quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Blogantologia(s) II - (65): Em dia de São Valentim

Vila Praia de Âncora > 4 de Fevereiro de 2008

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Um dia vou ter pena de morrer,
Só por ti
E pelo azul da luz de Lisboa
Nas manhãs perfeitas de domingo.

Um dia vou ter pena de partir,
Não pelo que não vivi,
Mas só por que não namorei contigo
Nas horas e nas desoras
Dos dias em que o azul não era tão azul,
Nem os domingos tão domingos,
Tão perfeitos,
Como tu querias….

Ficarás na dúvida
Se eu afinal sempre era o teu príncipe
Desencantado,
E tu a minha chita,
Selvagem e pouco borralheira,
Em busca do azul perfeito dos domingos
À beira Tejo.

Fora eu transparente como o céu de Lisboa
Lúcido e translúcido,
Tão certo e previsível como o Domingo
Que é o Dia, perfeito, do Senhor,
E talvez tu nunca tivesses escutado
Os meus passos na rua estreita do teu bairro,
Nem sequer lido a letra do meu fado,
Ou estranhado a primeira e única carta
Que te escrevi.
De Amor.

O teu (e)terno namorado

Lisboa, Dia de São Valentim, 14 de Fevereiro de 2008

domingo, fevereiro 10, 2008

Blogantologia(s) II - (64): A triagem de Manchester ou o paciente português

Eurolândia > Portugal dos pequeninos > 2008 > Há sempre um português que (des)espera... no banco do jardim, na bicha do autocarro, no centro de emprego, no banco de urgência, na barra do tribunal, no manicómio, na rua, em casa, na escola, no trabalho, e até no canil...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.




Na sala de espera
do Banco de Urgência
há gente que desespera
com paciência.
Gente com paciência de santo
ou então pouco esperta.

Há gente que não conhece
a porta do cavalo
do hospital.
Sangrai-o e sangrai-o
e se morrer,
enterrai-o.

Mais logo,
eu estou de banco.
Apareça.
Ou então desapareça
da lista dos vivos.

Há um jovem casal
de apaixonados,
just married,
ela de fita amarela,
no pulso,
lívida, branca, exangue,
no banco do hospital.

Há dois negros que dormitam
e que devem sofrer de paludismo.
Estão ali há horas.
Podiam vir dos arrozais do Sado,
há décadas atrás,
tremendo de sezonismo.
Mas... mal por mal,
antes cadeia que hospital

e antes justiça que misericórdia.

Há um casal de paquistaneses
ou de indianos.
Muçulmanos.
Ele é o paciente,
de fita vermelha ou laranja,
que o sistema de Manchester
é quem mais ordena
e não olha à cor da pele.

Racista, eu,
sra. enfermeira ?
Até tenho um amigo preto
da Guiné.
Trabalha, no gosse gosse,
no estaleiro do subempreiteiro,
que não é nenhum mal essa tosse,
é do catarro,
é do tabaco,
é do tempo.

Há velhos.
Muitos.
Em saldo.
Doentes de solidão, abandono, exaustão.
Doentes de Alzheimer, Parkinson, fim de estação.

Chegam ambulâncias.
De Almoçageme, Alcáçovas, Alcácer, Almargem...
Da outra margem.
Tristes lugares ao sul.
Tentativa de suicídio,
diz o bombeiro para o securitas,
e a chusma de voyeuristas
e de tabagistas
que estão lá fora,
ao frio da noite.
A velha quis matar-se com comprimidos.
A maluca tinha alguma necessidade de fazer isso,
pergunta, resignada, a nora.

Alentejanos, ciganos,
mouros, morcões,
jovens de brinquinho,
colarinhos brancos e azuis,
activos e não activos,
pescadores, traficantes,
toxicodependentes,
mães solteiras,
domésticas em robe de dormir,
famílias monoparentais,
doentes pré-terminais...
E até um um cão, um canito,
magricela,
a quem os pacientes dão bolachas.

Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente. Paciente. Dormente.
Pouco ou nada eloquente.
Diz o sistema de triagem de Manchester.
Há um português urgente
que vem na ambulância da emergência pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar.
O resto não conta,
são amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
queixinhas,
maus contribuintes,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma e que bebe e que come,
e não ouve o Pádua
a dizer que no andar é que está o ganho...

Que já não há o azul nem o verde
do meu país
na paleta das cores do gestor
dos doentes
e das doenças.
Que há fé e até caridade,
mas pouca esperança, Senhor.

É triste e feia e fria
a sala de espera da urgência
do hospital,
Senhora Ministra.