sábado, agosto 18, 2007

Blogantologia(s) II - (46): Agosto na baixa-mar

Lourinhã > Praia de Paimogo (1) > Os antigos viveiros de lagosta, em ruínas, e a descoberto na baixa-mar, 17 de Agosto de 2007.

Lourinhã > Praia de Paimogo > Baixa-mar, 17 de Agosto de 2007.

Lourinhã > Praia de Paimogo > O Forte de Paimogo, ao fundo, visto da Pria de Vale de Frades, 17 de Agosto de 2007.


Lourinhã > Praia de Paimogo > 17 de Agosto de 2007 > Pescadores, com a Praia da Areia Branca ao fundo.


Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Agosto na baixa-mar (2)

Em Agosto
Voltarás a ser catraia.
A ser a primeira
A chegar à praia.
E a deixar as tuas peugadas
Impressas na areia,
Limpa e enxuta,
Da manhã.

Em Agosto,
Para, olha e escuta
O esplendor da luz nas arcadas
Das praças da cidade
Vazia.

Agosto,
Na baixa-mar,
Será sempre o teu dia,
O dia seguinte ao acto da criação
Do mundo.
E terá sempre um lugar:
Vale de Frades
Ou a implosão das falésias
E da maresia.

Em Agosto,
Submergirás até ao fundo
E será através dos subterrâneos do mar
Que chegares até aqui.
Até mim.

Agosto,
Na baixa-mar,
Será um imenso oceanário,
A festa de todos os signos,
Do Leão ao Aquário.
Agosto, o mês do verbo amar.

Lourinhã, 18 de Agosto de 2007.

__________

Nota do editor:

(1) Vd. post de 28 de Setembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (7): Paimogo da Minha Infância

(2) Vd. posts de:

9 de Novembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (15): O amor em Agosto

21 de Abril de 2007 > Blogantologia(s) II - (38): Apetece-me dizer-te que te amo

segunda-feira, agosto 13, 2007

Blogantologia(s) II - (44): Infeliz o surdo (e o huno), porque dele não será o Reino de Neptuno

Lourinhã > Praia de Vale de Frades > Rocha com vestígios de árvores fossilizadas.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados

Infeliz o surdo (e o huno), porque dele não será o Reino de Neptuno

Estou surdo
E não poderei ouvir-te
Em Agosto.
Nem ouvir o que mais gosto em Agosto,
O mar,
A décima sinfonia do mar.
Ou só poderei captar
Meio som
Com meio ouvido.

Estou surdo
E por mais absurdo
Que isso te pareça
Só poderei entender
As palavras sibilinas
Que me escreveste no teu último mail.

Aqui estou, especado,
Na areia,
Emparedado
Entre o Beethoven a fazer o pino
E o desejo e a ameaça de Sibila.
Enquanto espero o otorrino
À porta do consultório
E o sol que tarda
Nesta tarde do mês de Agosto.

Infelizes os surdos
E os curdos
(que não têm mar nem pátria)
E os duros de ouvido,
Porque deles não será o Reino de Neptuno!

Sinto-me infeliz
No pico do verão,
Meio surdo,
Meio huno,
Meio curdo,
À espera do sol
E do seu espectáculo de strip-tease.

Aqui especado,
Parado,
Enterrado na areia,
À espera de qualquer coisa,
De acontecer qualquer coisa,
À espera da queda dos últimos restos
Do sacro império dos romanos,
Uma prancha de surf,
Um tubarão assassino,
Uma aeronave publicitária,
Um ataque de pânico,
Um falso alarme de tsunami,
Um crash na Bolsa de Nova Iorque,
Um suicídio colectivo,
Um pedaço da arrábida fóssil,
Um duro osso de roer de dinossauro,
Uma boa chuva de meteoritos made in China

À espera dos bárbaros,
À espera dos hunos,
À espera do otorrino,
À espera de ti,
À espera do sol
Que teima em tardar,
À espera da recuperação dos meus cinco sentidos.
À espera do som e da fúria
Da próxima praia-mar,
Em noite de lua cheia
Prenha de augúrios, fantasmas e medos.

Só não conquistaram o sol,
Os romanos,
Nem os oceanos.
O Atlântico.
O sol que tarda em Agosto.
Nem havia nesse tempo
O direito a férias pagas,
Subsídio de invalidez por surdez profissional,
Nem muito menos o prémio por nascimento
E funeral.

Estou surdo,
Ou se não estou surdo foi por um triz,
Estou surdo
E a fazer o luto
Pela morte do Estado-Providência
Que me pagava o otorrino
E as gotas para o nariz.

Aqui é o meu futuro,
Diz o novo huno,
O imigra que agora vende Bolas de Berlim
Em praias rigorosamente concessionadas
E vigiadas pela ASAE.
Sem dó
Nem piedade.
Viva o fascismo sanitário,
Proclama o outdoor
Da nova polícia das retretes
E dos croquetes.

Estou surdo.
Falta-me ficar cego e mudo.
Para ser cego, surdo e mudo,
Como a figura da deusa Justiça.

sábado, agosto 11, 2007

Blogantologia(s) II - (43): A Friendly World

Lourinhã > 5 de Agosto de 2007 > Baixa-mar, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades, com o forte de Paimogo ao fundo. A Alice e uma amiga do Porto, a Laura.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados

Para o João Graça que está em Natal, Brasil, e para os seus novos amigos brasileiros, o Igor e a família Santos, que tão generosa e calorosamente o acolheram por um mês.


A friendly world,
por Luís Graça

Se todos os pescadores
De todo o mundo,
Ao longo de todas as costas,
De todas as linhas do horizonte,
De todas as praias,
De todos os mares,
De todos os bancos de pesca,
De todos os icebergs,
De todas as fossas submarinas
E plataformas continentais,
De todas as ilhas,
De todas as pontes,
De todos os cabos e promontórios,
De todos os lagos e albufeiras,
De todos os rios,
De todas as rias,
De todos os cais…

Se todos os pescadores
Se dessem as mãos,
As canas de pesca,
Os fios,
Os anzóis,
As redes, os covos,
O mapa das marés,
Os barcos, as canoas,
A bússola, o radar,
O GPS,
O sextante, o sonar,
O peixe pescado,
O peixe por haver,
Fresco,
Cru,
Seco,
Frito,
Cozido,
Guisado,
Assado,
Grelhado,
Fumado,
Salgado,
Congelado…

Talvez pudéssemos reencontrar
Elos perdidos da cadeia da vida…

Talvez o mundo fosse mais
Pequeno,
Aconchegado,
Caloroso,
Maneirinho,
Habitável…

Talvez o mundo fosse mais
Amigável.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Blogantologia(s) II - (42): Jogava-se à bola, domingo à tarde, na minha aldeia

Lourinhã > 2006 > Uma velha janela da minha rua...

Lourinhã > A avó paterna, Alvarina de Sousa Henriques... Morreu, de tuberculose, em 1922, qaundo o meu pai tinha dois anos... A mãe tinha vindo de Ribamar e pertencia à grande família dos Maçaricos...
Cabo Verde > ILha de S. Vicente > Mindelo > 1º Cabo Henriques, nº 188/41,expedicionário., 1941-43. Para defender a Pátria contra tudo e contra todos:os aliados, as potências do eixo...

Lourinhã > 2 de Fevereiro de 1946 > Os meus pais, no dia do casamento...

Alfragide > Junho de 2007 > Os meus amorosos velhotes (aqui fotografados pelo neto)...

Lourinhã > Jardim da Nossa Senhora dos Anjos > Setembro de 1947 > O artista quando criança, aos 8 meses...

Lourinhã > c. 1950 > Eu e a mana Graciete (n. 1948)... Dezoito meses de diferença...

Lourinhã > Finais dos anos 40 > Jogava-se à bola no largo do convento...

Lourinhã > Nadrupe > c. 1947 > O tio Silvano...

Guiné > Zona Leste > Bambadinca > 1970 > O artista quando jovem, aos 23 anos...

Guiné > Zona Leste > Bambadinca > Cuor > Finete > 1969 > Eu e os meus queridos nharros... O puto Umaru, de pé, de cachimbo, já morreu, em Portugal, há dois ou três anos...

Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.
Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.
Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os filhos aos pais,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas azuis,
A sacola a tiracolo,
O recreio,
O leite em pó da Caritas americana,
O jogo dos cinco cantinhos,
O berlinde,
O abafa,
As caricas,
O bife ao domingo,
O polvo na maré-baixa,
O bacalhau com grão às sextas-feiras
Na Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão, a Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
As rixas,
As travessuras,
O pião,
O supremo heroísmo
De alguém que morreu para te salvar,
Deus, Nosso Senhor,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda
Como os anjos bolachudos do altar-mor
Da igreja matriz.

Quando era menino e moço,
E feliz,
E acreditava nos contos de fada,
Havia as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
Tão morto como qualquer mortal,
As opas roxas como no tempo da Santa Inquisição,
As matracas que nos enchiam de terror divino,
A bolsa lacrimal dos anjinhos,
As lágrimas das nossas mães,
O sagrado e o pagão,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
A feira,
O carrocel,
As labaredas do inferno,
As fogueiras de Santo António,
As bichas de rabear,
O calvário e as suas trezes estações,
A rua da misericórdia,
A rua grande,
A rua do castelo,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Marinheiros aventureiros,
Soldados fortes e valentes,
Ou simples cavadores de enxada,
Como os seus pais e os seus avós
Tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo,
Nem se chorava por eles.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes,
Os camponeses e os seus burros
E demais animais de estimação,
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas, os peros e os abrunhos,
O melão e a melancia,
O pão de trigo do moleiro
Cozido no forno a lenha.
Bebiam vinho pelo garrafão
E comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
Feitas de trapos,
Berrantes, multicolores.
Eu era petiz
E eles vendiam saúde e morriam cedo,
Contrariando o provérbio que diz
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dá tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda
E que tresandava a iscas com elas,
A vinho tinto carrascão
E a serradura…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede,
Uma sapatada contra o destino.
Menino com vocação circense,
Menino-jogral,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Escrevia eu no quadro preto.

Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(vã promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Em Janeiro,
Os carros de pão,
As promessas de amor,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’ Adelina
Da rua do clube,
Contra o mau olhado,
O sarampo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A pneumionia,
A pleuresia,
A tísica,
O lobisomem,
A bruxa de São Bartolomeu,
O santo que pisava um diabo negro a seus pés…
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.

Não se livrou o sacristão,
Que se matou num poço,
Por maldição,
Depois de roubar a nota de vinte paus
Ao diabo de Samert’lameu.

E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado
Pouco ou nada heróico de patriotas,
Quixotescos, quiméricos,
Vagamente republicanos, jacobinos e anticlericais,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar,
Os ditadores ibéricos.
Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona,
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
Nem o correio azul
Nem a Internet
Nem a Wikipédia
E o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
A tragédia,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conheci um carteiro,
O ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E mais tarde meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha,
A filha do Visconde lá da terra!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?

E ao alto, acima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morrera para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,
Escrevia eu, a giz,
Na ardósia,
Repetindo-o
Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.

A melancolia de domingo de tarde…
Havia a bola,
O hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E sticks de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
Ou de sandálias de sola de pneu
No largo do coreto da minha aldeia.
Ou descalço, com bola de trapos.
Quando havia ainda o coreto,
Frente à escola,
E a senhora professora Dona Helena
Te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.
Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra, lascada,
Que te vem de fora,
A cento e tal à hora,
Arremessada
Por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
O capital e o trabalho,
A família e a pátria,
E se calhar até Deus,
E que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe.

Quando ainda havia o coreto
E a banda filarmónica
Cabia lá toda,
Jogava-se à bola
Domingo à tarde
Na vila da minha aldeia de gente liliputiana.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As rixas.
As cenas de pugilato
E vara pau.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe
Que era bufo e da União Nacional
E tinha uma amázia lá terra.
E o louco.
E o beato.
E o sacristão que era bimbo.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O director escolar.
O provedor da Misericórdia.
Os pensionistas, os porcionistas e os indigentes.
Os ricos, os remediados e os pobres.
Os sãos e os doentes.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.

Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
E chegava.
E os funcionários do grémio da lavoura
Que recebiam ao fim do mês,
Mais os da Câmara e das Finanças.
A pequena burguesia pelintra,
Manga de alpaca,
Mais os comerciantes e os proprietários,
Que animavam o Clube 24 de Julho.

Havia três médicos,
E chegavam para todo o concelho,
Que a gente só os chamava
No estertor e no pavor da morte.
A eles e aos padres.
Havia dois boticas.
E chegavam.
Havia os cortejos de oferendas
Para se construir um hospital novo
Para a velha Misericórdia.
Havia a escola, primária, do Conde de Ferreira,
Construída no tempo da Regeneração,
Com o remanescente da herança
Do maior benemérito do Liberalismo.
Havia o carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa
E pôr a conversa em dia.
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Coisas que me contavam
Do meu tio-avô Fofa
Que tinha fama de malandro e de beato,
Uma figura seca e mística,
Arrancada às tábuas do Greco.

Enfim, havia a vida privada,
Exposta na via pública
Domingo à tarde.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
As tentações do Capuchinho Vermelho.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
Os ciganos acampados no Rossio.
As cheias do Rio Grande.
E a barraca onde só iam os homens feitos,
Mal enjeitados e com barba de três dias.
E as virtuosas e púdicas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam,
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
No lendário Bairro Alto
Da formosa Lisboa
Ande fui, pela primeira vez,
Na camioneta do João Henriques,
Aos oito anos.
Lisboa, onde se ia de camioneta uma vez na vida.
Ou duas: primeiro no passeio anual da catequese
E depois, graças às sortes,
Para tomar o vapor das Índias e das Guinés.

Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o esplendor do cinismo dos grandes
E a ostentação da caridade dos ricos!
Que dar aos pobres
Era emprestar a Deus!

E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca
Mas tinha uma mauser distribuída,
Para ser usada em caso de guerra civil
(Ou de invasão dos marcianos!)
E que morreu virgem
E chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que eu imagino às vezes belo e garboso,
E outras vezes cabrão,
E que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia um na minha rua
Para abastecimento geral de água potável.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.
E à cabeça da procissão
Ia o pobre e o notável...

Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Imponente,
Valente
De sabre em riste
Contra os grevistas,
Os filhos e as mulheres dos grevistas...
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro,
A CUF,
O Alfredo da Silva
E outros capitães de indústria,
Ou a Marinha Grande,
As fábricas
E os operários em construção.
Os trolhas,
Os mineiros,
Os garimpeiros,
Os almocreves...
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
Ali tão perto,
As Berlengas e as sirenes no nevoeiro,
As sirenes do medo e da coragem,
E o Álvaro Cunhal,
Foragido,
Grande herói da classe operária,
E inimigo mortal
Da Igreja do Cerejeira
E da Nação de Salazar.

Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do Joãozinho:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.

De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
E de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Nasci na Ilha de São Vicente
Onde nunca fui.
Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante,
Fundeado ao largo .
Lembro-me do álbum de fotografias do meu pai,
Expedicionário.
Lembro-me das linhas com que se cozia e descozia
O Império.
Enfim, havia o Império, do Minho a Timor
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.

O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
Expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
Contra tudo e contra todos:
O amigos, os aliados,
As potências do eixo, os bolcheviques,
A Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos,
À tarde,
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das Beiras,
Dos Alentejos.
Fugindo da fome, da praça da jorna
E dos cavalos da GNR.

Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.
E um dia parti a cabeça,
À saída do futebol
E do alvoroço do povo.
Sei que me puseram um pano branco
À volta,
Como se punham aos jogadores
De cabeça partida, perdida.
Foi a minha coroa de glória,
A única que terei tido em toda a vida.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…E
também nunca gostei do alvoroço do povo,
Dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Nem do domingo à tarde.

Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes,
Na maré vazia,
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas da memória.
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós…

Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi, não.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.
Ou pela irremediável tendência
Que tem os poetas
Para a dissimulação
Dos sentimentos na parte mais ocidental
Do cérebro.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinées.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.


Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde,
Num quadro com gente atarracada
A comer pevides e tremoços
No Jardim das Delícias.
Ao fundo, o Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Pelas dores do parto da Maria,
Chamar a partêra.
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco
Na casa do Tio Silvano.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A palha de trigo a arder.
O odor a carne chamuscada.
A agonia do porco.
O sangue.
O sarrabulho.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os primeiros beijos roubados na palha do trigo.
O peixe a secar ao sol no telheiro.
O pilau
Que o menino exibia para criada.
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos,
Os filhos dos pescadores de Peniche,
À Terra da Loba,
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No soltício do inverno.
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro.
As galinhas.
A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.


O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.

Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo,
Que veio à terra para te salvar,
Mas o teu sangue,
De tipo universal, positivo.
Tomávamos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.
E eram os primos mais velhos,
Como o Zé Fernando, o Frasco do Veneno,
Ou a prima Santa Teresinha
Que nos sugeriam a existência
Dos demónios do sexo.
- Nunca vás para padre que te cortam a pilinha!

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa
E do choro abafado do Ricardo,
E dos cabelos desgrenhados da tia Ema.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai,
Infinitamente misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou, meu rapaz!)
Tinha uma explicação para tudo,
Para o bem e para o mal,
Para a vida e para a morte,
Para a riqueza e a pobreza,
Para o feio e para o belo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite,
Na minha rua,
Na rua do cemitério,
Junto à Igreja do Castelo.
Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
Aos serões,
As meninas-catequistas da rua do clube,
Que eram costureiras,
Como todas as meninas do coro da igreja matriz.
E meteram-me na camioneta dos Capristanos
Com destino ao seminário menor de Santarém.
Eu e o meu baú,
Desamparado,
Terrivelmente sozinho
Ante os dilemas da fé,
Da vocação,
Do destino,
Da vida,
Da carne,
Do pecado,
Da morte,
Da ressurreição eterna,
Dos jesuíticos corredores
E das medievas muralhas da cidade.
Lá atrás, a oeste, ficava o mar,
O rugido do mar,
O cheiro a algas, a maresia,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
Os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
Os ciganos acampados no Rossio,
As águas límpidas Rio Grande,
O Montejunto ao longe,
A Atalaia e o Montoito,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E a amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
E a malta da tua escola.
E a prima Santa Teresinha
Que brincava com as hóstias e as pilinhas,
Nas missinhas
Que fazia no sótão do Tio Fofa.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.


Texto e fotos: © Luís Graça (2004-2007)