quarta-feira, setembro 24, 2008

Blogantologia(s) (II) - (72) Nasceu e morreu um pretinho da Guiné



Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau. Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Cadi era o seu nome. Vivia em Farim do Cantanhez. Esteve recentemente às portas da morte. E perdeu o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses. Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil... "Que raiva, que mundo, que desgraça de país" - é a primeira reacção que nos ocorre, a nós, que estamos num país que tem um dos baixos indicadores de mortalidade infantil do mundo... Sofremos, e muito, com estas notícias tristes que nos chegam da nossa querida Guiné... e que nos envergonham a todos (LG).

Foto: ©
Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados..

(…) “Segundo os dados da UNICEF, em cada mil crianças nascidas na Guiné-Bissau, 233 morrem antes de completar os cinco anos de idade, das quais mais de metade (138) não chegam a fazer o primeiro aniversário”. (…) (Dos jornais)

Nasceu e morreu um pretinho da Guiné (*)


Cadi, de seu nome.
Amorosa,
uma ternura,
uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
apascentando na orla da bolanha.
Era nalu,
vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
com direito a pensão
ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
em Iemberém,
no início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
das crianças africanas,
quando veem uma Mulher Grande, branca.

Homem estava em Bissau.
Todo o mundo vai p’ra Bissau,
onde é a escola da vadiagem e da malandragem.
Homem vai embora.
Diz que vai à lenha
e não mais volta.
Que o mundo é bem maior
e mais sedutor
e bem mais perigoso
que Farim do Cantanhez,
tabanca interior no interior.
E deixa Cadi com a barriga cheia.
Agora Cadi vai a Bissau
levantar a pensão do pai.
As duas novas mães, tugas,
dão-lhe dinheiro para a viagem.
Ficam amigas.
Prometem dar notícias,
de Lisboa, cidade grande,
chão dos tugas,
e mandar roupa para o menino ou menina.
Cadi bem gostaria que fosse menino,
para trabalhar na horta com ela.

Agora Menino já nasceu
e vai ter nome de padrinho, tuga,
lá longe, bem longe,
tão longe,
que é preciso tomar avião,
avião grande.
Nuno, Nuninho,
vai ser o nome do menino,
Por homenagem
ao senhor capitão-fula,
homem valente de Mejo e de Guileje,
Nuno Rubim, hoje coronel.
Todo o mundo está contente,
família está contente.
nalu está contente.
Agora que o Nhinte Camatchol proteja o menino
e a sua mãe Cadi.
e o avô, pensionista,
combatente da liberdade da pátria.
E o Estado guineense
que ainda paga pensão do avô.
Que a vida é a travessia de um rio,
cheio de rápidos e de armadilhas,
de crocodilos,
de diabos,
de irãs maus…
A vida corre, como a água do rio.
Vem tempo das chuvas,
vem mosquito,
vem insecto, aos milhões,
vem virús,
vem bactéria,
vem fungo,
vem nuvem negra,
vem HIV/Sida,
vem tempestade,
vem fome,
vem doença,
vem ave agoirenta,
vem a morte, aos quatro meses...
Por paludismo!

A dor quebra coração da gente.
Da Cadi. 
Da Júlia. 
Do Nuno.
O Nuninho morreu.
Dirão as estatísticas:
foi mais um dos duzentos
em cada mil
que não chega aos cinco anos.
A implacável estatística
da mortalidade infantil
na Guiné-Bissau:
138 por mil nados-vivos não sobrevivem
ao primeiro ano,
diz a OMS.
O que é tu podes fazer ?
No teu país, há um século atrás
também era assim...

A Alice não sabia,
não sabia das últimas notícias.
Hoje foi comprar roupinhas, lindas,
para o filho da Cadi.
Ao Colombo,
em Lisboa,
no chão dos tugas,
tabanca grande.
Telefona ao Pepito
para saber quando vai,
de regresso a casa,
em Bissau,
no Bairro do Quelelé,
para retomar o belíssimo trabalho da AD.
E se ainda tem espaço na mala,
ele ou a Isabel,
para arrumar uma roupa bonita p'ró menino.
Eu deve estar lindo
e robusto
e saudável.
Que em Iemberém, no Cantanhez,
os meninos não tinham barriga grande.
E eram lindos, robustos, saudáveis.
Telefona ao Nuno e à Júlia
para saber notícias da Cadi e do Nuninho.

Do outro lado da linha,
... o desalento, a tristeza, a desolação.
Alice, o Nuninho morreu, aos quatro meses!...
De paludismo.
Sem assistência médica.
Sem esperança.
Sem salvação.
Como um cão vadio,
que morre na beira da estrada,
no meio do capim,
na lixeira do bairro.
E a Cadi também esteve às portas da morte.
Por paludismo e desinteria.
O Nuno e a Júlia providenciaram, a tempo,
o recurso a uma clínica privada
em Bissau.
E a Cadi salvou-se.
Desta vez salvou-se.
Porque gente amiga e solidária
proporcionou os cuidados de saúde decentes
que o dinheiro pode comprar.
Cadi perdeu o seu menino,
espero que não tenha perdido
a fé e a esperança nos seres humanos,
mesmo naqueles
que assobiam para o lado,
enquanto as crianças da Guiné morrem
como os cães à beira da picada e do capim.
De paludismo.
De pneumonia.
De diarreia.
De má nutrição.
De Sida.
De abandono.
De indiferença.
De falta de médico
(Que não volta
e fica a ganhar bom dinheiro em Lisboa,
tabanca grande,
chão dos tugas).
E de falta de medicamentos.
E de meios de prevenção e tratamento.
E das coisas mais elementares e essenciais da vida,
como a água potável.
ou um mosquiteiro impregnado.

O Nuninho nasceu e logo morreu.
Um pretinho da Guiné nasceu para morrer.
Logo logo,
de paludismo,
que é a doença da vergonha dos ricos
e um dos inimigos mortais dos pobres,
nomeadamente em África.
O Nuninho não é, não devia ser
um número, mais um número
para as estatísticas, frias e cínicas,
do nosso descontentamento
e da nossa má conscência.
O Nuninho não era mais um pretinho da Guiné.
O Nuninho era um menino nalu,
filho da Cadi,
sem pai.
Ou com um mau pai, ausente,
que foi a lenha e não mais voltou.
E nesse dia, fatal, em que adoeceu,
sem a sorte do Nhinte Camatchol
a protegê-lo.

Hoje a morte em Bissau tem um rosto:
o do menino da Cadi.
E a ti, pobre gazela,
que direi ?
Coragem,
és nova,
a vida continua...
Não tenho palavras,
a não ser de circunstância,
para calar a tua dor...
E mesmo assim sei
que irás lutar para vingar a morte do Nuninho,
que irás lutar pela felicidade a que tens direito,
que irás herdar a coragem do teu velho pai,
que lutou por um país novo,
onde os meninos pudessem nascer e crescer,
lindos, livres, robustos e saudáveis.
Não tens outro jeito, Cadi,
não temos mesmo outro jeito,
os guineenses
e os amigos da Guiné.

Luís Graça

Setembro de 2008 (**)

(*) Dedicado à Júlia, à Alice e ao Nuno Rubim,
Que na semana de 1 a 7 de Março de 2008
se afeiçoaram à Cadi e ao seu futuro menino,
que só teve neste mundo
direito a uma curtíssima viagem de 4 meses.


(**) Revisto nesta data. Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça).

quarta-feira, setembro 10, 2008

Blogantologia(s) II - (71): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra

Com o atraso de décadas,
quiçá de séculos,
presto hoje o meu preito
às mulheres portuguesas
que se vestiam de luto
enquanto os maridos ou noivos ou namorados ou irmãos
ou simplesmente amigos
andavam na guerra do ultramar.
Ou guerra colonial, como se queira.
Já foi há tanto tempo
que eu perdi as contas aos contos,
às estórias,
às vidas,
às lendas,
às narrativas.

Venço, por fim, a minha relutância,
o meu preconceito,
o meu medo do irracional
e porventura o meu medo visceral do sagrado,
e presto a minha homenagem
às mulheres que rastejavam no chão de Fátima,
implorando à Virgem o regresso dos seus filhos,
sãos e salvos.
Só as mulheres, em bando, são capazes
de implorar a piedade dos deuses
e ao mesmo aplacar a sua ira,
para logo a seguir imprecar contra eles,
se for caso disso.

Decididamente,
sem pejo nem pudor,
presto a minha homenagem
às mulheres que continuavam,
silenciosas e inquietas,
ao lado dos homens
nos campos,
nas fábricas
e nos escritórios.
Por que havia um silêncio
que não era cumplicidade,
que não era traição,
que era inquietação,
que não era claudicação,
que era a raiva a crescer
dentro do peito,
que era porventura já
a emergência, a explosão
da revolta e da liberdade.

Descubro a cabeça,
tiro o chapéu,
ajoelho-me,
perante estas mulheres do meu país
que ficavam em casa,
rezando o terço à noite,
como a minha mãe
e as minhas manas
e até o meu pai,
a quem, de resto,
nunca agradeci este gesto de amor.
Nem em público nem em privado.
Nunca saberia, porventura, merecê-lo
nem muito menos agradecê-lo.

Mas também endosso
as minhas palavras de admiração
às que aguardavam com angústia,
pelo aerograma,
na hora matinal
(e às vezes mortal)
do correio,
vindo do SPM número tal.
Sem esquecer as que,
muito poucas,
subscreviam abaixo-assinados
contra o regime e contra a guerra.
Às que, muito poucas,
escreviam,
liam,
tiravam a stencil
e distribuíam
comunicados e folhetos clandestinos.

Às que, também raras,
sintonizavam altas horas da madrugada
as vozes da rádio que vinham de longe
e que falavam de resistência
em tempo de solidão
e de servidão.

Homenageio, sim, àquelas que, muitas,
tiravam carinhosamente
do fumeiro (e da barriga)
as chouriças
e os salpicões
e os nacos de presunto
e as morcelas
e as alheiras
que iriam levar até junto dos seus filhos,
homens-toupeiras,
no outro lado do mundo,
no calor dos trópicos
e na humidade dos abrigos,
um pouco do amor de mãe,
das saudades da terra,
dos cheiros da casa e dos animais,
dos sabores da comida,
e da alegria da festa.

Mas também, e por que não,
às, muitas,
e em geral adolescentes, virgens,
e às jovens solteiras,
namoradeiras,
que se correspondiam com os soldados
mobilizados para o ultramar,
na qualidade de madrinhas de guerra.

Não tive, nunca quis ter,
madrinha de guerra,
por preconceito,
por orgulho e preconceito,
por achar que era uma instituição ou criação
do Estado Novo,
dos senhores da guerra,
e das senhoras que os geravam…

Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma
a uma madrinha de guerra.


Lisboa, 1981/2008

segunda-feira, setembro 01, 2008

Blogantologia(s) II - (70): Deixa que os que gostam de ti, te apapariquem




Lourinhã > Praia da Areia Branca > Agosto de 2008 > Surfistas ao sol...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Aforismos de Agosto
(a pensar em ti)


Agosto é vento,
É areia,
É sal,
Contra as pálpebras dos marinheiros
Que morreram nos teus sonhos.
Nunca deixes morrer os sonhos.
Os teus sonhos.
Nem os marinheiros de olhos azuis
E cabelos louros ao vento
Que subiam os mastros dos navios
Do teu museu do mar, imaginário.

Tu que vieste com o vento norte,
Ganhas novo fôlego e alento
E outra leveza
Ao perfazeres os dez mil passos
Diários, matinais, no areal.
Para que o corpo não crie raízes.
E a gente possa desfrutar a beleza
Da enseada de Paimogo.

O melhor de Agosto
São as esplanadas
Das pequenas terras de Portugal,
À beira mar.
Tão cheias de nadas,
Tão saloias,
Tão pimbas,
Tão belas.
Conheci-te numa delas.

Agosto são os escorpiões tatuados
Nos corpos
Das petites filles portugaises
Que voltam à terra dos avós.
Agosto são as alegrias e as vertigens
Do regresso.
Porque voltamos sempre às origens.

Os únicos que têm de vencer
São os surfistas.
Vencer a onda,
O vento,
A areia,
O sal.
Não temos que destruir para vencer.

Agosto é também
O puro desejo da mãe
Pelo filho incestuoso.
Lânguidas mamãs,
De mamas flácidas.
São focas estiradas ao sol.
São focas.
São fofas.
Como é bom ser mamã,
E foca
E fofa
E babada.

O melhor de Agosto
É teres o dia todo
Por tua conta,
O dia, a semana, o mês.
Os dias úteis do mês.

Mas o melhor de Agosto é o teu dia.
Dezoito.
E estamos cá todos,
A apaparicar-te...
Deixa que os que gostam de ti,
Te apapariquem.

Lourinhã,
Rua da Misericórdia,
18 de Agosto de 2008.

Blogantologia(s) II - (69): O fim da notícia, ou nem sequer isso

O fim da notícia, ou nem sequer isso

Pedimos desculpa,
Mas hoje não há notícias…
Um dia gostaria de acordar sem notícias.
Sem televisão.
Sem jornais.
Sem Internet.
Sem o ruído das ondas hertzianas.
Sem mensagens.
Sem mensageiros.
Sem imagens
Nem palavras.
Nem sequer as duas últimas palavras
Do locutor de serviço a pedir desculpa
Por não haver notícias.

Um dia gostaria de acordar
Com a notícia do fim da notícia.
Ou nem sequer isso.
A notícia do fim do circo mediático.
Ou nem sequer isso.
Gostaria de acordar
Só com o buraco negro do ecrã
À minha frente
A milhões de anos-luz
No meu telescópio.
Um dia gostaria de acordar
No mais absoluto silêncio.
Nem ouvir sequer o ruído
Do vaivém das ondas do mar.
Ou nem sequer isso.
Um dia não gostaria sequer
de acordar.

Vimeiro, Lourinhã, 21 de Agosto de 2008, Bicentenário da Batalha do Vimeiro (1808-2008)

Blogantologia(s) II - (68): Gracias à la (mo)vida

A vida é la movida.
É Sagres.
É Boémia.
E choco frito.
Tudo o que a gente gosta.
Uma esplanada à beira-mar.
O sol.
A maresia.
A boa vida.
A sorna.
O fado.
A morna.
O dolce far niente.
Com a gente de quem se gosta.
Muito, pouco ou nada.
Mais a Nossa Senhora dos Milagres
Que te acode,
Quando aflito.
Enquanto a maré sobe.
E a noite espreita.
E a morte não pré-avisa.

Olha a moreia da costa,
Que é a melhor do mundo.
A vida é pregão.
A vida é merda.
A vida é Sagres, é Boémia.
A vida é hipoglissémia.
A vida é adrenalina.
A vida é prego a fundo.
A vida é stresse.

Sexta-feira à tarde,
Ao fim da tarde,
Uma hora antes do pôr do sol.
A vida é festa.
La fiesta, amigo.
Vengo de la altiva Castilla.

No TGVê espanhol
Que não paga imposto
único
de circulação.
Que o futuro não paga imposto,
Nuestro hermano.
Pressupuesto, amigo.
Que viva la siesta!
Que viva la vida!


Mas agora que vem aí a crise,
Como é que eu chego à ponta mais
acidental
Da Europa ?
Para comer o meu choco frito,
No bar da Peralta,
A las cinco de la tarde.
Com navios negreiros,
Fantasmagóricos,
Na linha do horizonte,
A quinze milhas.
Com os jacobinos do Junot
Na película da memória.
O Vimeiro aqui tão perto.
Com autos de fé,
Mouros, judeus, corsários,
No meu ADN de português
Sem história,
Maçarico, maltrapilho, errante.
No mar onde naufragam
Todas as boas consciências
E se afinam as ciências,
As ditas duras mais as ditas moles.

Um homem sorri com meia-cara
O sorriso amarelo do cinismo.
Aqui,
No cabo da terra,
Onde se proclama a ditadura do sucesso.
E do novo riquismo.
Com o isco
Da vã glória de ganhar
A medalha olímpica.
A vida eterna.
O Nobel.
Um lugar no paraíso.
O Olimpo,
Condomínio fechado dos deuses.
Que dos perdedores não reza a História.

A vida é la movida
No Peralta Bar,
Que não vem na lista do Expresso
Da Coma, Mesa & Roupa Lavada.
Haja lugar à mesa,
comprida,
e valha-nos Baco, velho compincha.
Viva o Portugal do petisco!
Viva o mês de Agosto!

Deixei os meus velhos
Institucionalizados
Nacionalizados
Alegaliados
Sedados
Securizados
Acorrentados
À árvore do Welfare State.
Na Atalaia,
A caminho do Porto das Barcas.
Ficaram aos cuidados de uma ucraniana
Que era enfermeira na sua terra,
E da santa padroeira
dos pescadores,
A Nossa Senhora da Guia.
Que há sempre uma santa para todas as aflições,
Das dores do parto
À agonia da morte.
Que às vezes, mais vale a morte
Que tal sorte.

Tenho insónias às cinco da manhã,
Mesmo sabendo que da janela
Do quarto dos meus velhos
Há uma linda vista para as Berlengas.
E que a associação é
Cultural,
Social,
Artística,
Desportiva
e Humanitária.

Minha mãe, minha avozinha,
Tens a graça até no nome,
Não é por seres mais velhinha
Que de amor passarás fome.


Passo pela loja do chinês,
Fugido de Tianamen,
E compro um prato
De Alcobaça, pintado à mão,
De contrafação.
Com quadras pimbas
Ao amor de mãe…

Brilhas como uma estrela,
No teu quarto, lá no lar,
Tens uma linda janela,
Com vista de céu e mar.


Quem disse que a vida é bela,
E que as mães é que dão cabo dela ?
Desligo o botão da televisão,
Puxo o reposteiro da janela
Donde vejo o mundo a cor de rosa,
Arrumo o cavalete
E as tintas do arco-íris.
E peço uma posta de moreia frita
E um copo de tinto.
É a hora da doce melancolia
E do leve sentimento de culpa
E da idiota reflexão sobre a idiossincrasia
De se ser velho, europeu e português,
Na ponta de uma navalha
Da economia
Da política
Da demografia
E da geografia.

Não escolhi nascer.
Não escolhi pai e mãe.
Não escolhi o pedaço de chão onde fui parido.
E não sei o que farei com este poema,
Que não vale um algoritmo
Nem um simples teorema.
E que não é de protesto
Nem é manifesto.
Entre a ciência da morte
E a fé da ressurreição,
Haverá sempre uma santa
Que me valha.
Ou uma azinheira ou uma carvalha
Onde possa pôr a uma santa aparecida
Que me salve da má consciência
De la movida.

Lourinhã, Praia da Peralta, Agosto de 2008

Blogantologia(s) II - (67): Se tens galinha perdês, não a mates nem a dês

Se tens galinha perdês, não a mates nem a dês

Como era simples a vida da camponesa
Que ia ao monte buscar lenha
No carro de bois.
Ou que, de saco à cabeça,
Ia levar o grão de centeio
À azenha.
E que abria as pernas, depois,
Ao seu homem e seu amo,
No meio do campo de milho.

Que quadro,
Que pintura,
Que beleza,
Tardo-naturalística,
O desta humilde portuguesa,
Sem rosto,
Sem nome,
Sem registo,
Sem trilho.
Sem a mística
Nem a estética do Movimento Nacional Feminino.
Porra e lenha,
É quanto a venha
.

Como era simples e brutal
A vida da mulher do campo
No tempo em que ainda havia
A distinção socioantropológica
Entre a cidade e o campo.
E havia o carro de bois,
E a maçã, biológica,
E o império colonial,
E a costeleta de Adão
E as criadas de lavoura eram violadas
Em cima da meda da palha de centeio.
Enquanto os bois gemiam
E as rodas do carro chiavam
E o abade pregava:
Freiras e frieiras
É coçá-las e deixá-las
.

Como eram imutáveis as leis
Que regiam as relações
Entre machos e fêmeas,
Entre fidalgos e rendeiros,
Entre donzelas e donzéis,
Entre soldados e capitães,
Entre ricos e pobres
Entre operários e patrões.
E cada um tomava o seu lugar
No desconcerto das nações
Ou no palco do teatro da vida e da morte.
Se queres conhecer o vilão
Mete-lhe o mando na mão.


Como era estupidamente alegre
A infância, breve,
No tempo em que a sardinha
Era para três.
E sobreviva o mais forte.
E o galo cantava
Para a galinha perdês.
E a vida fiava-se e tecia-se
Linha a linha.

Como era curta a vida,
A esperança de vida,
E certa, tão certa, a morte.
Muita saúde, pouca vida,
Porque Deus não da(va) tudo.

Ou noutra variante, feminista:
Se tens galinha perdês,
Não a mates nem a dês.