
Soldado
EX-guerriheiro
Grafiteiro
Salvador de almas
Poeta
Globetrotter…

Passam milhares de carros
Na autoestrada
A alta velocidade
Ao quilómetro 10 ponto 6
Da A-8
E eu à espera do clique do motor
Da assistência das Estradas do Atlântico
Do rebocador da ACP
Da irracional fé na ciência e tecnologia
Dos teutónicos
Da infectível confiança na democracia
Do autocarro do amor
Da boleia da sorte
Da solidariedade dos meus contemporâneos
Da alvorada do milénio
Da aurora boreal
Do furacão que me arranque as palas dos olhos
E o limpa-parabrisas da cegueira.

À espera de esperar!
Desesperadamente…