sexta-feira, outubro 21, 2005

Blogantologia(s) II - (9): E na hora da nossa morte, amen

Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em 3 de Abril de 2005, sob o post > Blogantologia(s) - XXVI: Na hora da nossa morte


Mark Twain comentou um dia que a notícia da sua morte tinha sido um exagero... A morte é (e será) sempre excessiva. E mais excessivo ainda tudo o que se disser sobre ela. Por mim, não consegui evitar mandar, a meus amigos, algumas dos meus excessos sobre este momento que nos tocou a todos, de uma maneira ou de outra...

É a minha maneira pessoalíssima de homenagear um homem de paz que, como alguém disse, estava longe de ser o meu papa preferido. Espero bem não ferir, com isto, os sentimentos cristãos (ou até mais: católicos apostólicos romanos) dos amigos (cristãos, católicos ou outros) da minha e-mailing list.


Enoja-me
O espectáculo da morte em directo,
Transmitida pela televisão,
Em todos os canais,
Com direito a uma caneca de cerveja
E um balde de pipocas.
Como no cinema do meu bairro.

A morte de um santo homem de igreja,
De qualquer homem,
Mais justo ou menos justo,
Mais recto ou menos recto,
Cristão, mouro ou judeu,
Budista, hindu ou animista,
Agnóstico ou ateu,
Deveria merecer discrição
E compaixão.
Não este espectáculo impúdico.
Não este serviço público.

Mas estes são os tempos,
Indecorosos,
Em que vivemos,
A contragosto, a custo,
Com o espanto a escancarar as nossas bocas.
Este é o tempo da mensagem/massagem,
Do circo mediático,
Da manipulação.
Tempos também vertiginosos,
Que são os da redundância da comunicação,
Do enfático,
Da função fática,
Do ruído e da sobre-exposição.
Porque televiso, logo existo.

Não sou crente
No sentido etimológico do termo
(O que dá algo como certo, verdadeiro ou confiável),
Mas peço aos deuses,
Aos do sul e aos do norte
(Para ficar bem com todos!):
- Por favor, não sejam tão belicosos,
E tenham pena de nós!
Não sejam tão proactivos,
Sejam simples agentes passivos,
Na hora da nossa morte,
No silêncio da nossa morte,
No minuto derradeiro da nossa vida.
E que essa seja a hora da boa morte.
Por favor, deixem-nos morrer em paz,
Desliguem o botão da máquina
Depois de fazermos as contas
Com a terra, com a vida
E com o tudo o mais que é humano,
Porque, como diz o cante
Do meu irmão alentejano,
"Eu sou devedor à terra
E a terra me está devendo,
Ela paga-me em vida
E eu pago à terra em morrendo".

Só não sei é se vocês,
Celestes criaturas,
Distantes deuses do Olimpo,
Senhores do além,
São capazes de ser compreensivos
E ter pena de alguém,
Dos comuns mortais.

A questão é que
Já não se pode mais
Ouvir o silêncio,
Em estado puro,
Nos novos templos,
Que são os centros comerciais
Do mercado globalizado.
O mundo é hoje um gigantesco shopping,
Com um écrã gigante
Onde tudo é reduzido ao estatuto de mercadoria.

Em Epidauro
Passa hoje uma autoestrada
Da informação e do conhecimento;
Em Epidauro e noutros sítios
Do império e da sua paz tão aclamada,
Já não há lugar para Asclépio
Aparecer-nos em sonhos
E curar-nos das doenças delirantes,
Psicossomáticas e civilizacionais,
De que sofremos,
Nós, o povo dos turistas errantes.
Em Epidauro, na Grécia Antiga,
Ficaram os derradeiros heróis homéricos,
Pisados pelos cavalos dos godos
E dos outros bárbaros,
Que são os tretatvós dos nossos tretavós...

Não invocarei os deuses, em vão,
Nesta hora, neste dia, neste ano,
Em que os feios abutres
Pousam sobre o cadáver
Do velho e mediático globetrotter,
Que não morreu às mãos dos seus assassinos
Em Fátima ou no Vaticano,
Mas pela boca do teleponto,no telejornal.
Por que deles, os abutres, sopram os miasmas
Da irrisão e da loucura
Que nos levam à imitação divina,
Doença essa que julgo não ter cura.

Hoje morreste duplamente,
Karol Wojtyla, João Paulo, o segundo:
Confiscaram o teu corpo,
A tua imagem, a tua identidade,
O teu gesto, a tua voz,
Socializaram o espectáculo da tua morte,
Decretaram o luto em todo o planeta.
E quando o Papa, ou o Faraó, ou o Imperador morre,
Também todos nós,
Seus súbditos,
Morremos, um pouco.
E os nossos mortos queridos
Voltam a morrer,
Pela segunda vez,
Ajudando-nos talvez com isso
A fazer melhor o luto.

Posso talvez não te olhar com ternura.
Ou até mesmo com simpatia.
Porque não tive o privilégio de te conhecer,
Nem de privar contigo,
Como o fizeram os grandes deste mundo.
Mas admiro a tua fibra de lutador
E a tua resistência à dor.
E a tua bonomia de pastor
E o teu papel de mensageiro da paz.
A verdade
É que nunca te ouvi falar com raiva.
Nem com ódio.
Nem com rancor.
Mesmo face à estupidez do mundo,
Ou à exibição fálica das máquinas do terror.
Nunca te ouvi dizer uma palavra excessiva
Sobre os que te queriam matar.
Ou que fizerem de ti um verdadeiro Papa pop-star.
Talvez isso seja santidade,
Ou ingenuidade,
Carisma ou simples telegenia,
Não sei.

Todavia inquieto-me,
Quando os teus concidadãos,
Os teus vizinhos,
Os teus servos,
Os teus rebanhos
E os teus animais de estimação,
O teu povo e o teu Deus,
E a tua poderosa corte de cardeais,
Bispos, padres, diáconos e acólitos,
Às vezes se calam,
Se refugiam na sombra da ambiguidade
Ou não são frontais
Ante o mal,
Ante as forças portentosas do mal,
E os dilemas pouco metafísicos
Da humanidade,
A humanidade concreta,
Os homens, as mulheres e as crianças
Que ocupam este planeta
Da Guiné-Bissau
À Nova Guiné.

Mas quem sou eu
Para te atirar a primeira pedra ?
Quantas vezes tu e eu,
Nós, os homens e as mulheres de boa vontade,
Nós e os nossos concidadãos,
Nós e os nossos amigos,
Nós e os nossos parentes,
Não protestámos,
Não contestámos,
Não nos insurgimos,
Não gritámos,
Preferindo encolher os ombros,
Ou tapar as bocas e os olhos,
Perante o inevitável,
Perante o indizível,
Perante o indescritível,
Perante o inenarrável,
Perante o inumano,
A solidez de pedra do sistema.

O problema é que o comboio passa
E os cães ladram,
Enquanto o filósofo fabrica o seu teorema
E o poeta faz um soneto,
Sobre o custo de vida
Que está pela hora da morte;
E o autarca faz um parque
Para os poetas-cegos
E um canil para os cães
Que ladram aos comboios,
Mesmo que nem uns nem outros
Saibam o sentido da marcha do comboio
E o porquê do ladrar dos cães,
Mas a aplaudam a bondade
Do projecto do autarca.

Não creio que
Esta seja a ordem natural
Das coisas.
Mesmo quando tu és pedra
E sobre essa pedra te edificaram
Um reino, o teu reino eclesial,
Que impressiona muitos dos comuns dos mortais
Pela sua solidez e perenidade.

Estive há dois anos
Na tua histórica Cracóvia,
Na tua Kadowice natal,
Karol Wojtyla,
João Paulo, o segundo,
Papa da Igreja Católica,
Agora defunto.
Não sei nada do Santo Espírito
Nem dos dogmas
De que a tua igreja é a guardiã,
Nem dos mistérios da tua fé,
Polaca e cristã,
Sólida como uma rocha de granito,
Mas que não seriam mistérios
Se o fossem da razão
Ou até tema de discussão
Na praça pública.

Sei pouco da tua vida,
Karol Wojtyla,
Com o teu ar tão adoravelmente tosco
Quanto humano
De lenhador
Ou de camponês,
Órfão de mãe,
Fã de Maria, a Virgem.
Procurei, e não em vão,
Da tua terra entender
Os sinais da história,
E tive pena e ao mesmo tempo orgulho
Da tua Polónia,
Terra mártir.
Dos teus mineiros de sal e de carvão.
E da tua virgem negra de Czestochowa.
E dos teus camponeses, ex-servos da gleba.
E dos teus operários dos estaleiros navais de Gdanz,
Ex-heróis de músculo e de aço do proletariado.
E do seu trabalho de Sísifo.

Mas foi do inferno de Auschwitz-Birkenau,
Bem ao pé da tua casa da infância,
Que trouxe o cheiro do mal absoluto,
Entranhado no meu corpo,
Dos pés à cabeça,
Corpo não de santo peregrino, como o teu,
Mas de vulgar turista.
O cheiro da morte total
Que hoje ainda nos persegue, aos vivos,
E que há-de perseguir-nos
Pelos séculos dos séculos.

Sei que pediste perdão aos judeus,
Ao povo judeu,
Não por este holocausto,
Mas por outros infernos,
E nisso foste digno.
Um outro sucessor teu,
Talvez Pedro, talvez Paulo,
Irá pedir perdão, em vida,
E com a conveniente solenidade,
Aos milhões de homens e mulheres,
Da tua aldeia global,
Que tu conhecias tão bem,
Da América à África e à Ásia,
Passando pela Europa e pela Oceania;
Aos homens e às mulheres que, depois de ti,
Irão morrer
Do HIV/Sida.
Sem fé.
Nem esperança.
Nem caridade.

Afinal, Karol Wojtyla,
É na hora da nossa morte
Que descobrimos que, na terra,
Há mais inferno do que céu.

Sem comentários: