domingo, dezembro 07, 2008

Blogantologia(s) II - (75): MSN para os amigos em viagem

O entardecer na Praia da Areia Branca.

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Na Ponta de Sagres
Onde o mar acaba
E tu, poeta,
E tu, arquitecto,
Riscas o sonho
E desenhas a autoestrada
Da liberdade,
Pode não haver sol,
Mas há o farol
Da amizade.

sexta-feira, novembro 14, 2008

Blogantologia(s) II - (74): Contos do barqueiro de Caronte


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá >  O Rio Geba, entre o Xime (margem esquerda) e o Enxalé (margem direita), numa foto de Carlos Marques dos Santos (, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados


No Geba Estreito 
ou os doze contos do barqueiro de Caronte (*)


1.

Um homem passa o rio, a nado.
Um homem atravessa a ponte sobre o rio.
Um homem cai ao rio, baleado.
Há uma piroga, no tarrafo. metralhada.
E flamingos brancos, tingidos de vermelho.

2.

Um homem pensa na jigajoga da vida e da morte.
Um homem olha-se ao espelho.
Um homem porfia, e nem sempre alcança.
Um homem tem uma crise, de confiança.
Um homem do norte camba o rio.
A sul. A vau.
O Geba Estreito.
Que a última coisa a perder é a esperança.

3.

Um homem desenha uma ponte, imaginária,
entre dois pontos de cambança.
Um homem põe-se a pau,
a caminho do Mato Cão.
O inferno em frente,
o rio serpente, a bolanha de Finete,
um very-light, um foguete.

4.

E Lisboa ali tão longe...
tão azul, tão gregária.
Lisboa, o cais de Alcântara,
uma multidão de pontos negros.
Outra ponte, outro rio.
Saudades a mais, um nó na garganta.

5.

Um homem do norte faz o corte epistemológico
dos pré-conceitos etnocêntricos.
Quem és tu, viajante ?
Quem és tu, barqueiro ?

6.

O homem é o mal escatológico
que atravessa o céu de bronze.
O homem é o jagudi em voos concêntricos.
O homem é a hiena que ri.
O ferreiro, de outrora, hoje o dari.
O homem é o pássaro-bombardeiro.
O animal alado.
O helicanhão.
O falo de fogo.
O obus catorze.
O RPG Sete.
O Katiusha.

7.

Um homem é apanhado pelo macaréu da história.
Como um cão,  sem glória.
E na bolanha de Finete descobre 
que não há ponte nem salvação,
que há terra e céu, mas não há elo de ligação.

8.

Um homem perde a memória,
ao afundar-se no tarrafo do Geba.
Um homem chama o barqueiro da outra margem.
Em vão.
O barqueiro faz contas à vida
que custa manga de patacão.
E ao progresso que não chega,
ao motor de explosão,
ao motor da Yamaha,
à explosão dos cinco sentidos,
aos Strela, aos Katiusha,
à liberdade de circulação.

9.

Um homem passa a ponte,
a passo, a peso pluma.
A ponte armadilhada.
O barqueiro conta um conto em cada viagem.
O barqueiro de Caronte.
Um peso, irmão.
Um bilhete de ida sem regresso.

10.

Um homem exorta o soldado
a que leve a guerra a peito.
É o capitão, medalhado,
que nunca irá chegar a oficial general.
O fantasma do capitão-diabo,
vagueando pelo Cuor.
Estatuado, na capital.

11.

Vais no Bissau,
num barco à vela,
no barco da Gouveia.
Aproveitas a maré-cheia
e o cacimbo sobre Ponta Varela.

12.

O milícia, número tal, vai morrer, exangue,
como a última estrela da manhã.
E tu espreitas o rio,
da tua torre de Babel.
Um terceiro homem pára,
no semáforo.
Vermelho. De sangue.
A caminho de Madina/Belel.

Versáo revista, 19/5/2023

___________


Nota de L.G.:

(*) Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 10 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3431: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (3): Um homem da palavra e da acção (Luís Graça)

quinta-feira, outubro 30, 2008

Blogantologia(s) II - (73): A filha de putice da vida



Lourinhã > Praia deVale de Frades > 8 de Junho de 2007 > A capacidade de adaptação e de sobrevivência dos moluscos.

Lisboa, Benfica > Grafito > 13 de Setembro de 2007 > Alguém um dia escreveu ao Alberto de Lacerda (que morreu há tempos, pobre, só e longe da pátria, como tantos outros poetas portugueses): "Merda, merda purra, para o Alberto de Lacerda com ternura"... Outro poeta, anónimo, anarquista, foi apanhado no Bairro Alto a degradar, ainda mais, com os seus grafitos, o depauperado património edificado da cidade... A prova material do crime ficou lá registada na parede: "Se a merda valesse ouro, os pobres nasceriam sem cu"...

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Ao Zé António que faz hoje anos e a quem a vida tem dado tantas coisas boas, que ele bem merece, mas que também às vezes lhe prega as suas partidas... LG


A vida prega-nos muitas partidas,
Umas boas e até divertidas,
Outras duras, puras e duras,
E muitas vezes injustas.

A vida paga-se caro,
Com língua de palmo,
Com cabeça, tronco e membros,
Includindo as custas
Do processo,
Diz o salmo,
Devidas pelo continuum do nascer ao morrer.

A vida está pela hora da morte,
Mas não vale a pena
Pedir-lhe contas,
Que ela, a vida,
É uma viagem sem regresso
E está-se nas tintas
Para os viajantes,
Os inocentes,
Os videntes,
Os loucos,
Os sem abrigo,
Os doentes,
Os portadores de chagas & apostemas,~
Os doentes de dor de dentes,
Os poetas,
Os arquitectos de sistemas,
Os incautos,
Os imprevidentes,
Os que não fizeram seguro de viagem,
Os tontos e as tontas,
Como nós.

A vida é uma gaiata,
Da caravana do Faroeste,
Caprichosa,
Leviana,
De mini-saia,
Perna ao léu,
Muita lábia,
Pouco siso,
Licenciosa,
Pobretana,
A tentar impingir-te
O elixir da eterna juventude.

Outros, mais avisados e sizudos,
Sortudos,
Barrigudos,
Dir-te-ão, my friend,
Que só temos o que merecemos
Ou o que conquistámos
.

A vida é uma roleta russa,
A vida sorri-te, com meia cara,
E tu sorris à vida, alarve,
Como um sorriso amarelo,
De orelha a orelha.

A vida é um jogo de sorte e azar,
Um carrocel,
Uma escada de caracol,
Uma bolha de ar,
Um bordel,
Um brevíssimo orgasmo em si bemol.

A vida é uma puta
Ou é a nossa vida que é uma puta de vida!

... Mas um lutador,
Um ganhador, como tu,
Não vai atirar a toalha ao chão
Aos primeiros desaires,
Às primeiras filhas de putice da vida!

quarta-feira, setembro 24, 2008

Blogantologia(s) (II) - (72) Nasceu e morreu um pretinho da Guiné



Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau. Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Cadi era o seu nome. Vivia em Farim do Cantanhez. Esteve recentemente às portas da morte. E perdeu o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses. Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil... "Que raiva, que mundo, que desgraça de país" - é a primeira reacção que nos ocorre, a nós, que estamos num país que tem um dos baixos indicadores de mortalidade infantil do mundo... Sofremos, e muito, com estas notícias tristes que nos chegam da nossa querida Guiné... e que nos envergonham a todos (LG).

Foto: ©
Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados..

(…) “Segundo os dados da UNICEF, em cada mil crianças nascidas na Guiné-Bissau, 233 morrem antes de completar os cinco anos de idade, das quais mais de metade (138) não chegam a fazer o primeiro aniversário”. (…) (Dos jornais)

Nasceu e morreu um pretinho da Guiné (*)


Cadi, de seu nome.
Amorosa,
uma ternura,
uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
apascentando na orla da bolanha.
Era nalu,
vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
com direito a pensão
ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
em Iemberém,
no início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
das crianças africanas,
quando veem uma Mulher Grande, branca.

Homem estava em Bissau.
Todo o mundo vai p’ra Bissau,
onde é a escola da vadiagem e da malandragem.
Homem vai embora.
Diz que vai à lenha
e não mais volta.
Que o mundo é bem maior
e mais sedutor
e bem mais perigoso
que Farim do Cantanhez,
tabanca interior no interior.
E deixa Cadi com a barriga cheia.
Agora Cadi vai a Bissau
levantar a pensão do pai.
As duas novas mães, tugas,
dão-lhe dinheiro para a viagem.
Ficam amigas.
Prometem dar notícias,
de Lisboa, cidade grande,
chão dos tugas,
e mandar roupa para o menino ou menina.
Cadi bem gostaria que fosse menino,
para trabalhar na horta com ela.

Agora Menino já nasceu
e vai ter nome de padrinho, tuga,
lá longe, bem longe,
tão longe,
que é preciso tomar avião,
avião grande.
Nuno, Nuninho,
vai ser o nome do menino,
Por homenagem
ao senhor capitão-fula,
homem valente de Mejo e de Guileje,
Nuno Rubim, hoje coronel.
Todo o mundo está contente,
família está contente.
nalu está contente.
Agora que o Nhinte Camatchol proteja o menino
e a sua mãe Cadi.
e o avô, pensionista,
combatente da liberdade da pátria.
E o Estado guineense
que ainda paga pensão do avô.
Que a vida é a travessia de um rio,
cheio de rápidos e de armadilhas,
de crocodilos,
de diabos,
de irãs maus…
A vida corre, como a água do rio.
Vem tempo das chuvas,
vem mosquito,
vem insecto, aos milhões,
vem virús,
vem bactéria,
vem fungo,
vem nuvem negra,
vem HIV/Sida,
vem tempestade,
vem fome,
vem doença,
vem ave agoirenta,
vem a morte, aos quatro meses...
Por paludismo!

A dor quebra coração da gente.
Da Cadi. 
Da Júlia. 
Do Nuno.
O Nuninho morreu.
Dirão as estatísticas:
foi mais um dos duzentos
em cada mil
que não chega aos cinco anos.
A implacável estatística
da mortalidade infantil
na Guiné-Bissau:
138 por mil nados-vivos não sobrevivem
ao primeiro ano,
diz a OMS.
O que é tu podes fazer ?
No teu país, há um século atrás
também era assim...

A Alice não sabia,
não sabia das últimas notícias.
Hoje foi comprar roupinhas, lindas,
para o filho da Cadi.
Ao Colombo,
em Lisboa,
no chão dos tugas,
tabanca grande.
Telefona ao Pepito
para saber quando vai,
de regresso a casa,
em Bissau,
no Bairro do Quelelé,
para retomar o belíssimo trabalho da AD.
E se ainda tem espaço na mala,
ele ou a Isabel,
para arrumar uma roupa bonita p'ró menino.
Eu deve estar lindo
e robusto
e saudável.
Que em Iemberém, no Cantanhez,
os meninos não tinham barriga grande.
E eram lindos, robustos, saudáveis.
Telefona ao Nuno e à Júlia
para saber notícias da Cadi e do Nuninho.

Do outro lado da linha,
... o desalento, a tristeza, a desolação.
Alice, o Nuninho morreu, aos quatro meses!...
De paludismo.
Sem assistência médica.
Sem esperança.
Sem salvação.
Como um cão vadio,
que morre na beira da estrada,
no meio do capim,
na lixeira do bairro.
E a Cadi também esteve às portas da morte.
Por paludismo e desinteria.
O Nuno e a Júlia providenciaram, a tempo,
o recurso a uma clínica privada
em Bissau.
E a Cadi salvou-se.
Desta vez salvou-se.
Porque gente amiga e solidária
proporcionou os cuidados de saúde decentes
que o dinheiro pode comprar.
Cadi perdeu o seu menino,
espero que não tenha perdido
a fé e a esperança nos seres humanos,
mesmo naqueles
que assobiam para o lado,
enquanto as crianças da Guiné morrem
como os cães à beira da picada e do capim.
De paludismo.
De pneumonia.
De diarreia.
De má nutrição.
De Sida.
De abandono.
De indiferença.
De falta de médico
(Que não volta
e fica a ganhar bom dinheiro em Lisboa,
tabanca grande,
chão dos tugas).
E de falta de medicamentos.
E de meios de prevenção e tratamento.
E das coisas mais elementares e essenciais da vida,
como a água potável.
ou um mosquiteiro impregnado.

O Nuninho nasceu e logo morreu.
Um pretinho da Guiné nasceu para morrer.
Logo logo,
de paludismo,
que é a doença da vergonha dos ricos
e um dos inimigos mortais dos pobres,
nomeadamente em África.
O Nuninho não é, não devia ser
um número, mais um número
para as estatísticas, frias e cínicas,
do nosso descontentamento
e da nossa má conscência.
O Nuninho não era mais um pretinho da Guiné.
O Nuninho era um menino nalu,
filho da Cadi,
sem pai.
Ou com um mau pai, ausente,
que foi a lenha e não mais voltou.
E nesse dia, fatal, em que adoeceu,
sem a sorte do Nhinte Camatchol
a protegê-lo.

Hoje a morte em Bissau tem um rosto:
o do menino da Cadi.
E a ti, pobre gazela,
que direi ?
Coragem,
és nova,
a vida continua...
Não tenho palavras,
a não ser de circunstância,
para calar a tua dor...
E mesmo assim sei
que irás lutar para vingar a morte do Nuninho,
que irás lutar pela felicidade a que tens direito,
que irás herdar a coragem do teu velho pai,
que lutou por um país novo,
onde os meninos pudessem nascer e crescer,
lindos, livres, robustos e saudáveis.
Não tens outro jeito, Cadi,
não temos mesmo outro jeito,
os guineenses
e os amigos da Guiné.

Luís Graça

Setembro de 2008 (**)

(*) Dedicado à Júlia, à Alice e ao Nuno Rubim,
Que na semana de 1 a 7 de Março de 2008
se afeiçoaram à Cadi e ao seu futuro menino,
que só teve neste mundo
direito a uma curtíssima viagem de 4 meses.


(**) Revisto nesta data. Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça).

quarta-feira, setembro 10, 2008

Blogantologia(s) II - (71): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra

Com o atraso de décadas,
quiçá de séculos,
presto hoje o meu preito
às mulheres portuguesas
que se vestiam de luto
enquanto os maridos ou noivos ou namorados ou irmãos
ou simplesmente amigos
andavam na guerra do ultramar.
Ou guerra colonial, como se queira.
Já foi há tanto tempo
que eu perdi as contas aos contos,
às estórias,
às vidas,
às lendas,
às narrativas.

Venço, por fim, a minha relutância,
o meu preconceito,
o meu medo do irracional
e porventura o meu medo visceral do sagrado,
e presto a minha homenagem
às mulheres que rastejavam no chão de Fátima,
implorando à Virgem o regresso dos seus filhos,
sãos e salvos.
Só as mulheres, em bando, são capazes
de implorar a piedade dos deuses
e ao mesmo aplacar a sua ira,
para logo a seguir imprecar contra eles,
se for caso disso.

Decididamente,
sem pejo nem pudor,
presto a minha homenagem
às mulheres que continuavam,
silenciosas e inquietas,
ao lado dos homens
nos campos,
nas fábricas
e nos escritórios.
Por que havia um silêncio
que não era cumplicidade,
que não era traição,
que era inquietação,
que não era claudicação,
que era a raiva a crescer
dentro do peito,
que era porventura já
a emergência, a explosão
da revolta e da liberdade.

Descubro a cabeça,
tiro o chapéu,
ajoelho-me,
perante estas mulheres do meu país
que ficavam em casa,
rezando o terço à noite,
como a minha mãe
e as minhas manas
e até o meu pai,
a quem, de resto,
nunca agradeci este gesto de amor.
Nem em público nem em privado.
Nunca saberia, porventura, merecê-lo
nem muito menos agradecê-lo.

Mas também endosso
as minhas palavras de admiração
às que aguardavam com angústia,
pelo aerograma,
na hora matinal
(e às vezes mortal)
do correio,
vindo do SPM número tal.
Sem esquecer as que,
muito poucas,
subscreviam abaixo-assinados
contra o regime e contra a guerra.
Às que, muito poucas,
escreviam,
liam,
tiravam a stencil
e distribuíam
comunicados e folhetos clandestinos.

Às que, também raras,
sintonizavam altas horas da madrugada
as vozes da rádio que vinham de longe
e que falavam de resistência
em tempo de solidão
e de servidão.

Homenageio, sim, àquelas que, muitas,
tiravam carinhosamente
do fumeiro (e da barriga)
as chouriças
e os salpicões
e os nacos de presunto
e as morcelas
e as alheiras
que iriam levar até junto dos seus filhos,
homens-toupeiras,
no outro lado do mundo,
no calor dos trópicos
e na humidade dos abrigos,
um pouco do amor de mãe,
das saudades da terra,
dos cheiros da casa e dos animais,
dos sabores da comida,
e da alegria da festa.

Mas também, e por que não,
às, muitas,
e em geral adolescentes, virgens,
e às jovens solteiras,
namoradeiras,
que se correspondiam com os soldados
mobilizados para o ultramar,
na qualidade de madrinhas de guerra.

Não tive, nunca quis ter,
madrinha de guerra,
por preconceito,
por orgulho e preconceito,
por achar que era uma instituição ou criação
do Estado Novo,
dos senhores da guerra,
e das senhoras que os geravam…

Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma
a uma madrinha de guerra.


Lisboa, 1981/2008

segunda-feira, setembro 01, 2008

Blogantologia(s) II - (70): Deixa que os que gostam de ti, te apapariquem




Lourinhã > Praia da Areia Branca > Agosto de 2008 > Surfistas ao sol...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Aforismos de Agosto
(a pensar em ti)


Agosto é vento,
É areia,
É sal,
Contra as pálpebras dos marinheiros
Que morreram nos teus sonhos.
Nunca deixes morrer os sonhos.
Os teus sonhos.
Nem os marinheiros de olhos azuis
E cabelos louros ao vento
Que subiam os mastros dos navios
Do teu museu do mar, imaginário.

Tu que vieste com o vento norte,
Ganhas novo fôlego e alento
E outra leveza
Ao perfazeres os dez mil passos
Diários, matinais, no areal.
Para que o corpo não crie raízes.
E a gente possa desfrutar a beleza
Da enseada de Paimogo.

O melhor de Agosto
São as esplanadas
Das pequenas terras de Portugal,
À beira mar.
Tão cheias de nadas,
Tão saloias,
Tão pimbas,
Tão belas.
Conheci-te numa delas.

Agosto são os escorpiões tatuados
Nos corpos
Das petites filles portugaises
Que voltam à terra dos avós.
Agosto são as alegrias e as vertigens
Do regresso.
Porque voltamos sempre às origens.

Os únicos que têm de vencer
São os surfistas.
Vencer a onda,
O vento,
A areia,
O sal.
Não temos que destruir para vencer.

Agosto é também
O puro desejo da mãe
Pelo filho incestuoso.
Lânguidas mamãs,
De mamas flácidas.
São focas estiradas ao sol.
São focas.
São fofas.
Como é bom ser mamã,
E foca
E fofa
E babada.

O melhor de Agosto
É teres o dia todo
Por tua conta,
O dia, a semana, o mês.
Os dias úteis do mês.

Mas o melhor de Agosto é o teu dia.
Dezoito.
E estamos cá todos,
A apaparicar-te...
Deixa que os que gostam de ti,
Te apapariquem.

Lourinhã,
Rua da Misericórdia,
18 de Agosto de 2008.

Blogantologia(s) II - (69): O fim da notícia, ou nem sequer isso

O fim da notícia, ou nem sequer isso

Pedimos desculpa,
Mas hoje não há notícias…
Um dia gostaria de acordar sem notícias.
Sem televisão.
Sem jornais.
Sem Internet.
Sem o ruído das ondas hertzianas.
Sem mensagens.
Sem mensageiros.
Sem imagens
Nem palavras.
Nem sequer as duas últimas palavras
Do locutor de serviço a pedir desculpa
Por não haver notícias.

Um dia gostaria de acordar
Com a notícia do fim da notícia.
Ou nem sequer isso.
A notícia do fim do circo mediático.
Ou nem sequer isso.
Gostaria de acordar
Só com o buraco negro do ecrã
À minha frente
A milhões de anos-luz
No meu telescópio.
Um dia gostaria de acordar
No mais absoluto silêncio.
Nem ouvir sequer o ruído
Do vaivém das ondas do mar.
Ou nem sequer isso.
Um dia não gostaria sequer
de acordar.

Vimeiro, Lourinhã, 21 de Agosto de 2008, Bicentenário da Batalha do Vimeiro (1808-2008)

Blogantologia(s) II - (68): Gracias à la (mo)vida

A vida é la movida.
É Sagres.
É Boémia.
E choco frito.
Tudo o que a gente gosta.
Uma esplanada à beira-mar.
O sol.
A maresia.
A boa vida.
A sorna.
O fado.
A morna.
O dolce far niente.
Com a gente de quem se gosta.
Muito, pouco ou nada.
Mais a Nossa Senhora dos Milagres
Que te acode,
Quando aflito.
Enquanto a maré sobe.
E a noite espreita.
E a morte não pré-avisa.

Olha a moreia da costa,
Que é a melhor do mundo.
A vida é pregão.
A vida é merda.
A vida é Sagres, é Boémia.
A vida é hipoglissémia.
A vida é adrenalina.
A vida é prego a fundo.
A vida é stresse.

Sexta-feira à tarde,
Ao fim da tarde,
Uma hora antes do pôr do sol.
A vida é festa.
La fiesta, amigo.
Vengo de la altiva Castilla.

No TGVê espanhol
Que não paga imposto
único
de circulação.
Que o futuro não paga imposto,
Nuestro hermano.
Pressupuesto, amigo.
Que viva la siesta!
Que viva la vida!


Mas agora que vem aí a crise,
Como é que eu chego à ponta mais
acidental
Da Europa ?
Para comer o meu choco frito,
No bar da Peralta,
A las cinco de la tarde.
Com navios negreiros,
Fantasmagóricos,
Na linha do horizonte,
A quinze milhas.
Com os jacobinos do Junot
Na película da memória.
O Vimeiro aqui tão perto.
Com autos de fé,
Mouros, judeus, corsários,
No meu ADN de português
Sem história,
Maçarico, maltrapilho, errante.
No mar onde naufragam
Todas as boas consciências
E se afinam as ciências,
As ditas duras mais as ditas moles.

Um homem sorri com meia-cara
O sorriso amarelo do cinismo.
Aqui,
No cabo da terra,
Onde se proclama a ditadura do sucesso.
E do novo riquismo.
Com o isco
Da vã glória de ganhar
A medalha olímpica.
A vida eterna.
O Nobel.
Um lugar no paraíso.
O Olimpo,
Condomínio fechado dos deuses.
Que dos perdedores não reza a História.

A vida é la movida
No Peralta Bar,
Que não vem na lista do Expresso
Da Coma, Mesa & Roupa Lavada.
Haja lugar à mesa,
comprida,
e valha-nos Baco, velho compincha.
Viva o Portugal do petisco!
Viva o mês de Agosto!

Deixei os meus velhos
Institucionalizados
Nacionalizados
Alegaliados
Sedados
Securizados
Acorrentados
À árvore do Welfare State.
Na Atalaia,
A caminho do Porto das Barcas.
Ficaram aos cuidados de uma ucraniana
Que era enfermeira na sua terra,
E da santa padroeira
dos pescadores,
A Nossa Senhora da Guia.
Que há sempre uma santa para todas as aflições,
Das dores do parto
À agonia da morte.
Que às vezes, mais vale a morte
Que tal sorte.

Tenho insónias às cinco da manhã,
Mesmo sabendo que da janela
Do quarto dos meus velhos
Há uma linda vista para as Berlengas.
E que a associação é
Cultural,
Social,
Artística,
Desportiva
e Humanitária.

Minha mãe, minha avozinha,
Tens a graça até no nome,
Não é por seres mais velhinha
Que de amor passarás fome.


Passo pela loja do chinês,
Fugido de Tianamen,
E compro um prato
De Alcobaça, pintado à mão,
De contrafação.
Com quadras pimbas
Ao amor de mãe…

Brilhas como uma estrela,
No teu quarto, lá no lar,
Tens uma linda janela,
Com vista de céu e mar.


Quem disse que a vida é bela,
E que as mães é que dão cabo dela ?
Desligo o botão da televisão,
Puxo o reposteiro da janela
Donde vejo o mundo a cor de rosa,
Arrumo o cavalete
E as tintas do arco-íris.
E peço uma posta de moreia frita
E um copo de tinto.
É a hora da doce melancolia
E do leve sentimento de culpa
E da idiota reflexão sobre a idiossincrasia
De se ser velho, europeu e português,
Na ponta de uma navalha
Da economia
Da política
Da demografia
E da geografia.

Não escolhi nascer.
Não escolhi pai e mãe.
Não escolhi o pedaço de chão onde fui parido.
E não sei o que farei com este poema,
Que não vale um algoritmo
Nem um simples teorema.
E que não é de protesto
Nem é manifesto.
Entre a ciência da morte
E a fé da ressurreição,
Haverá sempre uma santa
Que me valha.
Ou uma azinheira ou uma carvalha
Onde possa pôr a uma santa aparecida
Que me salve da má consciência
De la movida.

Lourinhã, Praia da Peralta, Agosto de 2008

Blogantologia(s) II - (67): Se tens galinha perdês, não a mates nem a dês

Se tens galinha perdês, não a mates nem a dês

Como era simples a vida da camponesa
Que ia ao monte buscar lenha
No carro de bois.
Ou que, de saco à cabeça,
Ia levar o grão de centeio
À azenha.
E que abria as pernas, depois,
Ao seu homem e seu amo,
No meio do campo de milho.

Que quadro,
Que pintura,
Que beleza,
Tardo-naturalística,
O desta humilde portuguesa,
Sem rosto,
Sem nome,
Sem registo,
Sem trilho.
Sem a mística
Nem a estética do Movimento Nacional Feminino.
Porra e lenha,
É quanto a venha
.

Como era simples e brutal
A vida da mulher do campo
No tempo em que ainda havia
A distinção socioantropológica
Entre a cidade e o campo.
E havia o carro de bois,
E a maçã, biológica,
E o império colonial,
E a costeleta de Adão
E as criadas de lavoura eram violadas
Em cima da meda da palha de centeio.
Enquanto os bois gemiam
E as rodas do carro chiavam
E o abade pregava:
Freiras e frieiras
É coçá-las e deixá-las
.

Como eram imutáveis as leis
Que regiam as relações
Entre machos e fêmeas,
Entre fidalgos e rendeiros,
Entre donzelas e donzéis,
Entre soldados e capitães,
Entre ricos e pobres
Entre operários e patrões.
E cada um tomava o seu lugar
No desconcerto das nações
Ou no palco do teatro da vida e da morte.
Se queres conhecer o vilão
Mete-lhe o mando na mão.


Como era estupidamente alegre
A infância, breve,
No tempo em que a sardinha
Era para três.
E sobreviva o mais forte.
E o galo cantava
Para a galinha perdês.
E a vida fiava-se e tecia-se
Linha a linha.

Como era curta a vida,
A esperança de vida,
E certa, tão certa, a morte.
Muita saúde, pouca vida,
Porque Deus não da(va) tudo.

Ou noutra variante, feminista:
Se tens galinha perdês,
Não a mates nem a dês.

domingo, abril 06, 2008

Blogantologia(s) II - (66): O Parque dos Poetas do Isaltino

Cartaz do Parque dos Poetas

© Luís Graça (2005)


Originalmente publicado, no Blogue-Fora-Nada, como post de 3 Julho de 2005 > Blogantologia(s) - XXVII: O Parque dos Poetas .
Revisto, hoje, para poder ser dedicado à minha Joana, que faz 30 anos. E a quem há 14 anos atrás, eu escrevi a seguinte máxima singela, típica de um poeta de encomenda(s):

"a felicidade,
(...) se não me engano,
é também isso
de seres tu a construir
a tua própria vida
com e através dos outros
e às vezes contra os outros".


Parque dos Poetas do Isaltino

Poeta é quem tem
Uma estátua do Simões
No Parque dos Poetas
Mas também
As contas em dia
Nos Serviços Municipalizados
De Águas e Saneamento
De Oeiras.

Poeta não é
O Bocage, émulo de Camões
Que não tinha maneiras,
E, pior que tudo,
Dizia asneiras:
- Porra, atchiiim!
- Ai, tia, que ordinário,
Esse Ary.
Ah!, o Zé Carlos,
O Ary dos Santos,
O planfletário,
O pseudo-revolucionário,
O bardo
Do botequim!

Ser poeta não é
Ter os colhões...
In su situ
Como o Mário,
O Cesariny,
Que não quis, o parvo,
Ganhar o euromilhões
E entrar para a história
Da literatura do imobiliário.

Entrada para o Panteão Municipal de Oeiras

© Luís Graça (2005)










Em questões de género,
Aplique-se, entretanto,
O camartelo
Camarário,
Perdão, o regulamento municipal
Em forma de soneto,
Que manda atribuir quotas
Às senhoras:
- São cotas, senhoras, são cotas!
Para o caso são três, não mais,
Que foi a conta que Deus fez:
Natália, Sophia, Florbela.

- Mas que raio de país é este,
Em que a poesia é coisa de homens! -
Grita o almoxarife dos SMAS.
As senhoras, meu Deus,
Ficam sempre bem
Nas quermesses da cidade,
Nos jogos florais,
Nos bazares da caridade,
Nas feiras e mercados,
Na vida e na tela,
Nas telenovelas,
Nos lavadouros públicos,
Na vida-de-faz-de-conta,
No passeio das virtudes,
Na despedida dos soldados,
Na partida das caravelas para a Índia,
Nos funerais
E nas procissões.
Nos comícios.
Nas comixões.

Um século atrás
As nossas queridas poetisas
Teriam ficado à porta do parque,
Com botinha de pé alto
E saias de entrefolhos,
Com cliché tirado pelo Joshua Benoliel,
Capa na Ilustração Portuguesa,
E legenda a condizer:
"Não ficam bem as senhoras
Que se metem a doutoras".


Salvou a Natália
A honra do gineceu,
Ao trocar a poesia por comida
Que sempre enche a barriga:
"Senhores autarcas, sois a cidade,
E eu a cereja no cimo do bolo serei,
Não há pólis sem o parque
Dos sonhos que vos roubei".

Dantes os poetas, os machos,
De bigode farfalhudo
Ou de pálidas cores andróginas,
Íam para o Olimpo,
Laureados,
Ou para o Aljube,
Agrilhoados,
Ou para o Manicómio
Do Rilhafolhes,
Ferrados e dopados,
Ou para o Tarrafal,
Exilados,
Ou para o Sanatório,
Tuberculizados.
Para a Ilha da Madeira,
Os mais afortunados.
Ou para a Morgue,
Congelados,
Ou até para o Panteão Nacional,
Nacionalizados.
Conforme as vagas que houvesse
E o equilíbrio dos quatro humores
Do Senhor Intendente Geral.
Só a Sophia pediu para voltar:
Para passar os dias que não viveu
...Junto do mar.

Hoje o poeta,
Meus senhores,
Não sonha nem dorme
Nos bancos de jardim,
Ocupados pelos sem abrigo,
Os desistentes,
Os repetentes,
Ou como se diz agora
Os infoexcluídos...

Hoje o poeta vai directamente
Para o Parque,
De preferência já morto e cremado.
O Parque dos Poetas.
Das merendas.
Dos velhinhos
Que dão milho aos pombinhos.
Das criancinhas
Da escola, de bibe
Aos quadradinhos.
Dos desempregados
À espera do subsídio de
Desemprego
Ou do emprego virtual,
Do teletrabalho,
Da chamada do call centre,
E dos frutos da flexibilidade
Organizacional.
E a fazer contas
À puta da vida
Que está pela hora da morte.

Em vão, protestou
O Rosa,
O Ramos, o António,
Adjectivando a liberdade:
Mas que coisa horrorosa
Se ela não fosse liberdade... livre!

O Parque dos Poetas
E dos namorados,
Do arco e do balão
E das quadras
Ao Santo António,
Milagreiro,
Casamenteiro,
Brigão,
Brejeiro,
Fodilhão.

Porque a Poesia
Quando nasce não é
Para todos,
Terá já dito um estrangeirado,
O Conde de Oeiras
E futuro Marquês de Pombal
(Volta, Marquês, que estás perdoado!)
Aos eleitos e aos camareiros,
Atentos e venerandos,
Em soirée,
No seu paço,
Ali mesmo, junto à Marginal.

Homens de letras
Ou de cânones,
Os poetas lusitanos.
Míopes, nos seus fatos
Poídos e castanhos,
Cinzentões.
Só o Jorge Sena
Era engenheiro.
Naval. No papel.
Não consta que
Construisse ou reparasse
Embarcações.
O Torga, clínico.
O Régio, místico.
O O'Neil, publicitário,
E claro
O David Mourão-Ferreira,
Doutor de letras,
Universitário,
De capa e batina.
E o Pessoa, esse, coitado,
Era escriturário comercial.
Marçanos,
Cabouqueiros,
Coveiros,
Limpa-chaminés,
Cantoneiros de limpeza,
Calafates,
Estivadores,
Mineiros,
Calceteiros,
Picheleiros,
Almocreves,
Pescadores,
Barbeiros-sangradores,
Construtores civis
Ou outra gente
Dos ofícios mecânicos.
Nãoo há nenhum,
Que se saiba,
Que conste da lista imortal.
Dos poetas imortais
Do Parque do Isaltino.
Minto: há o Álvaro de Campos,
Guardador de rebanhos.
Mas esse não vi lá,
Porque é proibido pisar a relva
E pastar. E sonhar.
E sobretudo apascentar.
Guardador de rebanhos,
À porta da capital,
Parece mal,
Destoa.
Não dá,
Já não é para turista.
Não rima com coisa boa,
Não rima com Lisboa.
Não casa com a modernice
Da Oeiras futurista.

O poeta Manuel Alegre.

© Luís Graça (2005)



Nem o Alegre, o Manel,
Escapou, em vida,
Ao destino cruel
De ser transformado
Em réplica
Do homem de mármore.
Podiam ter-lhe posto,
Ao menos, numa mão, a pena,
E na outra a cana de pesca.
Há quem jure que é castigo
Para o ex-revolucionário
Da Praça da Canção,
Hoje homem de Estado,
Senador da República,
Bonacheirão,
Canastrão,
Arengando para a arraia-miúda do TagusPark:
"Em Nambuangongo, tu não viste nada!"...

Quem não viu nada,
Mas que riria
Até às lágrimas,
Se fosse vivo,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Da construção
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho,
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má catadura,
De má memória.

Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Genial,
Mas mais que morto
E enterrado,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um senhor autarca,
No seu feudo, no seu horto, no seu olival?


Forbela Espanca (1894-1930)

© Luís Graça (2005)



Alguém roubou
Uma pérola do colar
Da Florbela,
Tão excessiva em vida
Como na morte.
Alguma ninfomaníaca
Da tribo gótica,
Algum admirador secreto,
Coleccionador,
Adolescente,
Voyeurista,
Turista,
Visionário,
Cleptómano,
Antiquário,
Violador,
Sexista,
Misógeno,
Detective,
Homem aranha.
Ou quiçá
Algum promotor
(I)mobiliário,
O próprio dono da obra,
O empreiteiro,
O engenheiro,
O trolha,
O arquitecto paisagista,
O ajudante do escultor,
O fiscal,
O fisco,
O contabilista,
A mulher da limpeza,
O guarda municipal,
Eu sei lá!,
O homem do lixo
Ou até o morto da guerra colonial.

Outro tonto, senil,
Septuagenário,
É o Herberto, o Helder,
Que recusa viver
Com qualidade de vida
No Lupanário
Da poesia.
Porque ser poeta, sortudo,
É ser maior, ser mais alto,
Viver no enésimo andar do pensamento
Com vista para o Tejo e tudo.



Camilo Pessanha (1867-1926)

© Luís Graça (2005)



Por mim, confesso,
Gostaria de ter sido
Um simples Conservador
Do Registo Predial
Como o Pessanha.
E de ter escrito,
Não a fria Clépsidra,
Mas o Caleidoscópio
Lusotropical

Em mangas de alpaca.

Gostaria de ser poeta-funcionário,
Da autarquia local,
Ou do ministério da eternidade,
Com cama, mesa e roupa lavada,
Uma tença, mesada ou salário,
E ajudas de custo para poder sonhar
E ter tempo e vagar.
Gostaria de ter feito (e dito)
Um soneto
A letra gótica,
À mão,
À moda antiga,
Com punhos de renda,
Em papel azul, selado.
E de ter tido tempo
Para fumar ópio.
Na época das monções,
Em Macau.
E de imaginar
O eclipse total
Do Império Colonial,
Como um baralho de cartas monumental,
A desmoronar-se,
Do Minho a Timor.
Gostaria ainda de ter sido l
Laureado
Pelo Prémio do SNI
Do António Ferro.

Gostaria sobretudo
De ter dactilografado,
Em Courier, fonte 12,
Sem o mais pequeno erro
Nem rasura,
O Sentimento de um Ocidental
E de o ter posto no meu currículo
Existencial:

"Nas nossas ruas, ao anoitecer
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer".

Em Lisboa
Nem poesia má nem prosa boa,
Mas prefiro aquele verso,
Mais rasca,
Mais proleta,
Mais canalha,
Que evoca os construtores da cidade,
Tão bravos quanto boçais,
Vistosos nos seus fatos-macacos,
E que engrossavam as estatísticas
Dos acidentes de trabalho
Mortais:
"Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros".

Oliveira do Alqueva in su situ

© Luís Graça (2005)

Poeta maior da nossa modernidade menor,
Cesário, o Verde,
Não alcançou o Século
Da energia nuclear.
Da viagem à lua.
Dos amanhãs que o outro galo cantaria.
Da Festa do Avante.
Do cimento armado.
Do motor de explosão.
Dos tsunamis revolucionários.
Das alegrias dos futebóis.
Do triunfo da ecologia
E da googlização.
Da bomba que brilhou
Mais do que mil sóis
Em Hiroshima, meu amor.
O Século dos chips
E do chispe de porco liofilizado.
Do Spínola, prussiano,
De monóculo e bengalim
Nas bolanhas da Guiné.
Da farsa da história.
Da caixinha que mudou o mundo.
E que mundo!,
Basta puxar o autoclismo
E fazer glu-glu,
Par ires parar aos buracos negros
Do admirável mundo virtual.
O Século, e que século!,
O dos vestidos de fru-fru.
Da aspirina e da farinha Amparo.
Da Lili e do Caneco.
Do Taylor e do Ford on the road.
Do terror de Tianannmen.
Da Nossa Senhora de Fátima de Felgueiras.
Do Luís Moita aos microfones da Emissora Nacional:
- Rapazes, não cantem o fado!
O século dos comícios da Fonte Luminosa
Ou do povão do garrafão
No Pontal do Portugal sacro-profano.
O século do Portugal de Salazar,
Prometendo eleições tão livres
Quanto a livre Inglaterra.
E do O'Neil e do Ruy Belo.
E do Millenium BCP.
O Portugal do maneta.
E o Portugal futuro.

Cesário não conheceu a Amália
Nem a Mariza desta Lisboa que eu amo.
Não conheceu o Sá,
Talvez só o Mário,
Não o Soares, mas o Carneiro
A fazer o pino.
Não figura por isso
No Parque do Isaltino.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Blogantologia(s) II - (65): Em dia de São Valentim

Vila Praia de Âncora > 4 de Fevereiro de 2008

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Um dia vou ter pena de morrer,
Só por ti
E pelo azul da luz de Lisboa
Nas manhãs perfeitas de domingo.

Um dia vou ter pena de partir,
Não pelo que não vivi,
Mas só por que não namorei contigo
Nas horas e nas desoras
Dos dias em que o azul não era tão azul,
Nem os domingos tão domingos,
Tão perfeitos,
Como tu querias….

Ficarás na dúvida
Se eu afinal sempre era o teu príncipe
Desencantado,
E tu a minha chita,
Selvagem e pouco borralheira,
Em busca do azul perfeito dos domingos
À beira Tejo.

Fora eu transparente como o céu de Lisboa
Lúcido e translúcido,
Tão certo e previsível como o Domingo
Que é o Dia, perfeito, do Senhor,
E talvez tu nunca tivesses escutado
Os meus passos na rua estreita do teu bairro,
Nem sequer lido a letra do meu fado,
Ou estranhado a primeira e única carta
Que te escrevi.
De Amor.

O teu (e)terno namorado

Lisboa, Dia de São Valentim, 14 de Fevereiro de 2008

domingo, fevereiro 10, 2008

Blogantologia(s) II - (64): A triagem de Manchester ou o paciente português

Eurolândia > Portugal dos pequeninos > 2008 > Há sempre um português que (des)espera... no banco do jardim, na bicha do autocarro, no centro de emprego, no banco de urgência, na barra do tribunal, no manicómio, na rua, em casa, na escola, no trabalho, e até no canil...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.




Na sala de espera
do Banco de Urgência
há gente que desespera
com paciência.
Gente com paciência de santo
ou então pouco esperta.

Há gente que não conhece
a porta do cavalo
do hospital.
Sangrai-o e sangrai-o
e se morrer,
enterrai-o.

Mais logo,
eu estou de banco.
Apareça.
Ou então desapareça
da lista dos vivos.

Há um jovem casal
de apaixonados,
just married,
ela de fita amarela,
no pulso,
lívida, branca, exangue,
no banco do hospital.

Há dois negros que dormitam
e que devem sofrer de paludismo.
Estão ali há horas.
Podiam vir dos arrozais do Sado,
há décadas atrás,
tremendo de sezonismo.
Mas... mal por mal,
antes cadeia que hospital

e antes justiça que misericórdia.

Há um casal de paquistaneses
ou de indianos.
Muçulmanos.
Ele é o paciente,
de fita vermelha ou laranja,
que o sistema de Manchester
é quem mais ordena
e não olha à cor da pele.

Racista, eu,
sra. enfermeira ?
Até tenho um amigo preto
da Guiné.
Trabalha, no gosse gosse,
no estaleiro do subempreiteiro,
que não é nenhum mal essa tosse,
é do catarro,
é do tabaco,
é do tempo.

Há velhos.
Muitos.
Em saldo.
Doentes de solidão, abandono, exaustão.
Doentes de Alzheimer, Parkinson, fim de estação.

Chegam ambulâncias.
De Almoçageme, Alcáçovas, Alcácer, Almargem...
Da outra margem.
Tristes lugares ao sul.
Tentativa de suicídio,
diz o bombeiro para o securitas,
e a chusma de voyeuristas
e de tabagistas
que estão lá fora,
ao frio da noite.
A velha quis matar-se com comprimidos.
A maluca tinha alguma necessidade de fazer isso,
pergunta, resignada, a nora.

Alentejanos, ciganos,
mouros, morcões,
jovens de brinquinho,
colarinhos brancos e azuis,
activos e não activos,
pescadores, traficantes,
toxicodependentes,
mães solteiras,
domésticas em robe de dormir,
famílias monoparentais,
doentes pré-terminais...
E até um um cão, um canito,
magricela,
a quem os pacientes dão bolachas.

Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente. Paciente. Dormente.
Pouco ou nada eloquente.
Diz o sistema de triagem de Manchester.
Há um português urgente
que vem na ambulância da emergência pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar.
O resto não conta,
são amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
queixinhas,
maus contribuintes,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma e que bebe e que come,
e não ouve o Pádua
a dizer que no andar é que está o ganho...

Que já não há o azul nem o verde
do meu país
na paleta das cores do gestor
dos doentes
e das doenças.
Que há fé e até caridade,
mas pouca esperança, Senhor.

É triste e feia e fria
a sala de espera da urgência
do hospital,
Senhora Ministra.

domingo, janeiro 20, 2008

Blogantologia(s) II - (63): Dizem-nos que estamos a envelhecer

Lisboa > Tapada da Ajuda > Novembro de 2007

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.



Poema para ser lido por velhos,
daqueles que já usam óculos com muitas dioptrias,
ou então essas horríveis lentes de aumentar
que se compram na Loja do Avô,
e que só servem para ler os títulos de caixa alta do jornal



Dizem-nos
que estamos a envelhecer.
Dizem os demógrafos,
que correm, eles próprios, o risco
de ver limitado o seu objecto de estudo
aos velhos.
Dizem as máscaras do Entrudo
do nosso descontentamento muito pouco chocalheiro.
Dizem os caretos de Ousilhão.
Dizem os últimos rapazes da Festa dos Rapazes.
Dizem os médicos,
que também estão a encanecer.
Diz o senhor Ministro da Indústria da Doença
que mandou encerrar a maternidade.
Por falta de fedelhos.
Tenham paciência, meus senhores e minhas senhores.
Dizem os hospitéis,
a abarrotar de gente na fila para morrer.
Dizem os sociólogos,
em crise de paradigma
existencial.
Dizem os jornais
que já não vendem mais.
Diz o meu geneticista,
que anda à procura do gene da eterna juventude.
Dizem os futurólogos
que lêem nas entrelinhas das camadas de ozono.
Diz a minha esteticista,
quando o verniz estala,
vão-se os anéis,
ficam os dedos.
Diz a vida, malsã.
Diz a palma da mão e a linha (torta) da vida.
Diz a pitonisa de Delfos,
a escarnecer
da cultura judaico-cristã.
Diz a comissária política de Bruxelas,
que não foi eleita,
muito menos pelos eurovelhos.
Diz o Eurostat,
que representa a sacrossanta ciência
do positivismo do século.
E até a Santa Madre Igreja
agora sem crianças para baptizar
nem selvagens para evangelizar.
Não sei o que diz Ela,
a Santa,
a Madre,
a Igreja.
Não sei o que é que diz Roma
nem Pavia,
que não se fizeram num dia.
Mas dizem as estatísticas,
que, dizem-nos, não mentem,
que estamos a embranquecer,
a encanecer,
a envelhecer,
a ensandecer.
A morrer, meus irmãos.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Diz o espelho meu,
que o tempo faz o seu trabalho de sapa.
Que o tempo, no final, te mata.
Como nos filmes de terror.
Que a vida te está a foder, meu.
Diz o sino da tua aldeia,
quando toca a finados.
Dizem as tuas rugas.
Dizem as tuas brancas,
as primeiras, não sei onde.
Dizem os teus dias cinzentos.
Só o Governo esconde
a bomba biológica
que paira sobre a cabeça
dos que hão-de vir.
Dizem-me que o Governo tropeça,
mas não cai
só por mentir,
com as medidas da tendências central.
a média, a moda e a mediana,
mais o desvio padrão
e o erro amostral.
Eu sei que o Governo está sujeito à erosão
dos ventos
e das marés,
mas também à irrisão mortal
das sondagens.
O Governo não deve mentir.
O Governo deve dizer a verdade,
com um grau de confiança de noventa e cinco por cento.
Mas nem sempre diz toda a verdade,
ou só a verdade,
por causa da coesão
social,
por causa do clima
económico,
por causa da confiança
psicológica
do investidor estrangeiro,
por causa da liberdade,
primordial,
do consumidor.
Dizem que estamos a envelhecer.
Dizem-te que há muito ultrapassaste a barreira dos quarenta.
Que aos 45 já eras velho,
para além do limiar da esperança ao nascer
quando nasceste.
Dizem-te que seremos velhos
em 2025.
Um em cada cinco.
Leia-se: velhos, mais de 65.
E que agora já começou a caça
aos talentos
aos rebentos,
na perspectiva da rarefacção dos recursos humanos.
Diz o nosso (e)terno guru.
Diz o provérbio que na era de 31, poucos moços, velhos nenhum.
Mas não é envelhecimento,
é senescência,
diz o meu neurologista.
Degenerescência,
dizem os puristas da língua.
Diz a neurociência:
o mais importante
não é perderes 100 mil neurónios
por dia,
nem a paciência, nem a compostura, nem o controlo
dos esfíncteres.
Nem a decência.
Deus te livre do Alzheimer e do Parkinson
e das demais doenças crónicas degenerativas.
O que é grave é perderes
as redes neuronais
e não sei que mais.
Dizem que estamos a envelhecer, Papi.
Porra,
meu velho,
o que a vida fez de ti!

sábado, janeiro 19, 2008

Blogantologia(s) II - (62): O que é feito de ti, Maria Bárbara ? E das operárias de Castelo de Paiva ?

Clarks ou: as multinacionais têm alma ? (1)

Uma das habituais perguntas da Bárbara,
e esta por sinal muito pouca metafísica.
Perdi-lhe o rasto,
à Maria Bárbara,
aliás, Barbarian Girl.
Só lhe conhecia o nickname,
além de uns escassos dados biográficos
que ela deixava transparecer nos seus postes,
habitualmente escritos em letra minúscula,
em estilo telegráfico:
lembro-me, por exemplo, que morava em Lisboa,
nas Avenidas Novas, e tinha uma avô galega;
andava em biologia da Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa.
Já deve ter acabado o curso,
já ter feito um mestrado,
quiça até o doutoramento,
tendo depois ficado a engrossar o número dos desempregados jovens
com títulos universitários.

Nunca nos cruzámos por aquelas ou outras bandas.
Trocámos apenas alguns e-mails.
Nunca lhe vi uma foto.
Participou em alguns temas de discussão
que eu próprio suscitei
ou em que intervi,
nos saudosos Fóruns do Publico.pt > Cidadania.
Um desses temas de discussão foi sobre a
"Clarks: ou as multinacionais têm alma?".

Revisitei aquele cantinho do ciberespaço,
como eu lhe chamava.
Com alguma saudade, diga-se de passagem...
Dela e doutros cibercidadãos:
a Isabel Coutinho, a tabagista militante,
o Migoma,
o Jota Lourenço,
o Cibernocturno,
o Dr. Hipócrates,
o Fiatux,
a Megane,
a Raquel,
o Eugénio Rosa,
a Eva Luna,
o J.B. Mendes,
o Queirós,
o Eljump,
o Deus das Moscas,
o Bafo de Nuca e outr@s...

Incisiva, contundente, agressiva como sempre.
A Bárbara.
Creio que eu fiquei com um fraquinho por ela.
Era uma mulher generosa
de uma generosidade que é(era) própria dos verdes anos
mas sobretudo de um já maduro sentido de cidadania...

BNão se era feia se era bonita.
Confesso que gostaria de saber por onde pára ela,
a Barbarian Girl.
E já agora gostaria também de saber do paradeiro
.daquelas mulheres (e homens)
que a Clarks mandou para a rua.
Na voragem mediática dos acontecimentos do dia-a-dia,
Castelo de Paiva e a sua gente foram durante anos notícia nos media
por causa da tragédia da Ponte de Entre-os-Rios
e do julgamento dos seus presumíveis responsáveis...
Sei que perder o emprego ou a vida não é a mesma coisa.
Em todo o caso, pelo seu impacto,
o despedimento colectivo do pessoal da Clarks,
em Castelo de Paiva,
foi notícia nacional por um dia, por uma semana.

castelo de paiva ?
sabes onde ficava, Bárbara ?
eu não...
que uma desgraça nunca vem só,
dizia então uma operária da multinacional do calçado
que, depois de arouca, decidiu fechar a sua segunda unidade fabril
em castelo de paiva.
mandaram para o desemprego mais 600 trabalhadores.
a acrescentar aos outros 300 e tal de há dois anos.
primeiro, foram as minas do pejão que encerraram de vez;
depois foi a tragédia de entre-os-rios;
e depois foi a clarks que se mudou,
de máquinas e bagagens forradas a euros,
para outro paraíso capitalista.
para outra terreola qualquer,
talvez parecida com castelo de paiva.
talvez do leste europeu,
com tabuleta escrita em caracteres eslavos;
não importa onde,
desde que haja sempre gente disposta a vender a sua força de trabalho
por um punhado de cêntimos.
é o circo trágico-cómico das multinacionais
que montam e desmontam fábricas,
em qualquer parte do mundo.
faz-me lembrar os recintos das touradas desmontáveis no verão.

não creio, tal como tu, Bárbara, que as multinacionais tenham alma.
não creio que os tecnocratas que as governam tenham alma.
ou que saibam, no mínimo, compreender a raiva das pobres mulheres operárias
que entraram tarde para o mundo do trabalho.
e que agora se sentiram usadas, abusadas, deitadas fora, velhas, traídas.
imagino que seja esse o sentimento de se ser despedido colectivamente.
e no entanto o mundo é assim, dizem-nos.
os teóricos.
os intelectuais.
os gurus.
os padres.
os sociólogos.
os políticos.
os jornais.
e não há volta a dar-lhe.
os cães ladram e a circo das multinacionais passa.
são elas que governam este mundo.
são elas que dão e baralham as cartas.
são elas que nos vestem e calçam e criam os mitos que nos alimentam.
são elas que são donos do destino de milhões e milhões de pessoas.
pobres diabos e diabas (de é que há diabos no feminino, Bárbara),
contentes hoje por terem pão para a boca.
desesperados amanhã porque já não sabem onde vão buscar com que pagar
as prestações da casa e do carro.
ouvimos o presidente da câmara de castelo paiva dizer
que o total de despedidos eram 25% da força de trabalho industrial do concelho,
3% da população do concelho.
e nós perguntámo-nos onde estavam então os líderes do nosso país,
levando um pouco de conforto e de esperança
àquela pobre gente,
como na altura da tragédia da ponte.
eu não sabia, tu não sabias,
onde ficava castelo de paiva,
mas o presidente da república,
o primeiro ministro,
o ministro do trabalho,
o patrão do investimento estrangeiro,
e todos os restantes senhores
deviam saber onde ficava castelo de paiva.
dizem-nos que a esperança é a última coisa a morrer.
mas a verdade é que também morre.
e infelizmente morreu para os trabalhadores da clarks,
uma multinacional sem alma.

fui espreitar o site dos gajos.
dos sapateiros ingleses.
nem uma palavra em português.
nem uma palavra em qualquer língua para os seus colaboradores.
lá dentro (do sítio), dizem-me,
“a world of comfort and style awaits you”…
valores como a responsabilidade social,
o respeito pelos direitos de quem trabalha
ou o cumprimento da palavra dada a uma comunidade inteira,
parece que são coisas que não constam dos core values desta multinacional. valores ?
são para pisar pelas botas altas das manequins no estrado da alta moda...
e depois quem sabia onde ficava castelo de paiva,
uma minúscula peça do puzzle da europa das multinacionais ?
mas vale a pena, Bárbara, barbaramente revoltada e deprimida.


_________

(1) Publicada originalmente, noutra versão, em prosa, no Blogue-Fora-Nada, em 26 de Outubro de 2003 > Portugal sacro-profano - IX: O que é feito da Barbarian Girl ? E das operárias de Castelo de Paiva ?

domingo, janeiro 06, 2008

Blogantologia(s) II - (61): Lembro-me que era Dezembro

Lisboa> Belém > A ponte 25 de Abril e o Cristo Rei, ao crepúsculo > 6 de Janeiro de 2007.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Para o João, quando fez 22 anos, e que estava em Florença, no Erasmus:

João:

Um poema (revisto) que eu escrevi à tua mãe, em 1995, e que eu gostava que tu conhecesses, nestes dias de Janeiro de 2006, em que fazemos anos (tu, a 21, eu a 29):

Revisitando o poeta Eugénio de Andrade (Matéria Solar),
em busca da Alice
Ou:
Cinquenta poemas de amor,
De Agosto a Dezembro.

Cinquenta poemas de amor
Por outros tantos anos
Que já viveste
Entre a aurora boreal
E a noite polar.

Como poderia imaginá-los
Sem ti,
Como poderia escrevê-los
Sem sequer te imaginar,
Como poderia simplesmente dizê-los
Sem estares aqui ?

Lembro-me
De te ter dito Jacques Prévert:
- Les enfants qui s'aiment
S'embrassent debout
Contre les portes de la nuit...


Lembro-me que era Dezembro
E o que em ti respirava
Eram os olhos,
De costas viradas para a noite
Enquanto a terra ardia,
Quase um rio.

Éramos filhos da madrugada
E dormíamos náufragos e nus
Entre os búzios,
Do vento e dos moínhos
Fazendo atalaias
Contra o medo.

De Abril ficou o travo
Da liberdade,
A paixão
E a arte de esculpir corpos e almas.

E aos filhos que fizemos
Chamámos Joana e João.
Em Agosto, era fatal,
Por ti,
yo perdi la lhave,
El sobrero y la cabeza,

Entre o Marão e o Cabo do Mundo.
De Setembro guardo o cheiro
A mosto, a broa e a caldo
E a amizade quente e fraterna
Da tua gente.
Já não há milho verde, milho rei,
Mas em Dezembro,
Felizmente é Natal!

Luís Graça (1995/2006)

terça-feira, janeiro 01, 2008

(Pré-)Textos (3) - A arte de envelhecer com sabedoria e... sentido de humor no salto (que não queremos seja mortal) para o novo (!) ano de 2008

A arte de envelhecer com sabedoria e… sentido de humor, nos nossos provérbios ditos populares no salto... para o ano de 2008:

"A morte não escolhe idades"

"A saúde nos velhos é mui remendada"

"Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' "

"A velhice não tem cura"

"Cabelos brancos, flores de cemitério"

"De quarenta arriba não molhes a barriga"

"Em uma hora se paga quanto se erra em toda a vida (Séc. XVI)

"Engorda o menino para crescer e o velho para morrer"

"Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"

"Esta vida são dois dias"

"Esta vida são dois dias e o Carnaval são três"

"Hoje com saúde, amanhã no ataúde"

"Hoje na figura, amanhã na sepultura"

"Hora de morrer não tem retardo"

"Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"

"Mal vai à corte em que o boi velho tosse"

"Muita saúde, pouca vida, porque Deus ão dá tudo"

"Na era de 31, poucos moços, velhos nenhum"

"Na hora da morte não vale a pena tomar remédio"

"Não há moço doente nem velho são"

"O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

"O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

"O tempo tudo cura "

"O tempo tudo cura menos velhice e loucura"

"Perde-se o velho por não poder e o novo por não saber"

"Por um dia de prazer um ano de sofrer"

"Porco de um ano, cabrito de um mês, mulher dos dezoito aos vinte e três"

"Prisca idade, priscos tempos" (1)

"Quem a trinta não tem siso a quarenta não é rico"

"Quem de novo não morre de velho não escapa"

"Quem faz em novo paga em velho"

"Quem se mata morto fica e, se não morre, entesica"

"Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem"

"Teme a velhice porque nunca vem só"

"Um dia pior, outro melhor"

"Velho não se senta sem 'ui', nem se levanta sem 'ai' "

"Velho que de si cura cem anos dura"

Recolha: Luís Graça

Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte I : 'Muita Saúde, Pouca Vida, porque Deus não Dá Tudo'