terça-feira, setembro 26, 2006

Blogantologia(s) II - (32): Vem aí a retoma

No verão,
entre cigarras e grilos,
éramos arquitectos esquilos,
desenhávamos à mão,
dedo a dedo,
frágeis barreiras de areia
contra a maré cheia
do medo,
contra o medo do medo.

Em Agosto,
ainda não se advinhava Setembro,
às portas do Império,
as pousadas estavam repletas
e éramos inconscientemente felizes.

Em Beirute caíam bombas
e nas Canárias davam à costa
cadáveres subsaharianos,
O verão já era Outono,
vindima, mosto,
passeávamos agora
com as nossas bicicletas,
à volta do círculo polar ártico,
furando o buraco do ozono.
Definitivamente cancelámos
o cruzeiro pelo Adriático.

Na rentrée,
os novos príncipes deste mundo
anunciavam a boa nova
pela têvê:
vem aí a retoma.

Praia da Areia Branca, Agosto de 2006

domingo, setembro 24, 2006

Blogantologia(s) II - (31): Alá não passou por aqui

Originalmente publicado npo blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > vd. post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1047: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

Alá não passou por aqui,


por Luís Graça


Bambadinca/Imbecilburgo, 29 de Janeiro de 1971 / Lourinhã, verão de 2006


Vinte e quatro anos:
ocorreu-te que hoje fazias anos,
e que por mera curiosidade
era o teu segundo aniversário
nestas terras da Guiné,
e, por sinal, o teu terceiro
na tropa,
coincidindo com o terceiro
da era do marcelismo.

Vinte e quatro anos,
vividos mal,
vinte e um meses de tropa-macaca,
entre o Geba e o Corubal,
vida de cão rafeiro,
de macaco-cão,
saltando do chão
e do baga-baga
para a copa
da árvore dos teus desenganos.


Tempo de miserabilismo,
tempo do salve-se quem puder,
tempo de calculismo e de cinismo.
Desenfiado,
é a palavra de ordem,
para a soldadesca,
para os gajos do quadro
ou do contingente geral,
quer concordem ou discordem
desta farsa grotesca.

Aqui vive-se sem calendário
nem ética,
nem dignidade,
não se apurando perdas e danos,
não se distinguindo
dias da semana, sábados,
domingos ou feriados,
o verão e o inverno,
os bons, os maus e os safados.
Se há resistência, ela é invisível e muda,
e o tempo que conta
é o que falta para a peluda.


És um cão,
um cão danado,
apanhado na rede.
O tempo é pura aritmética,
soma de momentos,
de dias riscados
na parede,
suja, mimética,
dos nossos abrigos:
se um ano aqui é uma eternidade,
dois é o inferno.
O teu corpo fede,
tresanda a tarrafo,
a suor
cheira a morte,
cheira a merda,
a luto,
a perda,
a da tua juventude,
a dos teus ideais.

És um pobre fantasma de Quinhentos,
que perdeu o norte
e os demais pontos cardeais,
a idade,
a quietude,
a auto-estima,
a praça-forte,
o astrolábio,
as Índias,
a caravela,
a rota,
a proa,
a pose,
a árvore genealógica,
as coordenadas de Lisboa,
os Lusíadas,
a Peregrinação,
do Fernão Mentes Minto,
a História (trágico-marítima),
o ritmo,
a rima,
o ADN,
o pedigree,
a inocência do Nuno Tristão da Silva,
a cruz,
o cruzeiro,
o estandarte,
a espada,
o manual,
a valentia do Teixeira Pinto,
e até o jeito de matar
do Afonso Albuquerque,
para além da arte
e da ciência de marear,
no macaréu do Geba,
nas bolanhas do Corubal.

Mais prosaicamente,
na Guiné
o dia dos teus anos é
uma rodada
de uísque ou de cerveja
pr’os teus camaradas
no bar de sargentos.
No fundo,
o teu dia é um pretexto
para a autocomiseração,
para um voo até
às galáxias da metafísica,
que é sempre melhor, chiça!,
que ouvir
o silvo de uma granada,
em teu redor,
que é coisa bem mais real
e mortífera,
é a quilha
do barco da morte.
Com sorte,
talvez o amável Zé da Ila,
de nós todos o menos reguila,
pegue na viola (1)
e te cante
a Pedra Filosofal…

Talvez cantemos todos juntos,
às tantas da noite,
africana,
pestífera,
mortal,
e suficientemente alto,
com as nossas vozes guturais,
para que Eles, os gajos,
nos oiçam, mesmo ali ao lado,
no bar dos oficiais…

Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E sempre que um homem sonha,
A vida pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança…


Seguramente
um dia como os outros,
sem mais nada,
seguramente mais um dia
de solidão,
com ou sem o poema do Gedeão
e a música do Manuel Freire,
a tua canção favorita,
a nossa balada querida,
e que eu sei que irrita
os teus Cães Grandes

Ninguém te vai dar os parabéns,
só por fazeres anos:
ainda não ganhaste nada,
nem o direito a outra vida.
De resto, estás sempre só,
mesmo quando segues,
em bicha de pirilau,
coberto de suor e pó,
com o teu pelotão,
às ordens de Bissau,
para montar segurança à TECNIL
que está a construir
a nova estrada de Bambadinca-Xime (3).

Enfim, mais um dia da tua condição,
triste e vil,
de poeta travestido de soldado
de uma guerra
a que sempre chamaste crime,
mas da qual és actor,
cúmplice,
quiçá testemunha sublime,
guerra que tem dor e tem horror,
mas de que os teus camaradas não falam,
por pudor.

Je m’en passe,
je m’en fous
,

escrevias tu
no teu diário de um tuga.
Como quem diz:
aqui não há lugar para a fuga,
nem sequer te podes dar ao luxo
de um mísero voo raso
sobre a cerca de arame farpado
ou sobre o ninho de metralhadoras
que varre a pista de aviação,
como um vulgar jagudi
que é uma pássaro feio
mas é livre,
e tão ou mais importante do que tu
no seio da criação.

Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
Simplesmente, neste caso,
este homem não é um homem
é um palhaço,
é um soldado,
fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência
cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com medo,
é isso que lhe dói,
neste cenário
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o RDM:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói
da resistência
nem muito menos do 10 de Junho:
saíu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus nharros,
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas
dos senhores
de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha.

Os Cães Grandes,
como tu gostas
de chamar-lhes,
com o teu humor corrosivo
de dramaturgo
do teatro do absurdo,
aos oficiais superiores
de Imbecilburgo.
Escuta,
quer queiras quer não,
são eles os lídimos representantes
da tua Nação,
foi o que ouviste desde o primeiro dia
da tua recruta.

Vida de puta:
com raiva e impotência,
vês o tempo,
a areia da ampulheta,
escoar-se,
do cabo até ao fundo,
e tu aqui hipotecado
ao Estado,
a este Império de opereta,
dono da tua existência,
que te requisitou o corpo,
da cabeça aos pés,
e te comprou a alma
e a vendeu ao diabo,
aqui no cu do mundo.

Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões (3,
mas estás vivo, ó tuga,
graças talvez à mezinha
que te deu um nharro,
um mauro, um marabu,
em Sinchã Mamadjai
e melhor prenda de anos
desejar poderias,
meu grande safado ?

És um sortudo,
se acordares,
de manhãezinha,
com o dedo grande do pé
a mexer,
dizia o Marques,
que nesse dia treze,
que nem sequer era sexta-feira,
teve azar, coitado,
sentado na parte traseira,
da GMC,
não teve a mesma sorte que tu,
indo parar, em mau estado,
em estado de coma,
ao Hospital Militar.


Pobre tuga,
pobre nharro,
pobre turra:
na Guiné,
longe do Vietname,
em plena guerra fria,
há muito ano
que vos chupam o tutano.
Aqui faz-se poesia,
de barriga vazia,
o corpo exangue,
só com o cavername,
a pele e o osso,
a morte na alma.

Resta-te a consolação da escrita
e da leitura,
além do teu uísque
com água de Perrier.
Eis o poema,
que te ofereço,
com ternura,
como prenda de aniversário,
O Tempo que Faz em Imbecilburgo:

Ah! como o tempo (não) passa
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como furriel miliciano.

Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que import-export
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo
(se o houver).

Tu até podias acreditar
numa Guiné Melhor,
no Herr Spínola,
nos teus nharros,
nos patriotas dos guinéus
que lutam a teu lado,
ou até na derrota do Cabral,
teu herói e teu inimigo,
o líder revolucionário,
ou no Nino,
teu turra de estimação,
vestido à cow-boy
e armado de RPG
no nosso imaginário;
podias mesmo acreditar
na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado,
glorioso,
perdido,
sabendo-se que o dinheiro e as armas
compram tudo
menos o direito à eternidade,
e nem talvez à liberdade.

Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na recta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição
individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o cronista-mor
da estória oficiosa da tua companhia
.


Post scriptum:
Alá
não passou por aqui,
disse-me uma vez um homem-grande
da tabanca de Saré Ganá (4).



__________

Notas de L.G.

(1) Furriel Sousa, da CCAÇ 12, madeirense, carinhosamente conhecido pela alcunha do Zé da Ila: Vd post de 8 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P945: 'Gente feliz com lágrimas': o Zé da Ilha, o furriel Sousa, madeirense, da CCAÇ 12


(2) Empresa que em finais de 1970/princípios de 1971 estava a construir a nova estrada alcatroada Bambadinca-Xime. A CCAÇ 12 faria regularmente a segurança destes trabalhos, já no final da sua comissão.

(3) Vd. posts de

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(4) Zona leste, Regulado de Joladu, carta de Bambadinca, 1/50.000

Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

segunda-feira, julho 10, 2006

Blogantologia(s) II - (30): O Relim não é um poema

Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 1 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio)



Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina.

Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos:

Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Com, reforçada pelo Pel Caç Nat 52

Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb

Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.

Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.

Comentário de L.G.:

Relim não é poema


Participei nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel.
Um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,
e à navegação do Geba Estreito.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais barato:
pretos de primeira da CCAÇ 12
e do Pel Caç Nat 52,
mais alguns brancos de segunda,
os açoreanos
da vinte e seis trinta e seis.

Levámos dois cantis de água por cada G-3.
À noite quando saímos de Missirá
chovia a cântaros.
Lembro-me de ter perdido
o impermável camuflado
e de o ter recuperado
à luz de mil sóis,
mil relâmpagos.

O que é que um gajo pensa,
aos vinte três anos,
de Missirá a Salá
e daqui a Sancorlá,
em bicha de pirilau,
de noite, com chuva a cântaros,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,
a fustigar-te as trombas ?
Um gajo não pensa nada,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais um operação...

Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(vd. Op Lança Afiada
em que um cada seis foi evacuafdo).

Caminhámos toda noite.
Penosamente.
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã.
Às dez em ponto.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.
Cortaram-nos as voltas.
Os tipos do PAIGC
(não me apetece dizer IN)
cercaram-nos pelo fogo.
E quanto a Deus
e às abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exactamente
de que lado estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
catorze horas, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Nós, quem ?
O major da Dornier, do PCV,
a quem as casas estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio.
Ainda não havia os Strellas,
a temível arma dos arsenais
do inimido,
que haveriam de pôr o homem
borrado de medo
e definitivamente em terra.

Alguém puxou dos galões
e decidiu fazer um golpe de mão.
Ou melhor: mandar fazer,
que eu nunca vi nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão.
P'ra ficar bem na fotografia.
E para pôr no curriculum vitae
e impressionar o Caco...
Um senhor major qualquer
do BCAÇ 2852,
que gostava de andar de Dornier
e que queria chegar a tenenente-coronel.
Um herói de opereta.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
quem comanda esta tropa-macaca ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.

Entretanto, já alguém,
o Beja Santos,
o nosso tigre de Missirá,
tinha ido buscar, de heli,
o reabasteciemnto de água
a Bambadinca.
Não voltou.
Alguém dos nossos (?!) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
(soube isto agora,
pelo relato dramático do Beja Santos) (1).
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o Beja Santos ficou retido no Xime.

A verdade é esta:
O PCV falhou, o heli falhou.
O cadeia de comando quebrou-se.
Ou porventura alguém quis matar
o tigre de Missirá.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o cabrão do comandante do PCV
foi bater a sesta em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
sofremos brutalmente.
Eu sofri,
que a dor não para dá
para partilhar.
Sofri brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
A insolação.
O absurdo.
A desumanidade.
Tive miragens.
Bebi o próprio mijo,
esgotado o soro.
Mastiguei as ervas do orvalho,
esgotada a água.
Desesperei,
perdida a esperança.
Bebi sofregamente a água choca dos charcos.
Amparei os mais desgraçados do que eu.
Transportei os nossos feridos.
Consolei os mais desesperados.
Fiz as minhas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus.
Não deu nenhum tiro de misericórdia
porque nunca dei nenhum tiro em combate.
Mesmo cristãmente,
odiei o PCV,
Bambadinca,
as fardas, os galões,
a tropa, a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné.

Um homem,
mesmo o cristão que eu não sou,
tem que odiar
para sobreviver.

Amigos e camaradas,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim.
O relim não é um poema.
Um poema épico ou dramático.
É sim, tão apenas,
Um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.

O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos.
Das miríades de abelhas kamikazes
que arrancastes do cachaço.
Dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel.
Dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados elementos pop
que morreram à hora da sua sesta.
Das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome, a sede.
A lassidão do corpo, a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para morderes de raiva.

Não, nunca mais irei esquecer Madina/Belel.
Eu e mais 250 homens combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte p à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água, etc.).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
da CCS do BCAÇ 2852,
o Alferes Miliciano Médico
Saraiva (tinha esquecido o nome),
que o Beja Santos
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação...
O pobre do doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficou em terra,
perdeu a boleia do heli
e conheceu o inferno do Cuor.

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers cokm que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de King
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
é coisa que se vê
e que em último caso serve
para limpar... o cu.

Fonte: Extractos do Diário de um Tuga.
Abril de 1970 / Julho de 2006

_______

Nota de L.G.(1) Vd. posts de:

29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

segunda-feira, junho 26, 2006

Blogantalogia(s) II - (29): De pequenino é que se torce o violino

De pequenino é que se torce o violino

Há um Beethoven
para todo o mundo,
de Nantes a Lisboa,
de Bilbao a Tóquio.
Há uma Beethoven em festa,
nas nossas cidades,
ao alcance de todas as bolsas
e de todas as idades.
Há quem, egoísta,
o queira só para si,
por menos de cinco euros.
Coitado do Pinóquio,
que tem ouvido de pau,
e que nunca andou no Conservatório Nacional.

E depois há quem se recuse a ir ao evento
como aquele melómano,
com assinatura anual no São Carlos,
que ia todos os anos a Berlim
só para limpar o ouvido…
Ah! que chique!
Felizes os melómanos
porque será deles o grande auditório
celestial.

A ucraniana,
que limpa os corredores
do Centro Cultural de Belém
e teve uma esmerada formação musical
no tempo do socialismo soviético,
está-se nas tintas
para o génio teutónico,
outrora disputado por Bona e Viena.

Há filas democráticas
e fileiras geriátricas
no grande templo da música.
E muitas meninas voluntárias,
de umbigo à mostra,
e úberes generosos,
na Missa Solene opus 123.

Gosto do meu país de gente gira,
e sem cera no ouvido,
mas do que eu mais gosto
é dos embevecidos papás
das sobredotadas criancinhas
que tocam violino
tão perfeitinho
como os papudinhos anjinhos do céu.
Porque, como diz a babada maestrina,
é de pequenino
que se torce o violino.

Luís Graça



Lisboa, CCB, 6ª edição da Festa da Música,
dedicada à Beethoven e seus amigos,
22-24 de Abril de 2005.

Versão de 1 de Setembro de 2007

sábado, junho 24, 2006

Blogantologia(s) II - (28): Um dia hei-de ir a Porto Azzuro.

Publicado originalmente em Arrivederci Portogallo, blogue de João Graça no Erasmus (Florença, 2005/2006), em comentário ao post sobre a ilha de Elba, de 30 de Maio de 2006, que a seguir reproduzo, em itálico:

ELBA

A viagem de Piombino, na costa toscana, a Porto Azzuro, em Elba, faz recordar aquilo que terá sido a deportação de Napoleão, em Maio, mas de 1814. Aqui viveu durante 9 meses, onde partiu rumo a Paris para reconquistar o poder. Mas foi derrotado na famosa baltalha de Waterloo em Junho de 1815. Dizia eu que a viagem, aparte o barco hoje movido a motor, faz recuar a esses tempos. Tempos de definição geo-política europeia. Pelas ilhas selvagens, pelos aves que me giravam em torno, pela vegetação verdejante e inóspita.

Em Porto Azzuro passou-nos pela cabeça a ideia mais iluminada destes dias. A de alugar bicicletas para nos deslocarmos ali. Dito e feito. Ao fim da tarde chegamos à outra ponta para um merecido repouso, depois de um longo caminho que terminava com 4km a subir. Do lado sul da ilha avistava-se a ilha de Monte Cristo, que serviu de inspiração a Alexandre Dumas. Recordo-me de seguir apaixonado a mini-série "O Conde de Monte Cristo" com Gerard Depardieu e Ornella Muti. E qual o meu espanto, quando a vejo, diante dos meus olhos, ali, vejo a ilha de Monte Cristo.

O dia, no entanto, estava ainda longe de acabar. Apesar do cansaço físico, e mesmo depois de tanta boa disposição, ainda tivémos pedalada para dançar numa festa popular em Secchetto. Nada sabíamos desta festa. Encontrámo-la por mero acaso. Gente dali, daquela terra longe de tudo, mas cheia de hospitalidade. Dançar com os velhotes música pimba é uma experiência que todos nós já passámos, nalgum dia de Agosto da nossa vida quando se volta à terrinha e se encontram os emigrantes (como eu). Mas dançar o "Dime la verità" com os velhotes de Secchetto é único. Juro-vos...




Texto alteradao e actualizado nesta data

Um dia hei-de ir a Porto Azzuro


De Piombino a Porto Azzuro,
no encalce de Napoleão,
o pequeno e genial corso
que ajudou a construir
a Europa das Nações.

Ah!, que ingratos
os tecnocratas de Bruxelas
que alimentam sonhos imperiais,
que nada sabem de história
e que não te puseram na lista dos pais-fundadores,
com direito a pensão vitalícia!
e outras mordomias!

Que serias tu, bela Itália,
sem o safado parteiro da Europa
e os seus canhões ?
E tu, Garibaldi,
mais os teus descamisados,
como chegarias a Nápoles,
e a Palermo,
para conquistar
o último Reino das Duas Sicílias ?

Na ilha de Elba,
estudo estratégia
que é a arte do general,
do capo,
do condottiere,
do conquistador.

E observo o preclaro voo
dos pássaros,
que não têm bússola,
nem GPS,
nem telemóvel.
nem o Google Earth,
e que nunca se perdem
entre o alfa e o omega,
o norte e o sul,
o leste e o oeste.
Pelo menos não conheço
nenhum brevet de piloto ornitológico.

Nove meses é o tempo suficiente
para se nascer e se morrer,
entre a ilha de Elba
e a estação de Waterloo.
É o tempo ontológico,
o do ser e do saber-ser.

E num só dia dei a volta
à ilha,
de bicicleta,
um fait-divers que hei-de pôr
no meu currículo hipocrático.

MoveEurope,
mexe-me esse rabo,
levanta o cu do selim,
põe-me essa mama tesa,
pedala, Europa,
velha Europa,
anaconda,
eriçada,
anafada,
encastelada
cercada,
crispada,
na tua feia fortaleza
de Schengen.

Em Porto Azzuro
percebi
que pode haver dias felizes
na vida dos homens e das mulheres.

Apaixonei-me pela felina Ornella,
a Ornella Muti,
a deusa mediterrânica,
que guardava na Ilha
de Monte Cristo
os segredos do amor,
o elixir da vida,
que é breve a vida
do espadachim
que há em ti
e que há em mim.

Ainda se podia pressentir,
ao pôr do sol na ilha,
na ponta mais além,
a presença encantatória
do Alexandre Dumas,
romântico ma non troppo,
em recorte subtil,
em versão light.
Que a ficção fica sempre aquém
da vida.....

Mas do que eu gostei mais
foi de dançar
o Dime la verità
com os guardiões da ilha,
os velhos e as velhas de Seccheto,
quiçá os últimos habitantes,
da velha Europa
que eu amo,
ou da bela e pimba,
divina e pérfida Itália
que me seduz.
A verdade que os miseráveis tecnoburocratas
de Bruxelas


Em Porto Azzurro,
olhando em redor o mare nostrum
o mar que já foi nosso,
e as ruínas da minha civilização,
ou do meu projecto
europocêntrico,
estudei filosofia,
fui discípulo do Erasmus,
e percebi,
mesmo que por breves instantes,
a importância da ontologia,
que é o tratado que trata
mais do ser do que do ter.
Do ser autêntico,
sem implantes.

Luís Graça

PS - João:
Um dia hei-de ir
a Porto Azzuro.
Só para confirmar
as tuas impressões... digitais.

sábado, maio 20, 2006

Blogantologia(s) II - (27): Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo.

Lisboa > Terreiro do Paço > 2005 >

A entrada da Rua Augusta e a colina do castelo vistas de uma janela do Ministério da Agricultura. "Da minha janela" diz ela.

© Maria Helena Moutinho (2005)

Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo (1).


Lisboa, sete colinas,
o rio, uma paixão,
que deram origem
à arte e à ciência da olissipografia.
E a Helena era uma das meninas
que ficava bem,
à janela,
recortada em pórtico manuelino
da Casa dos Bicos
ou no laranjal
da estória da Nau Catrineta,
desenhando castelos de Espanha
nas areias de Portugal.

Lisboa, menina e moça,
tu podias não saber nada
de geografia,
nem da didáctica da educação de adultos,
nem da fisiologia do coração,
nem de desenho a três dimensões
nem do risco sísmico
nem do simples risco de existir e de estar viva.
Mas sempre tiveste por perto
o estúpido pirata de perna de pau,
vesgo e maneta,
irrompendo os teus sonhos
com o pesadelo do sentimento de um ocidental
na ponta mais fina de uma espada
guardada na Torre de Belém.

Lisboa, o casario, o castelo,
e rente ao chão,
a devoção, a procissão
da Senhora da Saúde,
que nos valia nos anos de peste,
nos meses de guerra,
nas semanas de fome
e nos dias de depressão,
a depressão funda, cavada,
do vale de Alcântara até Xabregas.

Lisboa e os livros, os incunábulos,
os alfarrabistas da Baixa-Chaiado,
as pedras, as cantarias,
as traves mestras
que nos falam da cidade
em construção,
dos arquitectos,
dos trolhas,
dos estucadores,
dos pintores de tabuletas
e de retábulos dourados,
dos aguadeiros
do poço do mouros,
do Carmo e da Trindade
de pedra e cal,
dos engenheiros hidráulicos,
dos agrónomos,
dos agrimensores,
dos silvicultores do pinhal d’el-rei,
dos santos inquisidores,
das freiras e das frieiras
que é coçá-las e deixá-las

no cemitério de todos os prazeres.
Ah, aí onde a vida acaba
na ponta de uma naifa
no Bairro Alto
das fadistas e dos seus chulos.

Mas não de tédio,
minha querida,
diz o pregão da varina,
enquanto houver o 28 para a (Des)Graça
com bilhete de ida e volta,
as Escadinhas do Duque
ou a Calçada do Combro
e os escombros do terramoto
por subir, trepar ou escalar.
E os filetes de alfaquique
ou peixe-galo
com açorda de ovas.
E os pastéis de Belém
e o bife dos ricos
à Marrare
e as iscas com elas
nas carvoarias dos galegos
e o cheiro a carvão e a sardinha,
linda que tresanda
nas ruelas e vielas dos bairros populares.
E o Portugal very tipical
do António de Ferro
com que te quiseram tramar
e as sécias e os peraltas da Belle Époque
que a Avenida da Liberdade
acaba na rotunda das públicas virtudes
e no beco dos vícios privados.

A terna, eterna, Olissipo
onde o azul do céu é único
e te leva a todos os caminhos do infinito.
Ulisses sabia-o
e guardado estava o segredo
do mais fundo do tempo.
E por isso fundeou no estuário do teu Tejo
e trouxe com ele a Helena,
troiana,
transmontana,
fenícia, grega,
cartaginesa, romana,
celta, iberíssima,
goda, visigótica,
moura, berbere, preta,
bárbara, bela, pérfida Helena,
santa e penitente,
globetrotter,
errante, caminhante,
mística, algures perdida,
loucamente perdida
nos caminhos de Santiago.

Que te importa
se Lisboa já não é
uma praça forte,
uma bolsa contra os valores
daqui d’ el-rei
que o paço e o terreiro,
a trono e a régia cabeça,
tremem e estremecem,
entre o Martinho e a Arcádia,
na iminência de um ataque
terrorista.
Dantes chamava-se anarquista,
à bomba regicida,
quando a palavra de ordem era
a bolsa ou a vida.
E não havia as avenidas novas,
do Ressano Garcia,
nem o risco dos engenheiros,
nem a construção a custos controlados,
nem o prémio Valmor,
nem o fundo de mão-obra,
nem o Dow Jones ou o NASDAK.

E estavas tu, Helena,
postada à janela,
com vistas largas
para o casario, a sé, o castelo,
o mar da palha,
a rua do ouro e a da prata,
o augusto senhor dom José a mata-cavalos,
a serra, a arrábida fóssil,
a armada outrora invencível,
a ribeira das naus,
o turista, o voyeurista,
o motorista
do senhor ministro sem pasta
nem forragem para o gado na canícula do verão,
os heróis menores, anónimos,
que vieram morrer na praia,
o velho do Restelo,
que já foi praia sem bandeira azul,
o velho do Restelo agora ainda mais velho
e mais bota de elástico,
o Cesário e a sua idiossincracia,
o Cesário, verde e rubro,
nos estádios dos eurofutebóis,
mais o Eça de Queiroz,
o estrangeirado,
que te amava à maneira dele,
a Sofia, a deusa, a olímpica,
o Almada e os seus marinheiros sem futuro,
o Ary, provocateur,
panfletário,
o luminoso Eugénio de Andrade,
a Amália e a nossa estranha forma de vida,
e tantos outros poetas que te cantaram.
Ah, e o Pessoa, subindo e descendo o Chiado,
de braço dado contigo,
recitando-te o heterónimo:
A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz.
Mas como é que eu sei se teria sido feliz ?

Esquece o Álvaro de Campos, o sedutor,
e deixa-me pôr-te a caminhar
pelos caminhos ínvios e íngremes
desta cidade-sortilégio,
que tu amas, que eu amo, que nós não amamos…
E se, contudo,
há um privilégio,
é sempre o da amizade e do amor,
é esse de poder ter-te
ao alcance da mão e do coração,
entre Paço d’Arcos e o Cais de Sodré,
ou de permeio,
entre o teu blogue e a caixa de correio.
É, enfim, esse privilégio de poder dizer-te:
Como é bom rever-te…
Helena, Lisboa, Tejo e tudo.


________


Nta de L.G.:

(1) Querida Helena: Este é o meu contributo possível para tua festa, o meu e sobretudo o da Alice, que me deu mil e uma dicas sobre ti, como amiga tua de há muitos anos.

A pretexto da prenda que escolheram para te dar (O Livro de Lisboa / coord. Irisalva Moita. Lisboa: Livros Horizonte. 1994), glosei e explorei a tua paixão por Lisboa, o mesmo é dizer, a tua incessante procura da vida, da beleza, do amor, da liberdade, da poesia, do prazer, da felicidade...

Daí a festa que te fizeram na noite de 19 de Maio de 2006, na Casa de Cabo Verde, os teus amigos e amigas de longa data, que trabalharam contigo estes anos todos. Não foi um festa de despedida, mas de (re)encontro(s). Não existe, de resto, essa palavra, despedida, no dicionário dos amantes e dos amigos.

Como escrevi no teu blogue (Caminhos), fiz votos para que algum deles ou alguma delas, te tenham dito nessa noite, ou ouvido:
- Como é bom rever-te, Helena, Lisboa e Tejo e tudo.

Trata-se, se bem reparares, de uma ideia do Álvaro de Campos, um verso que eu adaptei do famoso poema Lisbon Revisited, de 1926.

domingo, maio 14, 2006

Blogantologia(s) II - (26): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula

Às vezes este país
parece-me quase perfeito e sem mácula.
Em certos dias.
A uma certa hora.
Em certos sítios.
Visto de um determinado ângulo.
Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário.
Por exemplo, no mês de Abril, em pleno Baixo Alentejo.
Ao pôr do sol.
Experimenta ver este país
sentado no banco da frente
do piso superior do autocarro.
Ao sul.
A 250 km ao sul de Lisboa.
Ao fim da tarde.
Ao pôr do sol.

Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula,
numa viagem de regresso a casa,
de Beja a Lisboa.
Viaja sobre as planícies de Beja.
Podes ver as cegonhas
que não já trazem os bebés de França.
Num certo troço da estrada não-sei-quantos
que vai desembocar na A2.
A tal, que é mais conhecida como a autoestrada do Sul,
a que te leva para o Algarve.

Visão panorâmica.
A dois metros e meio acima do solo.
Em voo raso de cegonha.
Toma nota que a hora é importante para veres o teu país.
Tal como o sítio e o ângulo de visão.
Ao fim da tarde,
no conforto relativo do autocarro da Rede Expresso.
Nada como deixares o teu carro em Lisboa
e viajares na Rede Expresso.
Toma a viatura nº 95, de preferência o lugar nº 1.
Podias ter reservado o bilhete pela Internet
ou enviado um SMS.
Mas não vais estragar este momento único
contaminando os teus pensamentos poéticos
com as coisas prosaicas das novas tecnologias.

Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo.
Nada como um montado de sobro
e um bando de cegonhas em formação de voo.
De regresso a casa, também elas.
Nada como um horizonte quase perfeito e sem mácula.
Tão pouco como isto.
Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula.
Por nove euros e meio.
Viajando na Rede Expresso.
Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios.
Saíndo de Beja, a caminho de Lisboa.

Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país.
Noutra hora e noutro lugar, eu acrescentaria:
Nada como um pedaço de pão alentejano,
umas azeitonas com o gosto dos orégãos,
um bocado de requeijão,
um copo de vinho branco,
uma roda de amigos.

Na Festa de Nossa Senhora das Pazes,
entre ficalheiros e azinheiras centenárias.
Todos os anos no domingo seguinte à Páscoa.
Este ano veio muito menos gente.
Que a morte bateu, com mão pesada,
a muitas portas de Vila Verde de Ficalho.
Vinte e cinco mortes, dizem-me desde Janeiro.
A festa e o luto não combinam.
Mas veio gente de outras partes do mundo,
do Montijo, do Seixal, do Barreiro, de Lisboa,
da diáspora alentejana.
E a alegria e a festa do reencontro são universais.

Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa.
Quer faça chuva, quer faça sol.
E mesmo que os homens não se incorporem
na procissão da santa que dá três voltas à capelinha.
A um tiro de distância da raia espanhola.
Nossa Senhora das Pazes.
Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos
que atraem e repelem os vizinhos separados
pelas extremas de dois países do Al-Andaluz.
Desde 1232 quando o lusitano e cristão D. Sancho II
reconquista aos mouros a margem esquerda do Guadiana.

Mesmo que haja quem queira desistir da vida.
Ou dela se despedir com dignidade.
Doutor, em passando a festa, eu dou um rumo à minha vida.
E aí tu percebes a diferença
entre ter e não ter
um médico de família,
um equipa de saúde,
um centro de saúde,
ao alcance do teu braço.

Para trás deixas o verde das searas de trigo,
do Alentejo que ainda dá pão.
Para trás deixas gente fantástica.
No mínimo, gente competente, boa e generosa.
Que trabalha nos centros de saúde
e suas extensões do Baixo Alentejo.
Para trás deixas amigos.
Em Vila Verde de Ficalho.
Em Serpa.
Na Cuba.
Na Vidigueira.
Em Aljustrel.
Em Almodôvar e no Alvito.
Em Barrancos.
Em Beja.
De Castro Verde a Ferreira do Alentejo.
Em Mértola e em Moura.
Em Odemira ou em Ourique.
Médicos de família, enfermeiros, administrativos.
Em condições muitas vezes difíceis,
sem o conforto do teu gabinete de Lisboa.
Sem o ar condicionado da Sony.
Com 37 graus à sombra.
Com um frio de rachar.
Com falta de equipamentos sociais.
Dando consultas em insólitos lugares,
como o Sporting Clube de A do Pinto.
Ou fazendo SAP em velhos conventos transformados em hospitais.
Remando contra a maré
do individualismo,
do cinismo,
da arrogância,
da gestão mercantilista da saúde,
da descrença,
da desmotivação.
Remando contra os doentes da saúde,
as vítimas da aculturação médica,
os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas
do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais,
da indústria farmacêutica, dos lóbis,
do poder, da política politiqueira...
Gente que cuida dos outros e que se cuida pouco.
que cuida pouco de si própria.
E que pode estar trinta anos numa carreira administrativa
como terceiríssimos oficiais.
Ou que continua a fazer urgências mesmo para além do limite legal de idade.
Que trabalha sem rede.
E que às vezes é até agredida ou maltratada.

Um dia quiseram trabalhar em equipa.
Para prestar melhores cuidados de saúde.
Para trabalhar com outra motivação e satisfação.
Um dia pensaram na utopia igualitária.
Nos idos anos de setenta.
Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo.
Que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários
numa base cooperativa e, sobretudo, igualitária.
Fora da tradicional relação hierárquica
chefe / subordinado ou especialista / leigo.
Pondo também na equipa o utente.
Subvertendo a organização burocrática
que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.

Hoje a utopia não morreu.
Mas está mais velha e cansada.
A utopia também envelhece mas não morre.
Há muito que as equipas nucleares de saúde
perderam o seu vigor ou se desfizeram.
Mas contaminaram a cultura organizacional
da Sub-Região de Saúde de Beja.
O bichinho está lá e não morreu.
Sempre discordei dos que pensam a utopia sem tempo nem lugar.
A utopia também pode ter um tempo e um lugar.
Porque na sua dupla etimologia,
utopia tanto quer dizer nenhum lugar (ou + topia)
como lugar perfeito (eu + topia).

Eles não são heróis nem levam nenhum existência heróica.
São portugas como os outros.
Profissionais de saúde como os outros.
Apenas fazem alguma diferença.
Eu diria que é um certo modo de ser e de estar.
Algo que não se ensina em escola nenhuma.
Que não se aprende nos cursos de formação do Fundo Social Europeu
me na Faculdade de Medicina
nem nas Escolas de Enfermagem
nem nas Business Schools.
Um modo de ser e de estar
Para o qual não há receitas de cozinha.
Pequenos detalhes que fazem a diferença.
Por isso, por tudo isso, gostei de os ver,
gostei de voltar a encontrá-los.
Eles são portugas
que merecem as minhas palmas.
As nossas palmas.

Originalmente publicado, em prosa, no Blogue-fora-nada > Vd post de 21 de Abril de 2004 > Portugas que merecem as nossas palmas - VII: O pessoal dos centros de saúde do Baixo Alentejo

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Blogantologia(s) II - (25): Terras de Espanha, areias de Portugal...

Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em dois posts 11 de Outubro de 2003 >

Portugal Portugal sacro-profano - I: Do Colo do Pito à Catraia do Buraco...

Portugal Sacro-Profano - II : Portugal in su situ

1. O Portugal no Seu Melhor podia ser um altamente pedagógico programa do ciberespaço, programa de educação cívica, estética, ambiental, linguística.... Tem os seus cultores, mas não faz o meu género: é masoquista, deprimente, alarve, inocente e inofensivo, fica-se muito pela caricatura do boçal Zé Povinho, o eterno bombo da festa!... Na realidade, passa ao lado da(s) elite(s), dos educadores, dos inteligentes, dos padres, dos professores, dos opinion makers, dos gestores, dos políticos, dos reis e raínhas, das sociedades secretas, dos presidentes da(s) república(s), dos heróis e heroínas da nossa história.

Em boa verdade falta-nos (infelizmente, direi eu) o Bordalo Pinheiro do Séc. XXI para zurzir o outro Portugal, não menos pimba e infoanalfabeto, que julga que já apanhou a autoestrada do futuro só porque tem o último telélé da Nokia, navega na Net em ADSL banda larga, fala inglês, passeia-se de BMW, anda em colégios finos e pisa as passarelles da moda... De qualquer modo a caricatura da nossa fina flor do entulho pode entrever-se nas revistas cor de rosa, na chamada imprensa social, em muitas das caras conhecidas do nosso meio artístico, televisivo, desportivo, empresarial, académico, político e por aí fora...

Aí a gente vê-se (revê-se) nos benditos filhos e filhas que o País (macho) e a Nação (fêmea) deram ao Mundo... Todos filhos e filhas (ou netos e netas) do coitado do Zé Povinho... Só que eles e elas já não o (re)conhecem: está velho, sofre de Alzheimer, tem escaras e foi abandonado no lar da Misericórdia (...em vias de se transformar em Hôpitel, S.A).

Depois que se perderam pelas sete partidas do mundo, os tugas (como diriam os meus nharros da Guiné) continuam à procura de Portugal in su situ... Os Portas e quejandos proclamam que nunca perderam a portugalidade. Nunca percebi o que quer dizer o palavrão: imagino que seja a maneira muito própria, vertical, de se ser português...in su situ!



2. Colo do Pito e Catraia do Buraco: estes e outros são nomes de santas terrinhas (e outros lugares menos santos ) que existem em placas toponímicas, por esse Portugal fora. Algumas foram muito provavelmente carbonizadas pelo fogo do inferno (de que Deus nos livre!), o qual, nestes últimos verões de má memória, tem varrido o nosso chão sagrado, de norte a sul e de leste a oeste (...Com tantas blasfémias e tanta gente ímpia, o que é que vocês esperavam ?).

Não faço a mínima ideia de quem foi o conquistador franco, o fundador, o povoador, o bandeirante, o geógrafo, o marinheiro, o corsário, o padre, o santo, o poeta ou o até o eleito (o autarca) que deu o nome à(s) coisa(s)... É certo que o país, a terra, os pais, os irmãos e o nome de baptismo a gente não é livre de escolher... (Mas devia ser, já que se fala tanto, hoje em dia, em direitos de personalidade!).

3. Convenhamos que há sítios mais (im)próprios do que outros para uma pessoa nascer, viver, respirar, amar, trabalhar e morrer....Vocês já imaginaram serem conterrâneos dos habitantes, por exemplo, de Cabrão, Cama Porca, Focinho de Cão, Paitorto, Picha, Punhete, Rego do Azar, Rio Seco dos Marmelos ou Venda da Gaita ? Por mim não vejo mal nenhum nisso, desde que os portugas lá nascidos não se sintam discriminados e sejam felizes... Afinal, são flores (brutas, espontâneas, singelas) destas Terras de Espanha, Areias de Portugal...

Mas um dia destes suspeito que os eurocratas de Bruxelas irão tomar conta de mais este dossiê e normalizar a(s) coisa(s)... Como têm feito com (quase) tudo o resto: a pêra e o pêro, o porco e a porca, por exemplo, que só podem ir à nossa mesa se forem calibradas pelos aferidores de Bruxelas (a pêra e o pêro) ou abatidos, sem dor nem discriminação de sexo, nos matadouros da civilização !.. Por isso é que esses, os ditos aferidores, são chamados de... peritos (que são uma espécie de pêros, devidamente calibrados).

Para já, não pode haver nenhum sítio, no espaço único europeu, chamado Mata Porcas, por exemplo, pela simples razão de que matar o porco ou a porca em casa, no quintal, na praia, na rua ou no adro da igreja é um grave atentado à saúde pública e à unidade sócio-cultural do super-Estado de Schengen, para além de um espectáculo bárbaro que pode até agudizar a má-consciência dos carniceiros europeus... E depois vamos lá ver: há nomes que são perigosos, podendo até ter (i) conotações pedófilas como Catraia do Buraco; ou (ii) erótico-satíricas, para não dizer mesmo pornográficas, como Senhora do Alívio, susceptíveis de ferir a sensibilidade dos crentes ou provocar a ira dos ateus e agnósticos...

Quanto ao Cu de Judas, garanto-vos que não foi um invenção do (do-nosso-próximo-Prémio-Nobel-da-Literatura-que-já-não-há-de-chegar-a-ser) António Lobo Antunes (e é pena, por que o gajo é um génio!).

Pois bem, o Cu de Judas existe mesmo e fica algures no meio do Atlântico... Provavelmente o sítio terá sido descoberto pelos homens da Nau Catrineta quando, sofrendo de miragens, já viam Terras-de-Espanha-Areias-de-Portugal por um canudo (Coitados naquele tempo não havia escolaridade obrigatória, nem se aprendia geografia pelos livros, nem muito menos havia internet!...).

4. Depois deste paleio todo sobreo Portugal in su situ, o Portugal, macho, dos nossos avoengos, aqui vai a lista (necessariamente incompleta, logo aberta...) com os nomes das ditas santas terrinhas e dos outros lugares menos santos, seguidos do respectivo concelho (ou ilha). Este é o Portugal sacro-profano (como diria o saudoso poeta Ruy Belo), que também nos coube em herança.

A lista destina-se àquela camada mais adiposa dos portugas que viajam muito por países exóticos e não têm tempo para conhecer a santa terrinha que Deus lhes deu e o Dom Afonso Henriques e os seus façanhudos descendentes conquistaram aos marafados dos berberes...

Se vocês se (a)lembrarem de mais alguns nomes, registem e acrescentem, que não pagam nada. Trata-se de um trabalho colectivo, de muitas e desvairadas (ciber)gentes. Provavelmente esta é a última oportunidade que ainda têm de conhecer o Portugal profundo em vias de extinção. Quem não for ao Pulo do Lobo antes do Prof. Cavaco tomar posse como presidente da República, é por que não votou nele ou então anda a ver passar os comboios na ponte dita 25 de Abril.

De futuro, e a acreditar nas projecções demográficas do INE (leia-se: Instituto Nacional de Estatística) ninguém mais nascerá no Chiqueiro, no Cemitério ou na Venda da Porca, mas sim na Maternidade Alfredo da Costa, na Júlio Dinis e sobretudo nos novos Hospitais SA do Portugal do Século XXI).


A
Agua Derramada - Grândola
Aliviada - Marco de Canaveses
Amor - Leiria
Angústias - Paredes de Coura
Às dez - Angra do Heroísmo

B
Bagaceira – Calheta
Bairro do Fim do Mundo - Cascais
Baixa da Banheira - Antigo Lugar da Banheira (Séc. XV), Moita
Bêbeda - Sines
Bexiga - Tomar
Bicha - Gondomar
Bicho - Santo Tirso

C

Cabeça de Carneiro - Évora (distrito)
Cabeçudos - Marvão
Cabrão - Ponte de Lima
Cabrões - Santo Tirso
Cama Porca - Alhandra
Campa do Preto – Maia
Casal da Gaita - Lourinhã
Casal de Água de Todo o Ano - Abrantes
Catraia do Buraco - Belmonte
Cemitério - Paços de Ferreira
Chiqueiro – Lousã
Chouriço - Évora (distrito)
Coina – Barreiro
Coito - (Vários concelhos)
Colo do Pito - Castro Daire
Cova da Moura - Amadaora
Coxo - Vila da Praia da Vitória, Oliveira de Azeméis e Felgueiras
Crucifixo – Tramagal
Cu de Judas – Ilha de São Miguel, Açores
Cu Marinho - Évora (distrito)

D
Deixa-o-Resto – Santiago do Cacém
Deserto - Alcoutim, Coruche e Estremoz

E
Endiabrada - Aljezur e Odemira
Esgaravatadouro - Monchique

F/G/H

Focinho de Cão - Aljustrel
Garanhão - Ponte da Barca
Hospícios - Azeitão

I/J

Imaginário - Caldas da Rainha
Jerusalém do Romeu - Mirandela

M/N/O

Mal Lavado - Odemira
Máquina - Cabeceiras de Basto
Mata Cães – Torres Vedras
Mata Ladrões - Évora (distrito)
Mata Mouros - Vila do Bispo
Mata Porcas - Lagos e Monchique
Monte do Pau - Évora (distrito)
Monte do Trambolho - Évora (distrito)
Monte dos Tesos - Avis
Namorados - Castro Verde e Mértola
Orelhudo - Coimbra

P

Paimogo - Lourinhã
Paitorto - Mirandela
Paixão - Celorico de Basto e Vieira do Minho
Panasqueira - Portalegre (distrito)
Paraíso - (Vários)
Passado - Vila Verde
Pedaço Mau - Vila Nova de Ourém
Pernancha de Cima - Portalegre (distrito)
Pernancha de Baixo - Portalegre (distrito)
Pernancha do Meio - Portalegre (distrito)
Pés Escaldados - Arganil
Pias - Évora (distrito)
Picha - Pedrógão Grande
Pirescoxe - Santa Iria da Azóia, Loures (a terra em que viu nascer gente operária e militantes comunistas como o Jerónimo de Sousa)
Pitões das Júnias - Montalegre
Pobreza – Caminha
Poço de Boliqueime – Loulé
Poço dos Mouros - Lisboa
Ponta - Lajes das Flores e Porto Santo
Porca - Ponte de Lima
Porqueiras - Sítio da freguesia de Seixo Amarelo, Guarda
Presa dos Mouros - Lagoa
Pulo do Lobo - Mértola (celebrizado pelo Prof. Cavaco Silva, e tornado o símbolo do Portugal profundo)
Punhete - Valongo
Purgatório - Albufeira

Q
Quartos - Vila Verde e Loulé
Quinta de Comichão - Guarda
Quinta do Himalaia - Barreiro

R
Rabo de Peixe - Ilha de São Miguel, Açores
Rabo de Porco - Penela
Rato - Barcelos e Vila Nova de Famalicão
Ratoeira - Vila Nova de Cerveira
Rata - (11 concelhos, pelo menos: Arruda dos Vinhos, Beja, Castelo de Paiva, Espinho, Maia, Melgaço, Montemor-o-Novo, Murça, Santarém, Santiago do Cacém e Tondela)
Rego do Azar - Ponte de Lima
Rio Seco dos Marmelos - Ferreira do Alentejo

S

Sempre Noiva - Évora (distrito)
Senhora do Alívio - Baião
Sítio das Solteiras - Tavira
Solteiros - Évora (distrito)

T

Terra da Gaja – Lousã
Tomates - Albufeira
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quarta-feira, janeiro 25, 2006

Blogantologia(s) II - (24): (Não) fumo, logo existo

Versão (modificada) do post inserido no Blogue-fora-nada, de 17 de Novembro de 2003 > Blognecos - IV: (Não) fumo, logo existo

poema neo-realista: eu, fumador, me confesso

mais um dia mundial do não fumador.
global.
nacional.
regional.
local.
só não o foi na minha freguesia.
nem no tasco que eu frequento.
nem na fábrica onde trabalho.
nem no meu bairro (social)
onde não há trabalho decente para a gente.
nem na rua do monóxido de carbono
que é a minha.
nem na minha casa
em que o tabaco é o xanax
do mulherio.

dizem-me que se aperta o cerco
aos fumadores.
que pelas estatísticas são
os que ainda não trabalham
mais os que já trabalham
e os que estão na casa dos trinta
e mais os que já deixaram de trabalhar.
(os que ficaram pelo caminho
ou na ponta final da linha de montagem).

ouvi o telejornalista de serviço
(fez-me lembrar o porta-voz
do tribunal do santo ofício
que condenou à fogueira o tetravô
do meu tetravô, cristão-novo).
o inquisidor-mor malha nas mulheres portugas
que estão a estragar as estatísticas sanitárias.
diz o papagaio:
os portugas ainda podem orgulhar-se,
(ao menos, valha-nos isso!),
de serem os menos fumadores da eurolândia.

repete o papagaio:
não fumar está na moda.
é fixe.
os portugas que não fumam ou deixaram de fumar
estão na moda.
são fixes.
eu, fumador, de maço e meio,
pecador me confesso:
não quero estar na moda.
não quero ser fixe.
quero e não quero deixar de fumar.
mas temo o cerco.

cerco, é isso.
os tempos são bons para apertar o cerco.
aos fumantes.
aos novos párias sociais.
aos novos inimigos da ordem pública.
o pretexto pode ser a nova peste branca.
a pandemia da gripe.
o direito à saúde.
a economia da saúde.
os direitos dos não fumadores.
o fumo passivo.
as finanças públicas.
o endividamento das famílias.
o cowboy da marlboro
que era gay e morreu de cancro.
a nova ética do trabalho.
a produtividade do trabalho
e a competitividade das empresas.
a identidade da nação.
a cultura do tabaco.
os superiores desígnios do estado.
a poluição tabágica que,
além dos pulmões dos colarinhos azuis
e do resto do corpinho da gente,
dá cabo da pintura dos tectos e das paredes,
do sistema de ar condicionado,
dos equipamentos,
dos circuitos dos computadores,
das mother boards,
dos chips,
das placas gráficas,
dos neurónios dos colarinhos brancos e dourados,
dos estofos do carro do patrão,
da pele da gaja do patrão,
do clima organizacional da empresa,
da missão, dos valores, da estratégia
do ranking de portugal no mundo.

o tabaco que mata meio milhão de eurolandeses por ano.
morrem que nem tordos,
dizem,
diz o sanitário de serviço.
doze mil, falando só de portugas.
e o mulherio a dar cabo da estatística,
diz o telepapagaio.

não vi, todavia,
as empresas portuguesas seguirem o exemplo
das suas congéneres multinacionais
que operam cá no burgo.
como a ibm ou a siemens.
não vi os senhores gestores
engravatados lá da minha tasca
virem à televisão dizer com orgulho:
somos mais uma smoke free company.
eles não têm lata para o fazer.
porque antes disso teriam que dar o exemplo.
e mostrar que também dão exemplos
de boas práticas noutras matérias
como a proteção ambiental,
o apoio aos órfãos e viúvos
dos operários que morreram a trabalhar,
a proteção da saúde e segurança dos trabalhadores,
a consulta e a participação do zé portuga,
a garantia do trabalho decente,
o sentido de responsabilidade social.
da empresa.

a propósito:
alguém sabe explicar-me
o que é isso de trabalho decente,
vida decente,
salário decente,
condições de trabalho decentes,
cuidados de saúde de decentes,
ambiente decente,
educação decente,
habitação decente ?
também eu quero viver
decentemente
e morrer docemente.

hoje é dia mundial do não fumador.
uma vez por ano todos os anos.
só não o foi na minha freguesia.
nem no tasco que eu frequento.
nem na fábrica onde trabalho.
nem no meu bairro (social)
onde não há trabalho decente para a gente
nem dinheiro para o tabaco que engana a fome.
e a apagada e vil tristeza do nosso quotidiano.
a falta de graveto, pilim ou guita
para oferecer uma rosa à patroa
que agora vai fazer 45 anos.

hoje foi um dia trivial.
como os outros.
não dei por nada de especial.
hoje o estado arrecadou mais de 600 mil euros
de imposto
sobre o vício de fumar.
33 portugas morreram
de doenças relacionadas com o tabagismo.
não vi nem ouvi o ministro da saúde preocupar-se
com os que trabucam e fumam.
com os pobres que fumam e que vão morrer.
tal como os outros que não fumam,
nunca fumaram
ou deixaram de fumar.
"um dia todos vamos morrer".
conheço essa teoria,
a da dissonância cognitiva,
diz-me o médico do trabalho lá da fábrica
e que até é um gajo porreiro
porque fuma
e sabe que fumar faz à mal saúde.
a gente precisa sempre de um bom alibi
para adiar a morte.
a doença.
a dor.
a travessia da noite.
a subida ao céu.
a descida aos infernos.
o trânsito no purgatório.
o juízo final.
a danação eterna.
amen. padre nosso. avé-maria.

minto: o senhor ministro da saúde
também o é da saúde pública.
da saúde da gente.
das crianças que estão no ventre
das mães toxicodependentes e
das mães fumadoras
e das mães operárias do vale do ave.
o senhor ministro
acaba de anunciar a sua (dele e do governo) intenção
de aumentar o número de consultas hospitalares
de desabituação tabágica
(público, 17.11.2003).
eu aplaudo.
mas quantas (consultas) não disse.
nem onde
nem com que meios.
há montes de portugas a pedir ajuda.
não há técnicos para as encomendas.
e os que há, são voluntários.
psicólogos à procura de espaço de trabalho
no mundo das batas brancas.
há listas de espera de dois anos (!)
para este tipo de consulta
(por exemplo, no hospital egas moniz).
a propósito: diz-se desabituação
ou cessação tabágica ?
cessação, dizem os puristas.

que fumar é uma doença.
uma pestilência.
mas o que é que um gajo como eu,
fumador compulsivo,
de maço e meio
(que a guita não dá para mais),
faz em dois anos ?
dá em doido ?
morre de cancro ?
estoira com os miolos ?
trepa pelas paredes acima ?

em dois anos um portuga fumante como eu
acendeu pelo menos 21900 vezes o isqueiro.
fumou pelo menos 21900 cigarros
(fora o cravanço).
ficou exposto a 4 mil produtos químicos
vezes 22 mil cigarros.
ou serão 5 mil ?
mais mil menos mil, tanto faz.

por conseguinte, um gajo está arrumado
ao fim de dois anos na lista de espera
e a continuar a fumar.
e a trabucar.
eu queria deixar de fumar.
talvez alguém me possa ajudar.
lá em casa todos fumam.
e as mulheres
(a patroa e as duas filhas)
mais do que os homens
(só eu, que o puto ainda é pequenitates).

eu fico, por isso, sensibilizado
com a sensibilidade do senhor ministro
que se preocupa com a gente.
gente como eu.
os que fumam e trabalham como eu,
classe operária,
malandra,
tunante
e fumante como eu,
embora em vias de extinção
enquanto classe mal comportada.
e se calhar também com os que não fumam
mas apanham com o fumo dos que fumam.

no dia mundial do não fumador,
eu escrevo no meu blogue:
fumo, logo existo.
imaginem se não fumasse:
estava tramado.
ninguém se preocupava comigo.
neste dia tenho a certeza que
alguém se preocupou comigo.
médicos, enfermeiros, psicólogos.
padres, polícias, jornalistas, amigos.
cangalheirpos, coveiros.
estatistas, informáticos, epidemiólogos,
patrões do século vinte e um,
gestores do capital humano, sociólogos.
tudo gente importante e séria.
hoje houve gente que se preocupou comigo.
e isso tocou-me,
deixou-me sensibilizado.
talvez eu ainda vá a tempo de me inscrever
numa consulta de desabituação
(perdão, cessação)
tabágica
em 2005.

mesmo com meio pulmão...
a sorrir à vida.

Luís Graça