sexta-feira, agosto 26, 2011

Blogantologia(s) II - (95): Na festa dos mortos, o olvido dos combatentes...

Na festa dos mortos, o olvido dos combatentes…
por Luís Graça

O cemitério enche-se de flores,
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras.

É a festa dos mortos,
mas também a celebração da vida,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,
o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
familiares, parentes, amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém, quando
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais: recusam-se a marcar a passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.

É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram) injustamente, antes de nós...

Quem vive mais longe (Porto, Lisboa...),
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
Terra de antigos rendeiros, camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos
e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,
tipificada nas figuras do brasileiro e do francês do século passado...

No meio do pequeno cemitério da freguesia
há ostensivamente uma capela,
a da família da ilustre casa
que foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona
e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
donos dos seus corpos e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo revivalista, neogótico,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim,
Memento homo,
quia pulvis es,
et in pulverem reverteris.
Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim dos frades absolutistas
e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz:
Lembra-te, ó homem,
que és pó
e em pó te hás-de tornar...

Mesmo na morte,
os homens tentam,
patética e inutilmente,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância,
que mantinham em vida...
É por isso que eu gosto da designação, irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul,
no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelho e a abetarda,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o general e o soldado,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
o herói e o cobarde,
o amigo e o inimigo...

Passei por lá,
pelos cemitérios de Paredes de Viadores e de Paços de Gaiolo,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas,
menos de duas...
Tirei fotografias aos grandes,
vistosos
e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara aos parentes dos mortos...
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena
(e aqui e acolá alegre, viva, franca, saudável) cavaqueira.
Percebi que a homenagem aos nossos mortos
é também (e sobretudo ?)
um pretexto
para os vivos se mostrarem uns aos outros...
E para dizerem alto e bom som
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
com os seus Mercedes de matrícula K,
com as análises em dia,
e o certificado de robustez física, 
passado pela alta autoridade de saúde,
com o corpo e todas as miudezas
dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos, sãos, e recomendam-se...
Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar que têm decência
e recato
e memória
e saudade...
E que sabem chorar, sinceramente, os seus mortos.
Muito simplesmente são ou parecem ser
gente feliz,
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos.
Ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo, o Dia de Finados.

No sul, da Reconquista, de onde eu venho,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, mouro, judeu, franco, africano,
também há o culto antiquíssimo, pagão,
dos mortos...
Mas aqui, no norte, o cristianismo
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão 
gregária, 
simbólica, 
normalizadora...

Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês.
O dia das alminhas (que ternura de termo!),
como diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações,
esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa.

Não sei, contudo, qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros
que morrem em combate...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império, ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria, conceito burguês.
Pode ser-se herói e herói da Pátria
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos...
Pode ter-se morrido pela Pátria e mesmo assim
esse sacrifício ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(morre-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos)
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...

Para onde irão as almas dos combatentes ?
Quase sempre, muitas vezes,
em toda a parte,
para o limbo,
o purgatório do olvido,
que é esquecimento mas também adormecimento.
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho, já extinto,
de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta...
Como estas duas campas, rasas, de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos, no ultramar português,
Joaquim Araújo, Francisco Soares…
por alguém, por alguma coisa
A que eles chamavam Pátria…
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos

De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do Ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do Ultramar,
uma espécie de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Por que o fim daquela guerra
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração.
E é bom que os jovens de hoje saibam isso,
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatro de operações,
que Portugal mantinha em África...

Hoje há pudor em falar desta guerra,
de baixa intensidade
mas que consumia vidas e cabedais.
Da guerra e dos seus mortos,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
estropiados,
tresloucados,
dos seus mortos-vivos,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios Geba, Corubal, Mansoa,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine,
na Guiné,
ou nos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos 
já esqueceram...

Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, que estamos vivos,
em relação a eles que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, acidente ou doença);
e se calhar deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam,
nem nos assombram,
nem nos incomodam,
nem nos apavoram
nem nos interpelam ou questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos,
na festa dos mortos
os que morreram de morte matada
no campo de batalha,
na África remota, distante, dos séculos passados
não têm uma menção especial,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),
uma atenção especial,
um arranjo floral,
nem sequer umas simples flores de plástico...
Mas será que deveriam tê-lo ?


Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.
2 de Novembro de 2008. Revisto em 23 de Agosto de 2011
______________

quinta-feira, agosto 18, 2011

Três poemas do meu poemário de Agosto: Para a Alice, em dia de anos com capicua

1.O mar, amor, em Agosto

Praia de Paimogo.
Estas pedras estão aqui
Há milhões de anos.
E eu não sei dizer-te
Por que é que estas pedras estão aqui
Há milhões de anos.

Uma enseada, uma cratera, um lago.
A Praia de Paimogo foi talhada
A ferro e fogo.

Mas se eu fosse deus,
Todo poderoso senhor
Ou até vulcão,
Tê-la-ia desenhado,
Com muita ternura,
Sob a forma de coração.
Só para ti, meu amor.

Estas pedras estão aqui
Muito antes dos dinossauros
Evoluírem e dominarem
O planeta azul.
Que afinal não era assim tão azul
Quanto o pintavam.

Visto da janela do teu quarto,
Em Candoz,
O vale era o mundo
E era verde,
Tal como em A Cidade e as Serras,
Do Eça de Queiroz.
Muito antes do mar,
E do pôr do sol sobre o mar,
Muito antes de saberes
Onde ficava a praia da minha infância.

Nem vale.
Nem pombas.
Nem praia.
Na Praia do Vale de Pombas,
À maré cheia, à praia-mar,
Há apenas um fio de água doce
Que mantém os cordões umbilicais
Do infinitamente pequeno da vida
Ligados ao infinitamente grande
Dos corpos celestiais.

Vale de Pombas:
Aqui caiu uma chuva de meteoritos.
Um dia hei-de lá levar-te.

Praia de Vale de Frades.
Mas que sei eu de cronogeologia
Para te dizer que estas pedras estão aqui
Há tantos milhões de anos ?!
Sei apenas que, de acordo
Com toda a teoria das probabilidades,
Estas pedras vão ficar aqui,
Muito depois da minha morte,
Muito depois da extinção da minha espécie.

Praia da Peralta.
O melhor do mês de Agosto
É enterrar a cabeça na areia
E escutar.
O mar.
A voz rouca do mar.
Que chegou até aqui,
Muito antes de mim e de ti,
E que vai ficar aqui
Muito depois de mim e de ti.

Não há farol
Na Peralta,
Para eu poder avisar a malta.
Enquanto o teu país arde
Ou o que resta dele.
Na Peralta passam navios ao largo.
Como manadas de elefantes.

Na Peralta,
Na malhada grande,
Eu poderia ter sido feliz
Entre apanhadores de lapas e de ouriços.
Mesmo sabendo
Que estas pedras estão aqui
Muito antes de mim,
Há milhões de anos.
Mesmo não tendo
Todas as respostas
A todos os porquês.

Porto Dinheiro
Um espesso nevoeiro
Cobre as falésias
Em Agosto.
Até aqui chegavam
As galés romanas.
E os barcos dos piratas.
Não sei se o sítio tem padroeiro
Ou orago.
Nem sei se por aqui passava
O teu caminho de Santiago.

Porto Dinheiro.
Aqui deito contas à vida.
Aqui conto as marcas
Do tempo.
Aqui lanço a âncora.
Aqui fui carpinteiro de naus.
Aqui, Plínio, o Velho,
Poderia ter fundado a paleontologia.
Mas, não:
Morreu em 69 a observar
A erupção do Vesúvio.

Praia do Valmitão.
Podia ter sido ilha de corsário
Ou baía de tubarão.
A ter bandeira,
Só a preta,
Com caveira.

No Porto das Barcas
Não há ciência,
Apenas sapiência,
Que é a mais antiga das virtudes.

Porto das Barcas:
Um navio fantasmagórico
Entra pela terra adentro.

Daqui avistamos as Berlengas.
E a Nau Catrineta
Que já nada tem para nos contar.

Praia do Caniçal:
Podia trepar
Pela minha árvore genealógica
Até ao paleolítico superior.
Pelo leito dos rios
Que sobem, secos,
Até às grandes fossas marinhas.

Praia da Areia Branca:
Não te conseguiram amar
Sem te possuir e violar.
Livro Sexto, de Sophia.

Praia do Areal:
Há uma seta
Que indica o sul.
O sol.
A zona dos chapéus.
O espaço rigorosamente vigiado
Dos amantes.
O risco de cancro da pele.
A rota da seda.
A sede.
Os amores de verão.
A morte.
Saio noutra estação.

Praia de Vale de Frades.
À volta de um prato de sardinhas,
A vida pode não ter
Metafísica nenhuma
E mesmo assim ser
Pura,
Emoção pura,
E simples,
Prazer simples.

Mandei pôr mais um prato
Na mesa, sem toalha,
Virada para o Mar do Serro.
Não me esqueci do pão,
Das sardinhas, das batatas,
Dos pimentos, da salada e do vinho...
Esperava por ti,
Que eras a oficiante da vida.
No Porto das Barcas
Não há ciência,
Apenas sapiência,
Que é a mais antiga das virtudes.

Volto à Peralta
Para partilhar contigo
A magia do sol posto
No Atlântico norte.
O amor em Agosto.

2. Deixa que os que gostam de ti, te apapariquem

Aforismos de Agosto
(a pensar em ti)

Agosto é vento,
É areia,
É sal,
Contra as pálpebras dos marinheiros
Que morreram nos teus sonhos.
Nunca deixes morrer os sonhos.
Os teus sonhos.
Nem os marinheiros de olhos azuis
E cabelos louros ao vento
Que subiam os mastros dos navios
Do teu museu do mar, imaginário.

Tu que vieste com o vento norte,
Ganhas novo fôlego e alento
E outra leveza
Ao perfazeres os dez mil passos
Diários, matinais, no areal.
Para que o corpo não crie raízes.
E a gente possa desfrutar a beleza
Da enseada de Paimogo.

O melhor de Agosto
São as esplanadas
Das pequenas terras de Portugal,
À beira mar.
Tão cheias de nadas,
Tão saloias,
Tão pimbas,
Tão belas.
Conheci-te numa delas.

Agosto são os escorpiões tatuados
Nos corpos
Das petites filles portugaises
Que voltam à terra dos avós.
Agosto são as alegrias e as vertigens
Do regresso.
Porque voltamos sempre às origens.

Os únicos que têm de vencer
São os surfistas.
Vencer a onda,
O vento,
A areia,
O sal.
Não temos que destruir para vencer.

Agosto é também
O puro desejo da mãe
Pelo filho incestuoso.
Lânguidas mamãs,
De mamas flácidas.
São focas estiradas ao sol.
São focas.
São fofas.
Como é bom ser mamã,
E foca
E fofa
E babada.

O melhor de Agosto
É teres o dia todo
Por tua conta,
O dia, a semana, o mês.
Os dias úteis do mês.

Mas o melhor de Agosto é o teu dia.
Dezoito.
E estamos cá todos,
A apaparicar-te...
Deixa que os que gostam de ti,
Te apapariquem.

Lourinhã,
Rua da Misericórdia,
18 de Agosto de 2008.

3.Teu (e)terno namorado

Um dia vou ter pena de morrer,
Só por ti
E pelo azul da luz de Lisboa
Nas manhãs perfeitas de domingo.

Um dia vou ter pena de partir,
Não pelo que não vivi,
Mas só por que não namorei contigo
Nas horas e nas desoras
Dos dias em que o azul não era tão azul,
Nem os domingos tão domingos,
Tão perfeitos,
Como tu querias….

Ficarás na dúvida
Se eu afinal sempre era o teu príncipe
Desencantado,
E tu a minha chita,
Selvagem e pouco borralheira,
Em busca do azul perfeito dos domingos
À beira Tejo.

Fora eu transparente como o céu de Lisboa
Lúcido e translúcido,
Tão certo e previsível como o Domingo
Que é o Dia, perfeito, do Senhor,
E talvez tu nunca tivesses escutado
Os meus passos na rua estreita do teu bairro,
Nem sequer lido a letra do meu fado,
Ou estranhado a primeira e única carta
Que te escrevi.
De Amor.


segunda-feira, agosto 01, 2011

Textos diversos (1): À laia de despedida de uma garça...

À laia de despedida de uma garça…

Amigos/as, companheiros/as da ENSP/UNL
(email que circulou pelos “internos”):

Deixem-me dizer-vos uma palavrinha
Antes que o dia acabe
E passe o verão do nosso contentamento descontente…
Segunda feira começa o Agosto,
O nosso querido mês de Agosto,
Seguramente o mês
Em que os portugueses ficam mais próximos
Do puro estado de felicidade…
Os portugueses de dentro e os de fora…
Pois, na próxima segunda feira,
Já seremos menos
Nesta casa
Onde se estuda e se trabalha,
Do piso zero ao piso dois…
Pelo menos, a Graça G...
Já não estará no gabinete de informática,
No 2º piso, nº 3A 27,
Para, sempre solícita e gentil,
Responder aos nossos SOS
De utentes atrapalhados
Com as partidas das máquinas
De quem somos cada vez mais tecnicodependentes…
Pois é, a nossa querida Graça,
Gentil garça,
Vai nos deixar
Pela simples razão de que a empresa
Que gere o nosso back office informático
Vai dispensá-la.

Posso não entender, mas não também discuto,
As razões dos gestores
Que todos os dias decidem
Da vida das pessoas que trabalham nas suas empresas.
Dir-me-ão que a Graça
Deixou de caber no algoritmo da empresa
Que a contratou
Para trabalhar na ENSP/UNL.
As nossas vidas são simples,
As contas é que são complicadas,
E os contos ainda mais…
Pelo menos, é o que ouvimos dizer todos os dias:
- A economia, seu estúpido!
Pois seja, mas não é ela que nos vai matar os sonhos
Nem as nossas gentis garças
Que se atravessam, em voo raso,
Na nossa autoestrada da vida…

Já lá vai quase uma década
Que eu vi a jovem e tímida garça
A entrar por esta escola adentro
E a competir, taco a taco,
Com os machos informáticos de barba rija…
Tinha estudado nas Caldas da Rainha
E era de Torres Vedras.
Logo minha vizinha,
Logo estremenha, como eu.
E depois habituei-me a vê-la,
No meu querido mês de Agosto,
Na minha não menos querida Praia da Areia Branca,
Já com os rebentos pela mão…
Sim, porque entretanto
Também foi mãe
Nestes anos que passaram,
Assim tão de repente.

Eu sei que a garça Graça
É uma mulher lutadora
E leva daqui um portfólio,
Como se diz agora,
De competências,
Não só técnicas mas também humanas e relacionais,
Que a vão ajudar
A rapidamente voltar ao mercado de trabalho.
Mas, perdoem-me a franqueza,
Eu vou ter saudades da nossa garça Graça,
Da sua voz aguda, e do seu sorriso,
E daquele seu jeito de,
Mesmo debaixo de stresse,
Me dizer, com a maior gentileza do mundo:
- Professor, deixe aí o seu portátil,
Que a gente já resolve o problema…


O único consolo que me resta,
Enquanto faço o luto pela sua perda,
Valioso recurso humano desta escola,
É que eu vou já encontrá-la
Segunda feira, na Praia da Areia Branca,
E vou convidá-la para tomar uma bica,
E, como diria um bom alentejano,
Tabaquear o caso, com ela…
Ou por outros palavras,
Dar a língua,
Pôr a conversa em dia,
Puxar umas fumaças (ela, não eu que sou ex…),
Recordar as pequenas histórias
Com que a gente tece, colectivamente,
A malha da grande História…
Mesmo sem direito a retrato institucional,
A Graça faz parte da nossa pequena grande história,
Desta casa, desta escola, de todos nós,
Alunos, professores e demais trabalhadores,
Porque, qual garça, gentil,
Um dia atravessou a Avenida Padre Cruz,
E pousou no Gabinete de Informática,
Da ENSP/UNL,
2º piso, nº 3 A 27…

E porque as nossas organizações
Devem ter um rosto,
E porque o melhor delas somos nós,
A acreditar nos livros do gurus da gestão,
As equipas e os trabalhadores de equipa,
E os seus líderes,
Então eu atrevo-me
A falar em nome de muitos mais,
Mesmo sem legitimidade institucional para o fazer,
Para simplesmente lhe dizer:
-Obrigado, garça Graça…
Vamos sentir a tua falta.
Mas também sabemos que tens asas
E força para voar!
Força e perícia!
E nos teus novos voos por novos céus,
Não te esqueças de nós,
Que gostamos sempre que os amigos nos visitem
E voltem
… à nossa ENSP/UNL,
Av Padre Cruz,
sem número de polícia…
Muita saúde e longa vida,
Porque tu mereces tudo!

Luís Graça
luis.graca@ensp.unl.