segunda-feira, agosto 13, 2007

Blogantologia(s) II - (44): Infeliz o surdo (e o huno), porque dele não será o Reino de Neptuno

Lourinhã > Praia de Vale de Frades > Rocha com vestígios de árvores fossilizadas.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados

Infeliz o surdo (e o huno), porque dele não será o Reino de Neptuno

Estou surdo
E não poderei ouvir-te
Em Agosto.
Nem ouvir o que mais gosto em Agosto,
O mar,
A décima sinfonia do mar.
Ou só poderei captar
Meio som
Com meio ouvido.

Estou surdo
E por mais absurdo
Que isso te pareça
Só poderei entender
As palavras sibilinas
Que me escreveste no teu último mail.

Aqui estou, especado,
Na areia,
Emparedado
Entre o Beethoven a fazer o pino
E o desejo e a ameaça de Sibila.
Enquanto espero o otorrino
À porta do consultório
E o sol que tarda
Nesta tarde do mês de Agosto.

Infelizes os surdos
E os curdos
(que não têm mar nem pátria)
E os duros de ouvido,
Porque deles não será o Reino de Neptuno!

Sinto-me infeliz
No pico do verão,
Meio surdo,
Meio huno,
Meio curdo,
À espera do sol
E do seu espectáculo de strip-tease.

Aqui especado,
Parado,
Enterrado na areia,
À espera de qualquer coisa,
De acontecer qualquer coisa,
À espera da queda dos últimos restos
Do sacro império dos romanos,
Uma prancha de surf,
Um tubarão assassino,
Uma aeronave publicitária,
Um ataque de pânico,
Um falso alarme de tsunami,
Um crash na Bolsa de Nova Iorque,
Um suicídio colectivo,
Um pedaço da arrábida fóssil,
Um duro osso de roer de dinossauro,
Uma boa chuva de meteoritos made in China

À espera dos bárbaros,
À espera dos hunos,
À espera do otorrino,
À espera de ti,
À espera do sol
Que teima em tardar,
À espera da recuperação dos meus cinco sentidos.
À espera do som e da fúria
Da próxima praia-mar,
Em noite de lua cheia
Prenha de augúrios, fantasmas e medos.

Só não conquistaram o sol,
Os romanos,
Nem os oceanos.
O Atlântico.
O sol que tarda em Agosto.
Nem havia nesse tempo
O direito a férias pagas,
Subsídio de invalidez por surdez profissional,
Nem muito menos o prémio por nascimento
E funeral.

Estou surdo,
Ou se não estou surdo foi por um triz,
Estou surdo
E a fazer o luto
Pela morte do Estado-Providência
Que me pagava o otorrino
E as gotas para o nariz.

Aqui é o meu futuro,
Diz o novo huno,
O imigra que agora vende Bolas de Berlim
Em praias rigorosamente concessionadas
E vigiadas pela ASAE.
Sem dó
Nem piedade.
Viva o fascismo sanitário,
Proclama o outdoor
Da nova polícia das retretes
E dos croquetes.

Estou surdo.
Falta-me ficar cego e mudo.
Para ser cego, surdo e mudo,
Como a figura da deusa Justiça.

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