terça-feira, maio 01, 2007

Blogantologia(s) II - (39): Uma estranha forma de morte

Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos > Meados de 1965 > Embarque, no TT Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para a Guiné. Ao fundo, o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo ainda em construção.

Foto: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados.


Um estranha forma de morte (1)

Um estranha maneira de dizer adeus.
Um estranho povo, este,
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
em súplica,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.

A Pátria contra a Mátria.
A tentacular força centrífuga
que de há séculos,
ó meu tuga,
te leva os filhos teus,
para fora.
Paridos e expulsos da Mátria,
para longe,
em má hora,
bem para longe,
muito para lá do mar.

Uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos
em fundo preto,
sob um céu de chumbo.

Todas as despedidas são breves
e tristes.
O momento,
em que o Niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
e lá fora chove,
esse momento da partida
nunca se poderia eternizar.
nem conviria.
Não ficou decididamente
na fotografia

Romance do triste soldado,
diz o capitão do mar e da guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a Vate 69,
fotocine, cinéfilo,
garboso, charmoso,
mas já grosso,
pronto para a acção
em terra,
para a porrada,
para o que der e vier.
Rumo à Guiné,
país de azenegues
e de negros.

Há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
depois do Bugio,
no mar alto português,
anuncia o oficial de dia,
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
Vai na segunda comissão,
o provinciano,
o militarão,
o criado de libré,
que nunca trerá ouvido falar
da batalha da Ilha do Como
nem do massacre do Pijiguiti,
nem das colinas do Boé.

E o filme da noite é
uma comédia,
senão divina, muito santa,
acrescenta o nosso primeiro,
que já serviu de porteiro
em bares do Cais do Sodré.
Ao jogo, ficam os dedos,
vão-se os anéis,
puxa-se a manta.

Um gajo bacano
num país de bacanos,
de chicos espertos,
de grandes medos,
de mangas de alpaca cinzentos,
de soldados rasos,
primeiros cabos,
furriéis
e segundos sargentos,

tudo gente porreiçada.

Uma tragicomédia,
escreverei eu
no meu diário
a que mais tarde chamarei
o diário de um tuga.
Onde está o general ?
Onde estão os oficiais ?
Onde está a elite ?
Onde está o chique ?
Os filhos-família,
os primeiros,
a fina flor,
os morgados,
os primogénitos,
os fidalgos,
a casta,
a raça,
o sangue azul,
o pedigree,
o espelho da grei,
os melhores de todos nós ?
Morreram, todos,
com El-Rei,
em Alcácer Quibir.
Mentiram-me em Tavira.

Lisboa, revista, revisited,
pelo Álvaro de Campos
em filme de oito milímetros.
A preto e branco.
Ou a preto e negro,
uma só Nação,
valente e imortal,
ironiza alguém, clamando
pelo António,
pelo Ferro,
pelo Almada
A morrer,
que morra o Dantas, pum!

O Niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir
parar à sucata.
Inglória
a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos
quando dei o nome para as sortes.
Como se fosse aleatória
a amostra dos mancebos.
Estranha palavra esta, a das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.

A despedida breve e triste
do Niassa.
E ainda mais triste o filme,
sem som,
sem palavras desnecessárias,
a preto e branco,
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.

A noiva
que ia vestida de branco
com xaile preto.
A sacerdotisa
da morte.
A novíssima ponte de Salazar.
O velho abutre que, sem pejo,
alisa as suas penas,
dirás tu, Sofia, pitonisa...
Quase morto mas não enterrado.

Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela
erguida,
a última caravela,
o último império,
Lisboa e o seu casario,
branco.
Lisboa-cliché.
Lisboa conformista
e conformada.
O filme a preto e branco,
um gato preto à janela.
Lisboa e as suas ruínas
pré e pós-pombalinas.
O poço dos mouros,
o poço dos negros,
o lundum, a umbigada,
a procissão
da Nossa Senhora da Saúde.

Ah, e a Santa Inquisição,
zelando pela pureza do sangue
e a rectidão das nossas consciências
e a salvação da alma
do Senhor Dom João,

O Quinto.

Revisito os heróis da escola primária:
Albuquerque,
Mouzinho,
Teixeira Pinto.
Ao alto,
o cemitério dos Prazeres
com os seus aprumados ciprestes negros.
Em frente,
os mastros dos navios
da carreira colonial,
o império por um fio,
a vida
que se recapitula
de fio a pavio,
o último comboio da noite
que veio do Campo Militar
de outra santa, Margarida.

As santas das nossas mães
que ficaram em casa
a acender a vela à Santa das Santas.
O menino de sua mãe,
um fado
que eu ouvi no Bairro Alto
e que já não era batido
nem dançado
nem cantado,
um fado apenas gemido.
Uma estranha forma de vida,
uma estranha forma de morte.

Ordeiros,
os soldados
como os cordeiros
da matança da Páscoa.
No Cais da Rocha Conde de Óbidos,
alinhados,

formatados,
como os eléctricos amarelos,
nos seus carris de ferro,
que vão para a Cruz Quebrada.
Empilhados,
vão os soldadinhos,
de chumbo,
aboletados,
roubados às mães,
requisitados aos pais,
para servir
a Pátria,
o Pai-Patrão
que nos cobra o dízimo
em sangue suor e lágrimas.

Mudos, agrilhoados,
os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
fujões, traidores,
ladrões, facínoras,
bufos, legionários,
homicidas, regicidas,
sodomitas, infiéis,
cristãos mui pouco ortodoxos,
gente do reviralho,
rendeiros e cabaneiros,
fidalgos arruinados,
maçaricos, pescadores,
soldadores, trolhas,
moços de estrebaria,
cozinheiros, corneteiros,
apontadores de diligrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
sacristães...

Coitadas das mães
que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho
da Feira da Ladra.
Subindo o portaló do navio, o cadafaldo,
com um nó na garganta,
mal disfarçado,
p'lo lencinho,
verde ao rubro.

Pobres mães, pobrezinhas,
com os seus pequenos lenços brancos
como em Fátima,

no 13 de Maio.
Algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos que já lá vão
não são de exaltação,
patriótica.
O hino,
agira canta-se com voz rachada,
em disco riscado
pelas senhoras,
tias, dirias hoje,
do Movimento Nacional Feminino.

A mesma atitude
admirável
de resignação hipnótica
ante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem.
Em troca de tão pouco ou nada.
Diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que é um povo religioso,
admirável,
porque tem o sentido do pathos,
da tragédia inelutável.

Senhora minha,
protege-me,
do IN,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros das kalash e da costureinha.
Dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas assassinas
e das formigas carnívoras.
Mas também do cone de fogo
das nossas bazucas
e dos canhões sem recuo.
Do coice do obus catorze.
Das piçadas
e dos louvores dos meus comandantes,
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi,
soldado à força
arrebanhado,
arregimentado,
aboletado,
requisitado,
condenado,
ameaçado,
camuflado.
Livrai-me, Senhora,
da fome, da peste e da guerra,
da malária, do beriberi,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.

Lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
Pus o combate do possível
na minha agenda
de expedicionário da Guiné.
Pus o fio com a medalha de ouro
ao peito,
que me deu a namorada,
coitada, destroçada.
Não, não uso a cruz,
o crucifixo.
Não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
Alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
Do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
Para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu vir morrer longe.
bem longe
para lá do mar,
em terra que não me viu nascer.

Descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio,
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos,
engraxará as tuas botas e
porá bandeira nacional
em cima do teu caixão.
Se não morreres de morte súbita.
Se não morreres de morte matada.
Se não morreres de coração.

Não vos deixaremos para trás,
camaradas,
sempre ouvi dizer aos páras.

Levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
Uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
Outrora era de xisto ou de grés,
entre os meus antepassados
da pré-história recente.

Camaradas
(que colegas é só nas putas):
se for eu,
a morrer,
que me enterrem
numa anta do meu megalítico país.
Não me deixem a criar raíz
na bolanha do Cufeu.

Luís Graça

Lisboa, Maio de 1969 / Maio de 2007

___________

Nota de L.G.:

(1) Versão, aumentada e corrigida do poema O meu país megalítico > Vd. post de 15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - DXL: o meu país megalítico (Luís Graça)

Há também uma versão, anterior, publicada no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 28 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1630: Uma estranha forma de morte (Luís Graça)