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segunda-feira, janeiro 02, 2012

Blogantologia(s) II - (97): Dies irae, dies illa!

Dies ira

Dedicado a todos os camaradas,
humilhados,
esquecidos,
abandonados,
ostracizados,
emigrados,
exilados,
que um dia subiram o portaló
dos Niassa, dos Uíge, dos Ana Mafalda,
a caminho da Guiné,
aquela terra verde e vermelha
que a todos nos marcou,
a ferro e fogo...
sem esquecer os que simplesmente viajaram nos TAM!

Que o ano de 2012,
mesmo de raiva,
seja de coragem e de esperança!
Como os anos que passámos na Guiné!



Cavalgam caudalosos os rios
Pela terra adentro,
Enquanto fluem ruidosos
Os dias da guerra.

Rios que não são rios
Mas rias,
Entranhas ubérrimas
Fustigadas pelo vento,
Rias baixas pela manhã,
Pedaços, braços de mar,
Restos de tsunamis,
Pontas de fuzis,
Palavras acérrimas,
Imprecações ao Grande Irã,
Picadas minadas
De ir e não mais voltar.

Dias que não são dias,
Circadianos,
Mas fragmentos,
Ora ledos ora amargos enganos,
Estilhaços de tempo,
Riscos nas paredes sujas dos bunkers,
Repentinas emboscadas,
Breves finais de tarde,
Instantes,
Flagelações,
Balas tracejantes
Sob o céu verde e vermelho
Enquanto o capim arde.

Narciso, revejo-me ao espelho,
Quebrado,
Vou nu,
De camuflado,
De azul,
Celestial,
Ao encontro do anjo da morte
Em Jugudul.
E não há estrelas
À noite,
Mas a bússola indica o norte,
Sideral,
Nunca o sul,
Nunca o nascer nem o morrer.

Dies irae, dies illa,
Dia de ira, aquele,
Em que subiste o cadafalso do Niassa,
Ou do Uíge ou do Ana Mafalda,
Dias de ira, aqueles,
Os da guerra!
Calai-vos,
Rápidos do Saltinho,
Rápidos de Cussilinta,
Vós que mais não sois
Do que canoas loucas,
Desenfreadas,
Levadas pelo macaréu da nossa raiva,
Entre o Geba e o Corubal.

Braços que não são braços,
Amputados,
Mas apenas tatuagens,
Traços,
Letras de fado pungentes,
Pontes que são miragens,
Tentáculos, serpentes,
Lianas, cortadas pela catana,
A eito,
Pela floresta-galeria,
Inferno tropical,
Túneis, tarrafo,
Bolanhas, lalas, bissilões,
Curvas da morte do Cacheu ao Cumbijã,
Apocalípticos palmeirais,
Pontas de punhais
Cravadas no peito,
Irãs acocorados
No alto dos poilões.

E depois o silêncio.
O impossível silêncio.
O silêncio das partituras,
Das mapas dos argonautas,
Partículas,
Pausas,
Pautas,
Cartas de tiro
Com claves de sol,
Desidratação,
A ogiva do obus,
O medo da avestruz,
O roncar do helicanhão,
Gritos do djambé,
E do macaco-cão,
Gemidos de kora,
Espasmos de balafon,
Rajadas de kalash
Ecos do bombolom,
Bombas de fragmentação
Que correm no dorso dos cavalos
Desde o Futa Djalon.

Não vou poder ouvir o silêncio do Cantanhez,
Nem quero ouvir o grito da morte
Outra vez.
.

segunda-feira, agosto 23, 2010

Blogantologia(s) II - (86): Na antiga picada do Xime - Ponta do Inglês





Na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês
por Luís Graça (*)

Não havia nada
Na antiga estrada
Do Xime-Ponta do Inglês,
Ligando o Geba ao Corubal.

Não havia nada naquele lugar
Que era de tormento,
Àquela hora mortal
Da madrugada.
Nada, onde um homem
Pudesse afogar a sua fome,
Matar a sua sede,
Aliviar o seu sofrimento.

Nem sequer um banco de pedra
Como aquele em que agora me sento,
Frente ao Tejo,
Fresco, límpido, matinal,
E onde alguém escreveu,
Em letra garrafal:
“Amo-te, Marta,
És a razão do meu viver”.

Hoje estou à beira Tejo
E não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
E o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
Que, dizem, é o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
Tarrafo, lodo, merda,
Dois cantis vazios,
Um céu de bronze,
E mil e uma razões para (sobre)viver.

Nem poderia haver
Nenhum banco de pedra,
Nem nenhum jardim,
Nem nenhuma Marta
À minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
Que fosse a minha razão de viver.

Quando muito, um fantasma,
Surgido do cacimbo matinal,
Por detrás do baga-baga,
Armado de Kalash!

Não tinha, de resto, razão de viver,
Raison d’être, diria a minha copine,
Se eu fosse refractário,
E tivesse dado o salto para França.

Não tinha nenhuma razão de viver,
Nem de morrer,
Nem de matar,
Não tinha sequer nenhuma razão
Para estar ali, àquela hora.

Não havia nada
Na antiga picada abandonada
Do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um pub irlandês
Com a ruiva Guiness
A piscar-te olho,
A ti, herói português,
Com um improvável genoma celta.
Nem uma tasca afadistada
Da tua saudosa Lisboa,
Com a perna da morena,
Esbelta,
Lânguida,
A faca na liga,
Deixando antever
Os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
Nem uma decrépita gasolineira
Dos filmes do Faraoeste da minha infância,
Onde abastecer a tua Daimler,
Salta pocinhas, minas e armadilhas,
Em que ias de Bambadinca ao Xime
Simplesmente para beber uma cerveja,
Sem escolta nem picagem,
Num jogo de roleta russa.

Nem muito menos a Marta-Mátria,
Republicana e laica,
Verde e rubra,
De busto farto,
De peito feito às balas,
Dando a volta à cabeça dos rapazes,
Dando-lhes tusa,
Na Feira Grande de Setembro:
- Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
Nem sequer uma simples mulher,
Uma fêmea de bunda larga,
Ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
Cata-ventos,
Bailarina,
Redondinha,
Assexuada,
De pelo na venta
E apito na boca,
No cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
Em defesa da honra das donzelas
Da minha Pátria.
Chamem-se elas Marta ou Mátria.
Não, já não vou, cego, surdo e mudo,
A correr,
Disposto a morrer,
Com ganas de gritar Pátria ou Morte!,
Na velha picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês
Onde não havia nada.
Nem ao menos um tosco espanta-pardais,
Especado no meio do capim,
Em vez do campo de mancarra do fula,
Ou do teu jardim,
Do Éden,
Ou até uma simples seta,
De pau,
A apontar-te a direcção do inferno,
A maldição bíblica do pecado,
Omnipresente,
Obsessivamente eterno.

Havia apenas,
No fim da picada, o inferno.
À minha espera,
À nossa espera.
Às 8h50 da manhã
Do dia 26 de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Da era de Cristo.
E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês ?
A picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
Onde Cristo seguramente nunca parou
Nem amou
Nem penou
Nem sofreu
Nem pecou,
Nem rezou.

O teu Cristo etnocêntrico,
Judeu,
Semita,
Que nem sequer era caucasiano,
E nem muito menos sonhava onde era a Senegâmbia
Nem o Império do Mal(i).

Pensar global,
Sonhar alto,
Agir local,
Meu sacana
Ou melhor ainda:
Não pensar,
Muito menos sonhar,
Tiro instintivo, a varrer o capim.

Eis a ordem do capitão
Que tem acima o major,
Na sua avioneta,
No seu PCV,
E no topo o general,
O Com-Chefe,
O Caco Baldé,
O Homem Grande de Bissau,
Herr Spínola, para mim,

E à frente de todos,
Com o seu inseparável cachimbo,
O Seco Camará,
Seco de carnes,
Velho e valoroso guia das NT,
Pau para toda a obra,
Cão de fila,
Mandinga do Xime,
Herói da minha galeria de heróis,
Verdadeiro líder, etimologicamente falando,
Aquele que vai à frente mostrando o caminho.

Nesta guerra de baixa intensidade,
Não dês vazão ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor poupe, senhor,
As munições.
Da NATO.
Dizem que a glória te espera”,
Escreveu um serial killer,
Roqueteiro,
Com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
Ao longo da alameda dos bissilões.
“Vai para casa, tuga,
Que a tua namorada põe-te os cornos”

Não, não havia nada
Naquela picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês.

Lourinhã, 19 de Agosto de 2010

(*) Originalmente publicado em Luís Graça & Camaradas da Guiné, em homenagem a Luís Henriques e Armando Lopes que fizeram 90 anos em Agosto de 2010. Revisto nesta data.

___________

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Blogantologia(s) II - (83): À uma e meia da tarde, na estrada Nhabijões-Bambadinca

À uma e meia da tarde... (*)

Era uma hora e meia da tarde
quando o meu relógio parou,
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

... O sol dos trópicos desintegrou-se.
O céu tornou-se de bronze incandescente.
Mil e um pequenos sóis riscaram o ar.
O mamute de três toneladas deu um urro de gigante
ao ser projectado sob a lava do vulcão.

Uma súbita explosão…
Um trovão que ecoa até ao Mato Cão...
E depois um silêncio de morte.
O silêncio da morte.

...À uma e meia hora da tarde
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

Sei que gritaste:
- Agarrem-se que a viatura vai despenhar-se!
Sei que foste projectado ao lado do condutor,
batendo violentamente
com a cabeça na chapa do tejadilho.
Sei que conseguiste equilibrar-te
dentro do caixão de ferro,
e sei que não vias nada.


A espessa nuvem de pó, envolvente,
exalava um forte cheiro a enxofre.
Ainda consegui pensar:
- O ar está rarefeito,
milhões de partículas de pó barrento
bloqueiam-me os pulmões,
vou sufocar dentro desta maldita cabina!

Foi quando parou o meu relógio,
à uma e meia da tarde
à saída do destacamento de Nhabijões.

… Um curto-circuito ocorreu no teu cérebro,
como se tivesses sido electrocutado.
Ficaste rigidamente colado ao assento,
a G3 entrelaçada nas pernas,
e a estranha sensação
de que a massa encefálica te tinha saltado da caixa craniana.


O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra.
O gélido terror de quem entrou num mundo desconhecido.
A antevisão da viagem pelo gélido Rio de Caronte.
O calafrio da morte,
trespassando o meu corpo da cabeça aos pés.

...À uma e meia da tarde
na estrada Nhabijões-Bambadinca.

Nunca saberás ao certo
quantos segundos se passaram,
mas houve um solução de continuidade,
essa fracção de tempo
em que a tua consciência esteve bloqueada,
e os pulmões falharam,
e o sangue gelou,
e o coração parou,
de puro terror,
até compreenderes que a velha GMC...
tinha accionada... uma mina.


Outra mina, meu Deus!,
Que horror!,
e instintivamente agarrei-me àquela carcaça de mamute,
mal refeito da surpresa de estar vivo.

....À uma e meia da tarde,
à saída do reordenamento de Nhabijões.

Quando saltaste para o chão,
tinhas, sob o olhar aterrado,
os destroços duma batalha:
corpos por todo o lado,
juntamente com espingardas,
cantis,
canos de bazuca e de morteiro,
granadas,
dilagramas,
um rádio,
bocados de chapa e de borracha,
quicos,
botas,
restos de camuflado,
numa profusão indescritível.


Corpos que gemiam,
que gritavam,
ou que talvez fossem já cadáveres.

...No vulcão de Nhabijões,
a oeste de Bambadinca,
Sector L1,
Zona Leste,
Teatro Operacional da Guiné,
na África subsariana.

– Mortos! Tudo mortos!
– gritava-te o puto Umaru,
os braços abertos,
o pânico estampado no seu belo rosto de efebo,
fula, filho de régulo,
sem o seu inseparável pequeno cachimbo,
que sempre usava para lhe dar o ar de falso Homem Grande.


E logo ali o Transmissões,
o primeiro ferido que reconheceste,
todo encolhido junto ao colosso de ferro amalgamado,
numa postura fetal,
de defesa,
em estado de choque.

Abeiraste-te depois do comandante da 1ª secção,
teu companheiro de quarto,
o Marques,
o teu querido Marquês sem acento circunflexo,
mas ele já não reagia à tua voz
nem às bofetadas que lhe davas no rosto,
o olhar vidrado
dos passageiros do barco de Caronte.
Aparentemente não tinha qualquer fractura exposta
mas de um dos ouvidos corria-lhe um fio de sangue.
Um fiozinho,
vermelho e negro,
rapidamente oxidado em contacto com o ar.
Procuraste desesperadamente
os sinais de que ainda estava vivo,
mas sua respiração era cada vez mais fraca,
e o pulso escapava-se-te, entre os teus dedos.


Trágica ironia:
um minuto antes,
ao subirmos os dois para a viatura,
havíamos disputado amigavelmente o 'lugar do morto'.
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

… À uma e meia da tarde de um dia treze,
ao vigésimo mês de Guiné,
em Janeiro de 1971.

Acabaste por ser tu a ir para o 'lugar do morto',
ao lado do condutor.
Mas daquela vez,
e para sorte tua,
a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC,
embora do teu lado.
A velha GMC do tempo da Guerra da Coreia,
que gastava cem aos cem...
e que acabava de fazer a inversão de marcha,
de regresso ao quartel,
em Bambadinca.

Outra filha de puta de mina,
não detectada pelos nossos picadores,
fora accionada, na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões,
a coqueluche do comando do batalhão.
Porra, camaradas,
a escassos metros da anterior,
já fora da estrada!

… À uma e meia da tarde
de um dia que não era sexta-feira 13,
de azar!

Estavas de piquete,
quando duas horas antes uma viatura nossa
accionara uma mina.
Um frágil burrinho, um Unimog 411.
Ia buscar o almoço para o pessoal do reordenamento
O condutor, o Soares, teve morte imediata.
O Furriel Fernandes, também da CCAÇ 12,
o alferes sapador Moreira e outro militar,
ambos da CCS do batalhão,
ficaram feridos, com gravidade…


Mas só depois reparei no velho Tenon,
no Ussumane,
no Sherifo,
mesmo ao meu lado,
a meus pés,
sem darem acordo de si.
E ainda no Quecuta,
no Cherno
e no Samba, nosso bazuqueiro,
arrastando-se penosamente sobre os membros superiores,
como lagartos cortados ao meio.

…À uma e meia da tarde
na estrada da morte,
com as palmeiras de Samba Silate
e o Geba ao fundo.

As duas secções
que seguiam atrás, na GMC,
tinham sido projectadas pela vulcão de trotil,
como se fossem cachos de bananas.
Caso se seguisse uma emboscada,
então seria um massacre.
Tu eras o único que tinha uma arma na mão,
mas inútil,
inoperacional,
encravada,
devido ao choque sofrido…


Não deixei de sentir um calafrio
ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG
e sob o matraquear das 'costureirinhas'
e das Kalash.

… Ali, à uma e meia da tarde,
em Nhabijões,
na Guiné,
far from the Vietnam.


Tinhas acabado de fazer o reconhecimento das imediações,
detectando o trilho dos guerrilheiros
que, durante a noite,
tinham vindo pôr as minas assassinas…
Eles faziam a guerra deles,
tão cruel e tão suja como a nossa.
Esse trilho, mais fresco,
acabava por confundir-se
com os usados pela população de Nhabijões
que a gente sabia
não morrer de amores por nós…


SOS, evacuação Ypsilon,
vou a correr para o heliporto,
sem soro,
sem garrotes,
sem pensos,
sem maqueiro,
sem mala de primeiros socorros!

...Numa luta desvairada contra o tempo,
na estrada Nhabijões-Bambadinca.


Era possível, entretanto,
que houvesse mais minas
pela estrada fora.
Ainda hesitaste
em mandar picar o terreno,
mais alguns metros em redor,
mas não podias perder nem mais um segundo,
para logo seguires de imediato
para os helis
que aguardavam os feridos mais graves.

Mais até do que a solidariedade
entre camaradas de guerra,
mais até que a minha amizade pelo Marques,
de repente o que me terá movido,
o que me deu força anímica,
foi o brutal sentimento do absurdo da morte,
do absurdo daquela guerra,
a raiva contra aquela guerra.

… À uma e meia da tarde
nessa maldita picada do inferno.

Foi uma corrida louca,
aquela,
na fronteira indefinida
que separava a vida da morte
na estrada de Nhabijões.
No primeiro Unimog que te apareceu à mão,
e que levava um carregamento letal de feridos.
Três deles estavam em estado de coma
e tinham como destino outro inferno:
o hospital de Bissau,
os Alouettes III roncando como o macaréu,
sobre o Geba, largo e medonho,
a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte
aos vinte e poucos anos de idade.

…No dia 13 de Janeiro de 1971,
num dia que nem era sexta-feira,
mas que foi de terrível azar,
às treze e meia da tarde,
quando o teu relógio parou
à saída da grande tabanca balanta de Nhabijões,
finalmente reordenada
e controlada…

Luís Graça

______________

(*) Originalmente publicado em: 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)

sexta-feira, novembro 14, 2008

Blogantologia(s) II - (74): Contos do barqueiro de Caronte


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá >  O Rio Geba, entre o Xime (margem esquerda) e o Enxalé (margem direita), numa foto de Carlos Marques dos Santos (, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados


No Geba Estreito 
ou os doze contos do barqueiro de Caronte (*)


1.

Um homem passa o rio, a nado.
Um homem atravessa a ponte sobre o rio.
Um homem cai ao rio, baleado.
Há uma piroga, no tarrafo. metralhada.
E flamingos brancos, tingidos de vermelho.

2.

Um homem pensa na jigajoga da vida e da morte.
Um homem olha-se ao espelho.
Um homem porfia, e nem sempre alcança.
Um homem tem uma crise, de confiança.
Um homem do norte camba o rio.
A sul. A vau.
O Geba Estreito.
Que a última coisa a perder é a esperança.

3.

Um homem desenha uma ponte, imaginária,
entre dois pontos de cambança.
Um homem põe-se a pau,
a caminho do Mato Cão.
O inferno em frente,
o rio serpente, a bolanha de Finete,
um very-light, um foguete.

4.

E Lisboa ali tão longe...
tão azul, tão gregária.
Lisboa, o cais de Alcântara,
uma multidão de pontos negros.
Outra ponte, outro rio.
Saudades a mais, um nó na garganta.

5.

Um homem do norte faz o corte epistemológico
dos pré-conceitos etnocêntricos.
Quem és tu, viajante ?
Quem és tu, barqueiro ?

6.

O homem é o mal escatológico
que atravessa o céu de bronze.
O homem é o jagudi em voos concêntricos.
O homem é a hiena que ri.
O ferreiro, de outrora, hoje o dari.
O homem é o pássaro-bombardeiro.
O animal alado.
O helicanhão.
O falo de fogo.
O obus catorze.
O RPG Sete.
O Katiusha.

7.

Um homem é apanhado pelo macaréu da história.
Como um cão,  sem glória.
E na bolanha de Finete descobre 
que não há ponte nem salvação,
que há terra e céu, mas não há elo de ligação.

8.

Um homem perde a memória,
ao afundar-se no tarrafo do Geba.
Um homem chama o barqueiro da outra margem.
Em vão.
O barqueiro faz contas à vida
que custa manga de patacão.
E ao progresso que não chega,
ao motor de explosão,
ao motor da Yamaha,
à explosão dos cinco sentidos,
aos Strela, aos Katiusha,
à liberdade de circulação.

9.

Um homem passa a ponte,
a passo, a peso pluma.
A ponte armadilhada.
O barqueiro conta um conto em cada viagem.
O barqueiro de Caronte.
Um peso, irmão.
Um bilhete de ida sem regresso.

10.

Um homem exorta o soldado
a que leve a guerra a peito.
É o capitão, medalhado,
que nunca irá chegar a oficial general.
O fantasma do capitão-diabo,
vagueando pelo Cuor.
Estatuado, na capital.

11.

Vais no Bissau,
num barco à vela,
no barco da Gouveia.
Aproveitas a maré-cheia
e o cacimbo sobre Ponta Varela.

12.

O milícia, número tal, vai morrer, exangue,
como a última estrela da manhã.
E tu espreitas o rio,
da tua torre de Babel.
Um terceiro homem pára,
no semáforo.
Vermelho. De sangue.
A caminho de Madina/Belel.

Versáo revista, 19/5/2023

___________


Nota de L.G.:

(*) Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 10 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3431: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (3): Um homem da palavra e da acção (Luís Graça)

domingo, fevereiro 10, 2008

Blogantologia(s) II - (64): A triagem de Manchester ou o paciente português

Eurolândia > Portugal dos pequeninos > 2008 > Há sempre um português que (des)espera... no banco do jardim, na bicha do autocarro, no centro de emprego, no banco de urgência, na barra do tribunal, no manicómio, na rua, em casa, na escola, no trabalho, e até no canil...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.




Na sala de espera
do Banco de Urgência
há gente que desespera
com paciência.
Gente com paciência de santo
ou então pouco esperta.

Há gente que não conhece
a porta do cavalo
do hospital.
Sangrai-o e sangrai-o
e se morrer,
enterrai-o.

Mais logo,
eu estou de banco.
Apareça.
Ou então desapareça
da lista dos vivos.

Há um jovem casal
de apaixonados,
just married,
ela de fita amarela,
no pulso,
lívida, branca, exangue,
no banco do hospital.

Há dois negros que dormitam
e que devem sofrer de paludismo.
Estão ali há horas.
Podiam vir dos arrozais do Sado,
há décadas atrás,
tremendo de sezonismo.
Mas... mal por mal,
antes cadeia que hospital

e antes justiça que misericórdia.

Há um casal de paquistaneses
ou de indianos.
Muçulmanos.
Ele é o paciente,
de fita vermelha ou laranja,
que o sistema de Manchester
é quem mais ordena
e não olha à cor da pele.

Racista, eu,
sra. enfermeira ?
Até tenho um amigo preto
da Guiné.
Trabalha, no gosse gosse,
no estaleiro do subempreiteiro,
que não é nenhum mal essa tosse,
é do catarro,
é do tabaco,
é do tempo.

Há velhos.
Muitos.
Em saldo.
Doentes de solidão, abandono, exaustão.
Doentes de Alzheimer, Parkinson, fim de estação.

Chegam ambulâncias.
De Almoçageme, Alcáçovas, Alcácer, Almargem...
Da outra margem.
Tristes lugares ao sul.
Tentativa de suicídio,
diz o bombeiro para o securitas,
e a chusma de voyeuristas
e de tabagistas
que estão lá fora,
ao frio da noite.
A velha quis matar-se com comprimidos.
A maluca tinha alguma necessidade de fazer isso,
pergunta, resignada, a nora.

Alentejanos, ciganos,
mouros, morcões,
jovens de brinquinho,
colarinhos brancos e azuis,
activos e não activos,
pescadores, traficantes,
toxicodependentes,
mães solteiras,
domésticas em robe de dormir,
famílias monoparentais,
doentes pré-terminais...
E até um um cão, um canito,
magricela,
a quem os pacientes dão bolachas.

Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente. Paciente. Dormente.
Pouco ou nada eloquente.
Diz o sistema de triagem de Manchester.
Há um português urgente
que vem na ambulância da emergência pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar.
O resto não conta,
são amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
queixinhas,
maus contribuintes,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma e que bebe e que come,
e não ouve o Pádua
a dizer que no andar é que está o ganho...

Que já não há o azul nem o verde
do meu país
na paleta das cores do gestor
dos doentes
e das doenças.
Que há fé e até caridade,
mas pouca esperança, Senhor.

É triste e feia e fria
a sala de espera da urgência
do hospital,
Senhora Ministra.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Blogantologia(s) II - (42): Jogava-se à bola, domingo à tarde, na minha aldeia

Lourinhã > 2006 > Uma velha janela da minha rua...

Lourinhã > A avó paterna, Alvarina de Sousa Henriques... Morreu, de tuberculose, em 1922, qaundo o meu pai tinha dois anos... A mãe tinha vindo de Ribamar e pertencia à grande família dos Maçaricos...
Cabo Verde > ILha de S. Vicente > Mindelo > 1º Cabo Henriques, nº 188/41,expedicionário., 1941-43. Para defender a Pátria contra tudo e contra todos:os aliados, as potências do eixo...

Lourinhã > 2 de Fevereiro de 1946 > Os meus pais, no dia do casamento...

Alfragide > Junho de 2007 > Os meus amorosos velhotes (aqui fotografados pelo neto)...

Lourinhã > Jardim da Nossa Senhora dos Anjos > Setembro de 1947 > O artista quando criança, aos 8 meses...

Lourinhã > c. 1950 > Eu e a mana Graciete (n. 1948)... Dezoito meses de diferença...

Lourinhã > Finais dos anos 40 > Jogava-se à bola no largo do convento...

Lourinhã > Nadrupe > c. 1947 > O tio Silvano...

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Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.
Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.
Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os filhos aos pais,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas azuis,
A sacola a tiracolo,
O recreio,
O leite em pó da Caritas americana,
O jogo dos cinco cantinhos,
O berlinde,
O abafa,
As caricas,
O bife ao domingo,
O polvo na maré-baixa,
O bacalhau com grão às sextas-feiras
Na Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão, a Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
As rixas,
As travessuras,
O pião,
O supremo heroísmo
De alguém que morreu para te salvar,
Deus, Nosso Senhor,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda
Como os anjos bolachudos do altar-mor
Da igreja matriz.

Quando era menino e moço,
E feliz,
E acreditava nos contos de fada,
Havia as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
Tão morto como qualquer mortal,
As opas roxas como no tempo da Santa Inquisição,
As matracas que nos enchiam de terror divino,
A bolsa lacrimal dos anjinhos,
As lágrimas das nossas mães,
O sagrado e o pagão,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
A feira,
O carrocel,
As labaredas do inferno,
As fogueiras de Santo António,
As bichas de rabear,
O calvário e as suas trezes estações,
A rua da misericórdia,
A rua grande,
A rua do castelo,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Marinheiros aventureiros,
Soldados fortes e valentes,
Ou simples cavadores de enxada,
Como os seus pais e os seus avós
Tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo,
Nem se chorava por eles.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes,
Os camponeses e os seus burros
E demais animais de estimação,
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas, os peros e os abrunhos,
O melão e a melancia,
O pão de trigo do moleiro
Cozido no forno a lenha.
Bebiam vinho pelo garrafão
E comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
Feitas de trapos,
Berrantes, multicolores.
Eu era petiz
E eles vendiam saúde e morriam cedo,
Contrariando o provérbio que diz
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dá tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda
E que tresandava a iscas com elas,
A vinho tinto carrascão
E a serradura…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede,
Uma sapatada contra o destino.
Menino com vocação circense,
Menino-jogral,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Escrevia eu no quadro preto.

Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(vã promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Em Janeiro,
Os carros de pão,
As promessas de amor,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’ Adelina
Da rua do clube,
Contra o mau olhado,
O sarampo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A pneumionia,
A pleuresia,
A tísica,
O lobisomem,
A bruxa de São Bartolomeu,
O santo que pisava um diabo negro a seus pés…
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.

Não se livrou o sacristão,
Que se matou num poço,
Por maldição,
Depois de roubar a nota de vinte paus
Ao diabo de Samert’lameu.

E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado
Pouco ou nada heróico de patriotas,
Quixotescos, quiméricos,
Vagamente republicanos, jacobinos e anticlericais,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar,
Os ditadores ibéricos.
Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona,
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
Nem o correio azul
Nem a Internet
Nem a Wikipédia
E o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
A tragédia,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conheci um carteiro,
O ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E mais tarde meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha,
A filha do Visconde lá da terra!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?

E ao alto, acima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morrera para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,
Escrevia eu, a giz,
Na ardósia,
Repetindo-o
Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.

A melancolia de domingo de tarde…
Havia a bola,
O hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E sticks de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
Ou de sandálias de sola de pneu
No largo do coreto da minha aldeia.
Ou descalço, com bola de trapos.
Quando havia ainda o coreto,
Frente à escola,
E a senhora professora Dona Helena
Te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.
Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra, lascada,
Que te vem de fora,
A cento e tal à hora,
Arremessada
Por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
O capital e o trabalho,
A família e a pátria,
E se calhar até Deus,
E que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe.

Quando ainda havia o coreto
E a banda filarmónica
Cabia lá toda,
Jogava-se à bola
Domingo à tarde
Na vila da minha aldeia de gente liliputiana.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As rixas.
As cenas de pugilato
E vara pau.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe
Que era bufo e da União Nacional
E tinha uma amázia lá terra.
E o louco.
E o beato.
E o sacristão que era bimbo.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O director escolar.
O provedor da Misericórdia.
Os pensionistas, os porcionistas e os indigentes.
Os ricos, os remediados e os pobres.
Os sãos e os doentes.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.

Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
E chegava.
E os funcionários do grémio da lavoura
Que recebiam ao fim do mês,
Mais os da Câmara e das Finanças.
A pequena burguesia pelintra,
Manga de alpaca,
Mais os comerciantes e os proprietários,
Que animavam o Clube 24 de Julho.

Havia três médicos,
E chegavam para todo o concelho,
Que a gente só os chamava
No estertor e no pavor da morte.
A eles e aos padres.
Havia dois boticas.
E chegavam.
Havia os cortejos de oferendas
Para se construir um hospital novo
Para a velha Misericórdia.
Havia a escola, primária, do Conde de Ferreira,
Construída no tempo da Regeneração,
Com o remanescente da herança
Do maior benemérito do Liberalismo.
Havia o carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa
E pôr a conversa em dia.
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Coisas que me contavam
Do meu tio-avô Fofa
Que tinha fama de malandro e de beato,
Uma figura seca e mística,
Arrancada às tábuas do Greco.

Enfim, havia a vida privada,
Exposta na via pública
Domingo à tarde.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
As tentações do Capuchinho Vermelho.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
Os ciganos acampados no Rossio.
As cheias do Rio Grande.
E a barraca onde só iam os homens feitos,
Mal enjeitados e com barba de três dias.
E as virtuosas e púdicas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam,
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
No lendário Bairro Alto
Da formosa Lisboa
Ande fui, pela primeira vez,
Na camioneta do João Henriques,
Aos oito anos.
Lisboa, onde se ia de camioneta uma vez na vida.
Ou duas: primeiro no passeio anual da catequese
E depois, graças às sortes,
Para tomar o vapor das Índias e das Guinés.

Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o esplendor do cinismo dos grandes
E a ostentação da caridade dos ricos!
Que dar aos pobres
Era emprestar a Deus!

E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca
Mas tinha uma mauser distribuída,
Para ser usada em caso de guerra civil
(Ou de invasão dos marcianos!)
E que morreu virgem
E chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que eu imagino às vezes belo e garboso,
E outras vezes cabrão,
E que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia um na minha rua
Para abastecimento geral de água potável.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.
E à cabeça da procissão
Ia o pobre e o notável...

Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Imponente,
Valente
De sabre em riste
Contra os grevistas,
Os filhos e as mulheres dos grevistas...
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro,
A CUF,
O Alfredo da Silva
E outros capitães de indústria,
Ou a Marinha Grande,
As fábricas
E os operários em construção.
Os trolhas,
Os mineiros,
Os garimpeiros,
Os almocreves...
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
Ali tão perto,
As Berlengas e as sirenes no nevoeiro,
As sirenes do medo e da coragem,
E o Álvaro Cunhal,
Foragido,
Grande herói da classe operária,
E inimigo mortal
Da Igreja do Cerejeira
E da Nação de Salazar.

Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do Joãozinho:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.

De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
E de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Nasci na Ilha de São Vicente
Onde nunca fui.
Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante,
Fundeado ao largo .
Lembro-me do álbum de fotografias do meu pai,
Expedicionário.
Lembro-me das linhas com que se cozia e descozia
O Império.
Enfim, havia o Império, do Minho a Timor
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.

O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
Expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
Contra tudo e contra todos:
O amigos, os aliados,
As potências do eixo, os bolcheviques,
A Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos,
À tarde,
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das Beiras,
Dos Alentejos.
Fugindo da fome, da praça da jorna
E dos cavalos da GNR.

Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.
E um dia parti a cabeça,
À saída do futebol
E do alvoroço do povo.
Sei que me puseram um pano branco
À volta,
Como se punham aos jogadores
De cabeça partida, perdida.
Foi a minha coroa de glória,
A única que terei tido em toda a vida.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…E
também nunca gostei do alvoroço do povo,
Dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Nem do domingo à tarde.

Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes,
Na maré vazia,
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas da memória.
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós…

Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi, não.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.
Ou pela irremediável tendência
Que tem os poetas
Para a dissimulação
Dos sentimentos na parte mais ocidental
Do cérebro.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinées.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.


Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde,
Num quadro com gente atarracada
A comer pevides e tremoços
No Jardim das Delícias.
Ao fundo, o Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Pelas dores do parto da Maria,
Chamar a partêra.
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco
Na casa do Tio Silvano.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A palha de trigo a arder.
O odor a carne chamuscada.
A agonia do porco.
O sangue.
O sarrabulho.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os primeiros beijos roubados na palha do trigo.
O peixe a secar ao sol no telheiro.
O pilau
Que o menino exibia para criada.
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos,
Os filhos dos pescadores de Peniche,
À Terra da Loba,
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No soltício do inverno.
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro.
As galinhas.
A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.


O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.

Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo,
Que veio à terra para te salvar,
Mas o teu sangue,
De tipo universal, positivo.
Tomávamos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.
E eram os primos mais velhos,
Como o Zé Fernando, o Frasco do Veneno,
Ou a prima Santa Teresinha
Que nos sugeriam a existência
Dos demónios do sexo.
- Nunca vás para padre que te cortam a pilinha!

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa
E do choro abafado do Ricardo,
E dos cabelos desgrenhados da tia Ema.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai,
Infinitamente misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou, meu rapaz!)
Tinha uma explicação para tudo,
Para o bem e para o mal,
Para a vida e para a morte,
Para a riqueza e a pobreza,
Para o feio e para o belo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite,
Na minha rua,
Na rua do cemitério,
Junto à Igreja do Castelo.
Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
Aos serões,
As meninas-catequistas da rua do clube,
Que eram costureiras,
Como todas as meninas do coro da igreja matriz.
E meteram-me na camioneta dos Capristanos
Com destino ao seminário menor de Santarém.
Eu e o meu baú,
Desamparado,
Terrivelmente sozinho
Ante os dilemas da fé,
Da vocação,
Do destino,
Da vida,
Da carne,
Do pecado,
Da morte,
Da ressurreição eterna,
Dos jesuíticos corredores
E das medievas muralhas da cidade.
Lá atrás, a oeste, ficava o mar,
O rugido do mar,
O cheiro a algas, a maresia,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
Os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
Os ciganos acampados no Rossio,
As águas límpidas Rio Grande,
O Montejunto ao longe,
A Atalaia e o Montoito,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E a amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
E a malta da tua escola.
E a prima Santa Teresinha
Que brincava com as hóstias e as pilinhas,
Nas missinhas
Que fazia no sótão do Tio Fofa.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.


Texto e fotos: © Luís Graça (2004-2007)

segunda-feira, julho 10, 2006

Blogantologia(s) II - (30): O Relim não é um poema

Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 1 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio)



Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina.

Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos:

Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Com, reforçada pelo Pel Caç Nat 52

Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb

Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.

Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.

Comentário de L.G.:

Relim não é poema


Participei nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel.
Um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,
e à navegação do Geba Estreito.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais barato:
pretos de primeira da CCAÇ 12
e do Pel Caç Nat 52,
mais alguns brancos de segunda,
os açoreanos
da vinte e seis trinta e seis.

Levámos dois cantis de água por cada G-3.
À noite quando saímos de Missirá
chovia a cântaros.
Lembro-me de ter perdido
o impermável camuflado
e de o ter recuperado
à luz de mil sóis,
mil relâmpagos.

O que é que um gajo pensa,
aos vinte três anos,
de Missirá a Salá
e daqui a Sancorlá,
em bicha de pirilau,
de noite, com chuva a cântaros,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,
a fustigar-te as trombas ?
Um gajo não pensa nada,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais um operação...

Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(vd. Op Lança Afiada
em que um cada seis foi evacuafdo).

Caminhámos toda noite.
Penosamente.
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã.
Às dez em ponto.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.
Cortaram-nos as voltas.
Os tipos do PAIGC
(não me apetece dizer IN)
cercaram-nos pelo fogo.
E quanto a Deus
e às abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exactamente
de que lado estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
catorze horas, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Nós, quem ?
O major da Dornier, do PCV,
a quem as casas estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio.
Ainda não havia os Strellas,
a temível arma dos arsenais
do inimido,
que haveriam de pôr o homem
borrado de medo
e definitivamente em terra.

Alguém puxou dos galões
e decidiu fazer um golpe de mão.
Ou melhor: mandar fazer,
que eu nunca vi nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão.
P'ra ficar bem na fotografia.
E para pôr no curriculum vitae
e impressionar o Caco...
Um senhor major qualquer
do BCAÇ 2852,
que gostava de andar de Dornier
e que queria chegar a tenenente-coronel.
Um herói de opereta.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
quem comanda esta tropa-macaca ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.

Entretanto, já alguém,
o Beja Santos,
o nosso tigre de Missirá,
tinha ido buscar, de heli,
o reabasteciemnto de água
a Bambadinca.
Não voltou.
Alguém dos nossos (?!) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
(soube isto agora,
pelo relato dramático do Beja Santos) (1).
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o Beja Santos ficou retido no Xime.

A verdade é esta:
O PCV falhou, o heli falhou.
O cadeia de comando quebrou-se.
Ou porventura alguém quis matar
o tigre de Missirá.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o cabrão do comandante do PCV
foi bater a sesta em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
sofremos brutalmente.
Eu sofri,
que a dor não para dá
para partilhar.
Sofri brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
A insolação.
O absurdo.
A desumanidade.
Tive miragens.
Bebi o próprio mijo,
esgotado o soro.
Mastiguei as ervas do orvalho,
esgotada a água.
Desesperei,
perdida a esperança.
Bebi sofregamente a água choca dos charcos.
Amparei os mais desgraçados do que eu.
Transportei os nossos feridos.
Consolei os mais desesperados.
Fiz as minhas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus.
Não deu nenhum tiro de misericórdia
porque nunca dei nenhum tiro em combate.
Mesmo cristãmente,
odiei o PCV,
Bambadinca,
as fardas, os galões,
a tropa, a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné.

Um homem,
mesmo o cristão que eu não sou,
tem que odiar
para sobreviver.

Amigos e camaradas,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim.
O relim não é um poema.
Um poema épico ou dramático.
É sim, tão apenas,
Um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.

O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos.
Das miríades de abelhas kamikazes
que arrancastes do cachaço.
Dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel.
Dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados elementos pop
que morreram à hora da sua sesta.
Das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome, a sede.
A lassidão do corpo, a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para morderes de raiva.

Não, nunca mais irei esquecer Madina/Belel.
Eu e mais 250 homens combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte p à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água, etc.).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
da CCS do BCAÇ 2852,
o Alferes Miliciano Médico
Saraiva (tinha esquecido o nome),
que o Beja Santos
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação...
O pobre do doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficou em terra,
perdeu a boleia do heli
e conheceu o inferno do Cuor.

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers cokm que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de King
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
é coisa que se vê
e que em último caso serve
para limpar... o cu.

Fonte: Extractos do Diário de um Tuga.
Abril de 1970 / Julho de 2006

_______

Nota de L.G.(1) Vd. posts de:

29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

domingo, novembro 27, 2005

Blogantologia(s) II - (17): Com Brueghel, domingo à tarde

Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.

Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.

Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas,
A sacola às costas,
O bife ao domingo,
O bacalhau com grão às sextas-feiras,
A Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão,
A Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
O supremo heroísmo
De alguém que morre para te salvar,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda,
E tinha mamas grandes
E que viria a morrer, coitada,
De cancro da mama…

Havia as festas, as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
A bolsa lacrimal,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
O carrocel,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Fortes e valentes,
Como os seus pais e os seus avós
tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum.


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas e os abrunhos,
O pão cozido no forno a lenha.
Comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores.
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dava tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede.
Menino com vocação circense,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino.








O Tio Silvano

© Luís Graça (2005)


Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Os carros de pão,
As promessas,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’Adelina
Contra o mau olhado,
O samparo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A bruxa de São Bartolomeu,
Ou Samert’meu
O santo que pisava a seus pés
Um diabo negro como o carvão....
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.


E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado pouco ou nada heróico de patriotas,
Vagamente republicanos,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar.

Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona .
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
nem o correio azul
nem a Internet
e o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes.
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conhecia um carteiro,
o ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E, fora disso, meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?


E ao alto, a cima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morreu para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.



Lourinhã: finais dos anos 40.
Jogava-se à bola no largo do convento...
© Luís Graça (2005)











Havia a bola, o hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
No largo do coreto da minha aldeia.
E a senhora professora Dona Helena
Que te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.

Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra
Que te vem de fora,
Arremessada por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
Que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe


Jogava-se à bola
Domingo à tarde.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe.
E o louco.
E o beato.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O provedor da Misericórdia.
Os ricos, os remediados e os pobres.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.





















Quando eu era pequenino... mais a mana

© Luís Graça (2005)



Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
A escola do Conde de Ferreira,
O carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa,
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Havia a vida privada,
Exposta na via pública.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
E a barraca onde só iam os homens feitos.
E as virtuosas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
no lendário Bairro Alto
da formosa Lisboa
onde se ia de camioneta uma vez na vida.



Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca.
E que morreu virgem
e chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.





















1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os aliados, as potências do eixo...



Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro
Ou a Marinha Grande
E os operários em contrução.
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
E o Álvaro Cunhal,
foragido,
grande herói da classe operária,
e imnimigo mortal
da Nação.
Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do João:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.
De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
e de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante.
Lembro-me…
Enfim, havia o Império,
Do Minho a Timor,
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.


O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os amigos, os aliados, as potências do eixo,
a Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das beiras,
Dos alentejos.
Fugindo da fome
E dos cavalos da GNR.



Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…
E também nunca gostei do alvoroço do povo,
dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes
Na maré vazia
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas.
Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinés.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.

Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde.
O Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Chamar a partêra
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A agonia do porco.
O sangue.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As partidas que os grandes pregavam à pequenada,
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os beijos roubados na palha do trigo,
O peixe a secar ao sol no telheiro,
O pilau que o menino exibia para criada,
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos, no Inverno,
Os filhos dos pescadores de Peniche.
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro. As galinhas. A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.

O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.


Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo, mas o teu sangue.
Tomavámos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai, misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou )
Tinha uma explicação para tudo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite
Junto à Igreja do Castelo.





















Eu e os meus queridos nharros (1969)

© Luís Graça (2005)



Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
As meninas da rua do clube,
Aos serões
E meteram-me na camioneta do Claras
(Ou era dos Capristanos ?)
Com destino a Santarém.
Eu e o meu baú,
terrivelmente sozinho
ante os dilemas da fé,
da vida,
da carne
do pecado,
da morte,
da ressurreição eterna
Lá atrás ficava o mar,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem sete, oito, nove, dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.

Revisto em Julho de 2007. L. G.