segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Blogantologia(s) II - (84): A Kultura, imbecil

Nestes dias em que flui a música,
Viajo romântico ma non troppo
Do Atlântico aos Urais,
Pelo silêncio fatigado
Dos grandes vales e rios,
Das docas e dos cais,
da Europa.

Há uma orquestra sinfónica,
Ucraniana,
Decadente,
Macambúzia,
A tocar Schuman
No meio das ruínas do terramoto.

Nunca suportei
Os orgasmos colectivos
Dos finais das sinfonias.
Nem o Bela Bartok
A martelar as teclas do piano.
Muito menos o Hino da Alegria.

As palavras não tem corpo
Nem cores
Nem cheiros.
O primeiro violino é careca
E o maestro maneta.
Ou marreta.
E o público cego, surdo e mudo.

Alguém gritou:
- Siga a banda!
Alguém disse:
- O rei vai nu.
O comissário e o curador garantem:
- O povo é quem mais ordenha!
E o grafiteiro escreveu nos muros do Palácio do Rei:
- A Kultura, imbecil! A Kultura…

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Blogantologia(s) II - (83): À uma e meia da tarde, na estrada Nhabijões-Bambadinca

À uma e meia da tarde... (*)

Era uma hora e meia da tarde
quando o meu relógio parou,
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

... O sol dos trópicos desintegrou-se.
O céu tornou-se de bronze incandescente.
Mil e um pequenos sóis riscaram o ar.
O mamute de três toneladas deu um urro de gigante
ao ser projectado sob a lava do vulcão.

Uma súbita explosão…
Um trovão que ecoa até ao Mato Cão...
E depois um silêncio de morte.
O silêncio da morte.

...À uma e meia hora da tarde
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

Sei que gritaste:
- Agarrem-se que a viatura vai despenhar-se!
Sei que foste projectado ao lado do condutor,
batendo violentamente
com a cabeça na chapa do tejadilho.
Sei que conseguiste equilibrar-te
dentro do caixão de ferro,
e sei que não vias nada.


A espessa nuvem de pó, envolvente,
exalava um forte cheiro a enxofre.
Ainda consegui pensar:
- O ar está rarefeito,
milhões de partículas de pó barrento
bloqueiam-me os pulmões,
vou sufocar dentro desta maldita cabina!

Foi quando parou o meu relógio,
à uma e meia da tarde
à saída do destacamento de Nhabijões.

… Um curto-circuito ocorreu no teu cérebro,
como se tivesses sido electrocutado.
Ficaste rigidamente colado ao assento,
a G3 entrelaçada nas pernas,
e a estranha sensação
de que a massa encefálica te tinha saltado da caixa craniana.


O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra.
O gélido terror de quem entrou num mundo desconhecido.
A antevisão da viagem pelo gélido Rio de Caronte.
O calafrio da morte,
trespassando o meu corpo da cabeça aos pés.

...À uma e meia da tarde
na estrada Nhabijões-Bambadinca.

Nunca saberás ao certo
quantos segundos se passaram,
mas houve um solução de continuidade,
essa fracção de tempo
em que a tua consciência esteve bloqueada,
e os pulmões falharam,
e o sangue gelou,
e o coração parou,
de puro terror,
até compreenderes que a velha GMC...
tinha accionada... uma mina.


Outra mina, meu Deus!,
Que horror!,
e instintivamente agarrei-me àquela carcaça de mamute,
mal refeito da surpresa de estar vivo.

....À uma e meia da tarde,
à saída do reordenamento de Nhabijões.

Quando saltaste para o chão,
tinhas, sob o olhar aterrado,
os destroços duma batalha:
corpos por todo o lado,
juntamente com espingardas,
cantis,
canos de bazuca e de morteiro,
granadas,
dilagramas,
um rádio,
bocados de chapa e de borracha,
quicos,
botas,
restos de camuflado,
numa profusão indescritível.


Corpos que gemiam,
que gritavam,
ou que talvez fossem já cadáveres.

...No vulcão de Nhabijões,
a oeste de Bambadinca,
Sector L1,
Zona Leste,
Teatro Operacional da Guiné,
na África subsariana.

– Mortos! Tudo mortos!
– gritava-te o puto Umaru,
os braços abertos,
o pânico estampado no seu belo rosto de efebo,
fula, filho de régulo,
sem o seu inseparável pequeno cachimbo,
que sempre usava para lhe dar o ar de falso Homem Grande.


E logo ali o Transmissões,
o primeiro ferido que reconheceste,
todo encolhido junto ao colosso de ferro amalgamado,
numa postura fetal,
de defesa,
em estado de choque.

Abeiraste-te depois do comandante da 1ª secção,
teu companheiro de quarto,
o Marques,
o teu querido Marquês sem acento circunflexo,
mas ele já não reagia à tua voz
nem às bofetadas que lhe davas no rosto,
o olhar vidrado
dos passageiros do barco de Caronte.
Aparentemente não tinha qualquer fractura exposta
mas de um dos ouvidos corria-lhe um fio de sangue.
Um fiozinho,
vermelho e negro,
rapidamente oxidado em contacto com o ar.
Procuraste desesperadamente
os sinais de que ainda estava vivo,
mas sua respiração era cada vez mais fraca,
e o pulso escapava-se-te, entre os teus dedos.


Trágica ironia:
um minuto antes,
ao subirmos os dois para a viatura,
havíamos disputado amigavelmente o 'lugar do morto'.
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

… À uma e meia da tarde de um dia treze,
ao vigésimo mês de Guiné,
em Janeiro de 1971.

Acabaste por ser tu a ir para o 'lugar do morto',
ao lado do condutor.
Mas daquela vez,
e para sorte tua,
a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC,
embora do teu lado.
A velha GMC do tempo da Guerra da Coreia,
que gastava cem aos cem...
e que acabava de fazer a inversão de marcha,
de regresso ao quartel,
em Bambadinca.

Outra filha de puta de mina,
não detectada pelos nossos picadores,
fora accionada, na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões,
a coqueluche do comando do batalhão.
Porra, camaradas,
a escassos metros da anterior,
já fora da estrada!

… À uma e meia da tarde
de um dia que não era sexta-feira 13,
de azar!

Estavas de piquete,
quando duas horas antes uma viatura nossa
accionara uma mina.
Um frágil burrinho, um Unimog 411.
Ia buscar o almoço para o pessoal do reordenamento
O condutor, o Soares, teve morte imediata.
O Furriel Fernandes, também da CCAÇ 12,
o alferes sapador Moreira e outro militar,
ambos da CCS do batalhão,
ficaram feridos, com gravidade…


Mas só depois reparei no velho Tenon,
no Ussumane,
no Sherifo,
mesmo ao meu lado,
a meus pés,
sem darem acordo de si.
E ainda no Quecuta,
no Cherno
e no Samba, nosso bazuqueiro,
arrastando-se penosamente sobre os membros superiores,
como lagartos cortados ao meio.

…À uma e meia da tarde
na estrada da morte,
com as palmeiras de Samba Silate
e o Geba ao fundo.

As duas secções
que seguiam atrás, na GMC,
tinham sido projectadas pela vulcão de trotil,
como se fossem cachos de bananas.
Caso se seguisse uma emboscada,
então seria um massacre.
Tu eras o único que tinha uma arma na mão,
mas inútil,
inoperacional,
encravada,
devido ao choque sofrido…


Não deixei de sentir um calafrio
ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG
e sob o matraquear das 'costureirinhas'
e das Kalash.

… Ali, à uma e meia da tarde,
em Nhabijões,
na Guiné,
far from the Vietnam.


Tinhas acabado de fazer o reconhecimento das imediações,
detectando o trilho dos guerrilheiros
que, durante a noite,
tinham vindo pôr as minas assassinas…
Eles faziam a guerra deles,
tão cruel e tão suja como a nossa.
Esse trilho, mais fresco,
acabava por confundir-se
com os usados pela população de Nhabijões
que a gente sabia
não morrer de amores por nós…


SOS, evacuação Ypsilon,
vou a correr para o heliporto,
sem soro,
sem garrotes,
sem pensos,
sem maqueiro,
sem mala de primeiros socorros!

...Numa luta desvairada contra o tempo,
na estrada Nhabijões-Bambadinca.


Era possível, entretanto,
que houvesse mais minas
pela estrada fora.
Ainda hesitaste
em mandar picar o terreno,
mais alguns metros em redor,
mas não podias perder nem mais um segundo,
para logo seguires de imediato
para os helis
que aguardavam os feridos mais graves.

Mais até do que a solidariedade
entre camaradas de guerra,
mais até que a minha amizade pelo Marques,
de repente o que me terá movido,
o que me deu força anímica,
foi o brutal sentimento do absurdo da morte,
do absurdo daquela guerra,
a raiva contra aquela guerra.

… À uma e meia da tarde
nessa maldita picada do inferno.

Foi uma corrida louca,
aquela,
na fronteira indefinida
que separava a vida da morte
na estrada de Nhabijões.
No primeiro Unimog que te apareceu à mão,
e que levava um carregamento letal de feridos.
Três deles estavam em estado de coma
e tinham como destino outro inferno:
o hospital de Bissau,
os Alouettes III roncando como o macaréu,
sobre o Geba, largo e medonho,
a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte
aos vinte e poucos anos de idade.

…No dia 13 de Janeiro de 1971,
num dia que nem era sexta-feira,
mas que foi de terrível azar,
às treze e meia da tarde,
quando o teu relógio parou
à saída da grande tabanca balanta de Nhabijões,
finalmente reordenada
e controlada…

Luís Graça

______________

(*) Originalmente publicado em: 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)