terça-feira, setembro 26, 2006

Blogantologia(s) II - (32): Vem aí a retoma

No verão,
entre cigarras e grilos,
éramos arquitectos esquilos,
desenhávamos à mão,
dedo a dedo,
frágeis barreiras de areia
contra a maré cheia
do medo,
contra o medo do medo.

Em Agosto,
ainda não se advinhava Setembro,
às portas do Império,
as pousadas estavam repletas
e éramos inconscientemente felizes.

Em Beirute caíam bombas
e nas Canárias davam à costa
cadáveres subsaharianos,
O verão já era Outono,
vindima, mosto,
passeávamos agora
com as nossas bicicletas,
à volta do círculo polar ártico,
furando o buraco do ozono.
Definitivamente cancelámos
o cruzeiro pelo Adriático.

Na rentrée,
os novos príncipes deste mundo
anunciavam a boa nova
pela têvê:
vem aí a retoma.

Praia da Areia Branca, Agosto de 2006

domingo, setembro 24, 2006

Blogantologia(s) II - (31): Alá não passou por aqui

Originalmente publicado npo blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > vd. post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1047: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

Alá não passou por aqui,


por Luís Graça


Bambadinca/Imbecilburgo, 29 de Janeiro de 1971 / Lourinhã, verão de 2006


Vinte e quatro anos:
ocorreu-te que hoje fazias anos,
e que por mera curiosidade
era o teu segundo aniversário
nestas terras da Guiné,
e, por sinal, o teu terceiro
na tropa,
coincidindo com o terceiro
da era do marcelismo.

Vinte e quatro anos,
vividos mal,
vinte e um meses de tropa-macaca,
entre o Geba e o Corubal,
vida de cão rafeiro,
de macaco-cão,
saltando do chão
e do baga-baga
para a copa
da árvore dos teus desenganos.


Tempo de miserabilismo,
tempo do salve-se quem puder,
tempo de calculismo e de cinismo.
Desenfiado,
é a palavra de ordem,
para a soldadesca,
para os gajos do quadro
ou do contingente geral,
quer concordem ou discordem
desta farsa grotesca.

Aqui vive-se sem calendário
nem ética,
nem dignidade,
não se apurando perdas e danos,
não se distinguindo
dias da semana, sábados,
domingos ou feriados,
o verão e o inverno,
os bons, os maus e os safados.
Se há resistência, ela é invisível e muda,
e o tempo que conta
é o que falta para a peluda.


És um cão,
um cão danado,
apanhado na rede.
O tempo é pura aritmética,
soma de momentos,
de dias riscados
na parede,
suja, mimética,
dos nossos abrigos:
se um ano aqui é uma eternidade,
dois é o inferno.
O teu corpo fede,
tresanda a tarrafo,
a suor
cheira a morte,
cheira a merda,
a luto,
a perda,
a da tua juventude,
a dos teus ideais.

És um pobre fantasma de Quinhentos,
que perdeu o norte
e os demais pontos cardeais,
a idade,
a quietude,
a auto-estima,
a praça-forte,
o astrolábio,
as Índias,
a caravela,
a rota,
a proa,
a pose,
a árvore genealógica,
as coordenadas de Lisboa,
os Lusíadas,
a Peregrinação,
do Fernão Mentes Minto,
a História (trágico-marítima),
o ritmo,
a rima,
o ADN,
o pedigree,
a inocência do Nuno Tristão da Silva,
a cruz,
o cruzeiro,
o estandarte,
a espada,
o manual,
a valentia do Teixeira Pinto,
e até o jeito de matar
do Afonso Albuquerque,
para além da arte
e da ciência de marear,
no macaréu do Geba,
nas bolanhas do Corubal.

Mais prosaicamente,
na Guiné
o dia dos teus anos é
uma rodada
de uísque ou de cerveja
pr’os teus camaradas
no bar de sargentos.
No fundo,
o teu dia é um pretexto
para a autocomiseração,
para um voo até
às galáxias da metafísica,
que é sempre melhor, chiça!,
que ouvir
o silvo de uma granada,
em teu redor,
que é coisa bem mais real
e mortífera,
é a quilha
do barco da morte.
Com sorte,
talvez o amável Zé da Ila,
de nós todos o menos reguila,
pegue na viola (1)
e te cante
a Pedra Filosofal…

Talvez cantemos todos juntos,
às tantas da noite,
africana,
pestífera,
mortal,
e suficientemente alto,
com as nossas vozes guturais,
para que Eles, os gajos,
nos oiçam, mesmo ali ao lado,
no bar dos oficiais…

Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E sempre que um homem sonha,
A vida pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança…


Seguramente
um dia como os outros,
sem mais nada,
seguramente mais um dia
de solidão,
com ou sem o poema do Gedeão
e a música do Manuel Freire,
a tua canção favorita,
a nossa balada querida,
e que eu sei que irrita
os teus Cães Grandes

Ninguém te vai dar os parabéns,
só por fazeres anos:
ainda não ganhaste nada,
nem o direito a outra vida.
De resto, estás sempre só,
mesmo quando segues,
em bicha de pirilau,
coberto de suor e pó,
com o teu pelotão,
às ordens de Bissau,
para montar segurança à TECNIL
que está a construir
a nova estrada de Bambadinca-Xime (3).

Enfim, mais um dia da tua condição,
triste e vil,
de poeta travestido de soldado
de uma guerra
a que sempre chamaste crime,
mas da qual és actor,
cúmplice,
quiçá testemunha sublime,
guerra que tem dor e tem horror,
mas de que os teus camaradas não falam,
por pudor.

Je m’en passe,
je m’en fous
,

escrevias tu
no teu diário de um tuga.
Como quem diz:
aqui não há lugar para a fuga,
nem sequer te podes dar ao luxo
de um mísero voo raso
sobre a cerca de arame farpado
ou sobre o ninho de metralhadoras
que varre a pista de aviação,
como um vulgar jagudi
que é uma pássaro feio
mas é livre,
e tão ou mais importante do que tu
no seio da criação.

Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
Simplesmente, neste caso,
este homem não é um homem
é um palhaço,
é um soldado,
fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência
cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com medo,
é isso que lhe dói,
neste cenário
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o RDM:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói
da resistência
nem muito menos do 10 de Junho:
saíu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus nharros,
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas
dos senhores
de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha.

Os Cães Grandes,
como tu gostas
de chamar-lhes,
com o teu humor corrosivo
de dramaturgo
do teatro do absurdo,
aos oficiais superiores
de Imbecilburgo.
Escuta,
quer queiras quer não,
são eles os lídimos representantes
da tua Nação,
foi o que ouviste desde o primeiro dia
da tua recruta.

Vida de puta:
com raiva e impotência,
vês o tempo,
a areia da ampulheta,
escoar-se,
do cabo até ao fundo,
e tu aqui hipotecado
ao Estado,
a este Império de opereta,
dono da tua existência,
que te requisitou o corpo,
da cabeça aos pés,
e te comprou a alma
e a vendeu ao diabo,
aqui no cu do mundo.

Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões (3,
mas estás vivo, ó tuga,
graças talvez à mezinha
que te deu um nharro,
um mauro, um marabu,
em Sinchã Mamadjai
e melhor prenda de anos
desejar poderias,
meu grande safado ?

És um sortudo,
se acordares,
de manhãezinha,
com o dedo grande do pé
a mexer,
dizia o Marques,
que nesse dia treze,
que nem sequer era sexta-feira,
teve azar, coitado,
sentado na parte traseira,
da GMC,
não teve a mesma sorte que tu,
indo parar, em mau estado,
em estado de coma,
ao Hospital Militar.


Pobre tuga,
pobre nharro,
pobre turra:
na Guiné,
longe do Vietname,
em plena guerra fria,
há muito ano
que vos chupam o tutano.
Aqui faz-se poesia,
de barriga vazia,
o corpo exangue,
só com o cavername,
a pele e o osso,
a morte na alma.

Resta-te a consolação da escrita
e da leitura,
além do teu uísque
com água de Perrier.
Eis o poema,
que te ofereço,
com ternura,
como prenda de aniversário,
O Tempo que Faz em Imbecilburgo:

Ah! como o tempo (não) passa
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como furriel miliciano.

Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que import-export
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo
(se o houver).

Tu até podias acreditar
numa Guiné Melhor,
no Herr Spínola,
nos teus nharros,
nos patriotas dos guinéus
que lutam a teu lado,
ou até na derrota do Cabral,
teu herói e teu inimigo,
o líder revolucionário,
ou no Nino,
teu turra de estimação,
vestido à cow-boy
e armado de RPG
no nosso imaginário;
podias mesmo acreditar
na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado,
glorioso,
perdido,
sabendo-se que o dinheiro e as armas
compram tudo
menos o direito à eternidade,
e nem talvez à liberdade.

Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na recta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição
individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o cronista-mor
da estória oficiosa da tua companhia
.


Post scriptum:
Alá
não passou por aqui,
disse-me uma vez um homem-grande
da tabanca de Saré Ganá (4).



__________

Notas de L.G.

(1) Furriel Sousa, da CCAÇ 12, madeirense, carinhosamente conhecido pela alcunha do Zé da Ila: Vd post de 8 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P945: 'Gente feliz com lágrimas': o Zé da Ilha, o furriel Sousa, madeirense, da CCAÇ 12


(2) Empresa que em finais de 1970/princípios de 1971 estava a construir a nova estrada alcatroada Bambadinca-Xime. A CCAÇ 12 faria regularmente a segurança destes trabalhos, já no final da sua comissão.

(3) Vd. posts de

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(4) Zona leste, Regulado de Joladu, carta de Bambadinca, 1/50.000

Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu