quarta-feira, janeiro 31, 2007

Blogantologia(s) II - (34): The End

The end

Está tudo previsto,
que o fim é uma palavra seca e breve,
um monossílabo
que mal se escreve.
E tão seca e breve que não dá sequer
para gerar um sentimento,
por pequeno e ténue que seja,
de tristeza,
saudade,
morabeza
ou perplexidade.

Nunca gostei da palavra fim,
nem quando era criança,
nem na vida
nem no cinema,
nem quando me pediste o divórcio
num hotel de Ipanema,
naquela viagem
- lembras-te ? -
em que depositavas tanta esperança
e a que chamavas a tua segunda lua de mel…
Bobagem,
-disse-te eu -
não há mel sem fel,
nem amor morno,
nem amor eterno.
Não há fim,
há apenas o eterno retorno…

Podes ficar descansada, agora,
no teu último dia à superfície da terra,
a caminho da tua última morada,
da tua metacidade,
do reino de Osíris,
como tu gostavas de chamar.
Uma estranha paz sucedeu à guerra
das celúlas cancerígenas,
em total liberdade,
desvastando o teu corpo,
que eu amei outrora.

Sempre te ouvi dizer
que o não-stresse era a ausência da vida,
daí o abafado silêncio
a que chamamos morte,
a tua casa vazia,
a esta hora,
a porta arrombada do cofre-forte,
o teu testamento escrito ironicamente
em falsos hieróglifos egípcios,
os móveis subitamente cobertos de pó,
as teias de aranha,
a árvore de Natal
que não chegou a ser desmontada,
coberta de pó no jardim,
os ponteiros do relógio parado,
os olhos fechados das tuas bonecas,
o teu ursinho de peluche
que hibernou,
as megeras
das tuas irmãs
com a sua cara seca de abutres,
as toalhas de linho
com que a tua filha cobriu
os sofás e as cadeiras,
a cor desbotada
dos teus falsos tapetes persas,
os livros que nunca chegaste a ler,
à espera da tua reforma dourada,
os teus pincéis, o cavalete,
os teus quadros a óleo,
as lágrimas sinceras
da tua empregada caboverdiana
que te acompanhou nestes últimos anos,
a ti e aos teus gatos…

A agência funerária toma conta de ti,
arranja-te o bouquet de flores
com os protesto de eterna saudade
do teu ex-marido e da tua filha.
Tive dificuldade em escolher-te as flores,
hesitei entre as rosas e os espinhos,
o cor de rosa e o vermelho.
Sempre gostaste de rosas,
mas não de todas as rosas,
nem dos espinhos das rosas vermelhas.
Enfim, concederam-me
esse pequeno privilégio,
a mim que sou um ex-qualquer coisa de ti,
amante, marido, vítima,
amigo, gestor, cliente.

Encomendei-te a missa de corpo presente,
mesmo sabendo
que tu nunca foste lá muito católica
- só agora descobri
o teu secreto culto de Osíris.
Fi-lo por descargo de consciência,
como quem puxa o autoclismo,
por um qualquer automatismo,
por que me disseram que era bonito,
que fazia todo o sentido,
que não fazia nem bem nem mal,
e que até estava na moda,
que era que o se fazia
em Portugal,
o pequeno rectângulo da Europa,
em que afinal
me obrigaste a viver
por amor, a ti,
e à tua janela,
que desenhaste recortada sobre o mar.

Ah!, a missa,
perguntou-me a tua velha mana,
de todas elas a mais tagarela.
Ah!, sim, foi também por esmola,
por caridade,
por desfastio,
por moleza,
por me ter dado na real gana,
para te querer fazer uma última surpresa,
por mor do padre da freguesia
que já não casa nem baptiza
nem catequisa
ninguém,
por falta de clientela.

De repente lembrei-me do sino da igreja
da tua aldeia de pedra
que já não existe.
E tive um estúpido princípio de comoção.
Apeteceu-me chorar, por ti, por mim,
pelos teus mortos e pelos meus.
Pelos que cá ficam.
Pelos que virão.

Fica descansada
que a agência providencia tudo,
incluindo as amenidades,
os pequenos detalhes
a que tu davas tanta importância,
sempre gostaste dos Hotéis NH
por um questão de detalhes…
De repente, só me lembro de ti,
à janela de um NH,
em Barcelona,
quando eu lá ia em negócio…
De repente, só me lembro de ti
em detalhes,
em momentos de lazer e de ócio,
como se a vida fosse uma bóia,
ou um balão de ar quente,
e flutuássemos à tona,
na deriva do dolce far niente
da nossa decrépita classe média,
alta, acrescentarias tu.

Além do cafezinho e dos biscoitos
para os velhos da família
que vieram de longe,
e que eram do ramo pobre,
transmontano,
da tua aldeia de pedra,
e que ficaram na noite de velamento.
Velamento ou velório ?
Desculpa, não tenho aqui à mão
o dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa,
nem o portátil para consultar o Ciberdúvidas.

De qualquer modo,
fiz bem em não me preocupar,
a agência tem garantia de qualidade
e está certificada
segundo a ISO nove mil e tal.
Disseram-mo logo,
quando telefonei para o número verde grátis,
que a satisfação do cliente era
a sua preocupação nº 1
e por isso toda a organização
fora desenhada de raiz
em prol desse objectivo.
Como eu gosto das empresas ISO nove mil e tal,
que põem o cliente sentado na cadeira do presidente,
e que têm uma missão,
e que sabem defini-la,
e que têm passado, presente e futuro.
Chama-lhe deformação profissional
ou idiotice de um catalão,
com costela de fenício e de judeu,
obcecado pelo organizacional.

Que não te choque esta linguagem
dos gatos pingados:
eles fazem pela vida,
como tu, coitada, fazias pela tua,
quando por cá andavas, penosamente,
a caminho do IPO.

O cliente, real ou virtual
(que eu não sei, afinal,
se és tu ou se sou eu)
é acompanhado por um técnico da empresa,
com CAP reconhecido no espaço comunitário.
Agora já se pode morrer
em qualquer parte do mundo
que até na morte há assistência,
como deve ser.
Eu diria
que já se pode morrer descansado,
sem perturbar muito a vidinha dos vivos.
A vidinha safada
dos que estão na próxima lista para morrer.

Dez anos,
foi uma guerra longa
com os teus bichos,
e a gente a pensar que o pior já tinha passado.
O que passou foi a vida, minha amiga,
foram os anos,
só sobraram os que não viveste.
Uma luta inglória contra a doença,
contra um temível predador,
disse o teu médico.
Abandonou-te, o sacana,
quando percebeu que a partida estava perdida.
Nunca gostei dele,
mesmo sendo durante anos
o meu parceiro de xadrez
e o meu compincha do Jerez.

Esta noite, querida,
vais ficar na câmara frigorífica,
como mandam agora
as regras da nova saúde pública.
E depois da missa, às 10 horas,
segues para o Alto de São João.
Os teus amigos, poucos mas bons,
lá estarão.
Serão os teus barqueiros de Caronte.

Permite-me uma última inconfidência:
recorri ao crédito da agência,
vou pagar a tua mumificação
em suaves prestações.
Sei que concordarias
comigo, velho forreta,
se estivesses cá, chez les vivants,
neste lado do mundo.
Mesmo discordando desta
e de outras tuas bizarrias,
vou ter que a cumprir,
por minha honra e da tua filha,
como teu executor testamentário.
Sempre ouvi dizer que nunca se diz não
à última vontade de um defunto.
E que quem gasta dinheiro com os mortos
Não é perdulário.

Não te esqueças, por fim,
das palavras que terás de proferir
quando a tua alma penetrar nos mundos do além
(São extraídas do Livro dos Mortos,
o teu último livro de cabeceira):

Salve, Osiris, Touro do Amenti,
Eis que Tot, príncipe da eternidade,
Fala pela minha boca!
Na verdade, eu sou o grande deus
Que acomponha, na sua navegação, a barca
celeste...

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