Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 12. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 12. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, abril 28, 2011

Blogantologia(s) II - (93): Elegia para um paisano





Elegia para um paisano (*)

por Luís Graça [ foto acima, no "oásis de paz" de Contuboel, Centro de Instrução Militar, Junho de 1969]

(À memória de A…, meu camarada
da CCAÇ 12, Guiné, 1969/71…
e dos demais camaradas, desconhecidos
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos,
por homicídio, por suicídio, por acidente)



Disseram-me que tinhas morrido,
Meu infortunado camarada,
Já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
Do século passado,
Não posso precisar.
Morrido, lerpado,
Para usar o nosso vocabulário,
Bruto e feio.
Lerpado, assim, sem mais nada,
Sem uma palavra,
Sem uma despedida,
Sem uma oração,
Talvez até sem um ui nem um ai,
Sem um grito.
Sem aviso prévio,
Nem sequer um cheque-mate!
Morrido, de morte matada!
Morrido, como um cão.
De um tiro na nuca.
Como os cães que abatemos,
Um noite, em Bambadinca,
A Noite das Facas Longas,
Lembras-te?!

Disseram-me que tinhas sido encontrado,
Longe da nossa Guiné,
Dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
Longe da tua Sinchã Mamadjai,
E da morança da tua bela Fatumatá,
De mama firme,
Que se escapulia para a tua morança,
Nas noites, de lua cheia,
Em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
Do Mato Cão,
Dos Nhabijões,
Da Missão do Sono,
Da Ponte do Udunduma,
Da orla da bolanha,
Do poilão,
Do bagabaga…
Onde ?
Longe dos teus verdes anos,
Longe do arco-íris do teu céu de menino.
Perto do teu Tejo,
Numa valeta da rua
Da tua cidade…
Ou de qualquer subúrbio triste e cinzento
De cidade nenhuma.

Que morte tão crua,
A ser verdade,
Oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
Que alguém leu no jornal.
A notícia de uma morte
Em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
Tenhas simplesmente desaparecido,
Emigrado,
Sido sequestrado,
Mudado de código postal
Ou até de identidade,
Sempre era menos mal.
E poupavas-me o teu elogio fúnebre,
Que é a pior das missões
Que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me
(Mas eu não quis crer)
Que tinhas sido morto,
Sem honra nem glória,
Depois de cumprido o teu dever
Para com a Pátria
Que te foi madastra,
Cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
No mar da Palha da tua infância!
Já muito depois
Dos últimos guerreiros do império,
Terem feito o espólio de todas as guerras
E o relatório da sua errância
Desde Quinhentos.

No século passado, meu amigo!...
No século passado, meu irmão!...
Lembro-me do velho Uíge,
Da velha Companhia Colonial
De Navegação,
Nos ter devolvido a terra,
À nossa cidade e capital,
Nas praias de Alcântara,
No cais da saudade,
No cais de pedra
Donde partíramos,
Quase às escondidas,
Vindos do comboio nocturno e soturno
De Santa Margarida.

Não sei quem te esperava
Nesse dia 22 de Março de 1971,
Mas seguramente os mesmos entes queridos
Que me esperavam a mim,
A todos nós,
Que ali, no cais, passávamos à condição
De paisanos.
Vestidas as calças à boca de sino,
E as camisas às florinhas,
Regressávamos ao doce lar,
Com as bugigangas compradas no Taufik Saad
ou na Casa Gouveia,
E à rotina das nossas vidas,
Insignificantes.
E a uma outra guerra,
A da lufa lufa do quotidiano.
Tu tinhas um lar,
Todos tínhamos um lar,
Uma família, alguns um emprego,
Muitos uma namorada ou noiva à sua espera…

Mas eu o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ?
Tiveste filhos ?
Não tiveste tempo de ser bom filho,
Nem bom pai,
Muito muito menos avô…

Nunca mais voltei a rever-te,
Em todos estes anos,
Em que tantas coisas aconteceram,
Para o pior e o melhor,
Na nossa Pátria,
Uma palavra, repara,
Que saiu do léxico dos tugas,
E já não se usa mais…

A imagem mais forte, não a última,
Que retenho de ti,
É a do menino e moço
Que saiu, fardado, garboso,
Da casa de seu pai e sua mãe…
É a do puto reguila,
Quiçá rebelde,
Temperamental,
Belicoso mas generoso,
Da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
O desenrascanço,
Que a vida era dura para os homens
Da CCAÇ 12,
Brancos e pretos.

Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love
!)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,
Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

Foi esse fado que te matou,
Essa maldita, tóxica, adrenalina,
Que trouxeste do Geba e do Corubal.
E que te impedia de parar para pensar,
Simplesmente parar,
Simplesmente pensar,
Simplesmente viver,
Simplesmente respirar
À tona de água.


Meu irmão.
Meu camarada.
Meu amigo.
Foi o sobressalto da vida.
Foi a vida em sobressalto.
Foi a vida em saldo.
Foi a alma em dor.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra.
Na guerra dos paisanos.
Foi isso, foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!

Sexta-feira Santa, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 22/4/2011

Originalmente publicado no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné: Vd.poste de 23 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8157 Blogpoesia (146): Elegia para um paisano (Luís Graça)

  

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Blogantologia(s) II - (83): À uma e meia da tarde, na estrada Nhabijões-Bambadinca

À uma e meia da tarde... (*)

Era uma hora e meia da tarde
quando o meu relógio parou,
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

... O sol dos trópicos desintegrou-se.
O céu tornou-se de bronze incandescente.
Mil e um pequenos sóis riscaram o ar.
O mamute de três toneladas deu um urro de gigante
ao ser projectado sob a lava do vulcão.

Uma súbita explosão…
Um trovão que ecoa até ao Mato Cão...
E depois um silêncio de morte.
O silêncio da morte.

...À uma e meia hora da tarde
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

Sei que gritaste:
- Agarrem-se que a viatura vai despenhar-se!
Sei que foste projectado ao lado do condutor,
batendo violentamente
com a cabeça na chapa do tejadilho.
Sei que conseguiste equilibrar-te
dentro do caixão de ferro,
e sei que não vias nada.


A espessa nuvem de pó, envolvente,
exalava um forte cheiro a enxofre.
Ainda consegui pensar:
- O ar está rarefeito,
milhões de partículas de pó barrento
bloqueiam-me os pulmões,
vou sufocar dentro desta maldita cabina!

Foi quando parou o meu relógio,
à uma e meia da tarde
à saída do destacamento de Nhabijões.

… Um curto-circuito ocorreu no teu cérebro,
como se tivesses sido electrocutado.
Ficaste rigidamente colado ao assento,
a G3 entrelaçada nas pernas,
e a estranha sensação
de que a massa encefálica te tinha saltado da caixa craniana.


O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra.
O gélido terror de quem entrou num mundo desconhecido.
A antevisão da viagem pelo gélido Rio de Caronte.
O calafrio da morte,
trespassando o meu corpo da cabeça aos pés.

...À uma e meia da tarde
na estrada Nhabijões-Bambadinca.

Nunca saberás ao certo
quantos segundos se passaram,
mas houve um solução de continuidade,
essa fracção de tempo
em que a tua consciência esteve bloqueada,
e os pulmões falharam,
e o sangue gelou,
e o coração parou,
de puro terror,
até compreenderes que a velha GMC...
tinha accionada... uma mina.


Outra mina, meu Deus!,
Que horror!,
e instintivamente agarrei-me àquela carcaça de mamute,
mal refeito da surpresa de estar vivo.

....À uma e meia da tarde,
à saída do reordenamento de Nhabijões.

Quando saltaste para o chão,
tinhas, sob o olhar aterrado,
os destroços duma batalha:
corpos por todo o lado,
juntamente com espingardas,
cantis,
canos de bazuca e de morteiro,
granadas,
dilagramas,
um rádio,
bocados de chapa e de borracha,
quicos,
botas,
restos de camuflado,
numa profusão indescritível.


Corpos que gemiam,
que gritavam,
ou que talvez fossem já cadáveres.

...No vulcão de Nhabijões,
a oeste de Bambadinca,
Sector L1,
Zona Leste,
Teatro Operacional da Guiné,
na África subsariana.

– Mortos! Tudo mortos!
– gritava-te o puto Umaru,
os braços abertos,
o pânico estampado no seu belo rosto de efebo,
fula, filho de régulo,
sem o seu inseparável pequeno cachimbo,
que sempre usava para lhe dar o ar de falso Homem Grande.


E logo ali o Transmissões,
o primeiro ferido que reconheceste,
todo encolhido junto ao colosso de ferro amalgamado,
numa postura fetal,
de defesa,
em estado de choque.

Abeiraste-te depois do comandante da 1ª secção,
teu companheiro de quarto,
o Marques,
o teu querido Marquês sem acento circunflexo,
mas ele já não reagia à tua voz
nem às bofetadas que lhe davas no rosto,
o olhar vidrado
dos passageiros do barco de Caronte.
Aparentemente não tinha qualquer fractura exposta
mas de um dos ouvidos corria-lhe um fio de sangue.
Um fiozinho,
vermelho e negro,
rapidamente oxidado em contacto com o ar.
Procuraste desesperadamente
os sinais de que ainda estava vivo,
mas sua respiração era cada vez mais fraca,
e o pulso escapava-se-te, entre os teus dedos.


Trágica ironia:
um minuto antes,
ao subirmos os dois para a viatura,
havíamos disputado amigavelmente o 'lugar do morto'.
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

… À uma e meia da tarde de um dia treze,
ao vigésimo mês de Guiné,
em Janeiro de 1971.

Acabaste por ser tu a ir para o 'lugar do morto',
ao lado do condutor.
Mas daquela vez,
e para sorte tua,
a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC,
embora do teu lado.
A velha GMC do tempo da Guerra da Coreia,
que gastava cem aos cem...
e que acabava de fazer a inversão de marcha,
de regresso ao quartel,
em Bambadinca.

Outra filha de puta de mina,
não detectada pelos nossos picadores,
fora accionada, na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões,
a coqueluche do comando do batalhão.
Porra, camaradas,
a escassos metros da anterior,
já fora da estrada!

… À uma e meia da tarde
de um dia que não era sexta-feira 13,
de azar!

Estavas de piquete,
quando duas horas antes uma viatura nossa
accionara uma mina.
Um frágil burrinho, um Unimog 411.
Ia buscar o almoço para o pessoal do reordenamento
O condutor, o Soares, teve morte imediata.
O Furriel Fernandes, também da CCAÇ 12,
o alferes sapador Moreira e outro militar,
ambos da CCS do batalhão,
ficaram feridos, com gravidade…


Mas só depois reparei no velho Tenon,
no Ussumane,
no Sherifo,
mesmo ao meu lado,
a meus pés,
sem darem acordo de si.
E ainda no Quecuta,
no Cherno
e no Samba, nosso bazuqueiro,
arrastando-se penosamente sobre os membros superiores,
como lagartos cortados ao meio.

…À uma e meia da tarde
na estrada da morte,
com as palmeiras de Samba Silate
e o Geba ao fundo.

As duas secções
que seguiam atrás, na GMC,
tinham sido projectadas pela vulcão de trotil,
como se fossem cachos de bananas.
Caso se seguisse uma emboscada,
então seria um massacre.
Tu eras o único que tinha uma arma na mão,
mas inútil,
inoperacional,
encravada,
devido ao choque sofrido…


Não deixei de sentir um calafrio
ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG
e sob o matraquear das 'costureirinhas'
e das Kalash.

… Ali, à uma e meia da tarde,
em Nhabijões,
na Guiné,
far from the Vietnam.


Tinhas acabado de fazer o reconhecimento das imediações,
detectando o trilho dos guerrilheiros
que, durante a noite,
tinham vindo pôr as minas assassinas…
Eles faziam a guerra deles,
tão cruel e tão suja como a nossa.
Esse trilho, mais fresco,
acabava por confundir-se
com os usados pela população de Nhabijões
que a gente sabia
não morrer de amores por nós…


SOS, evacuação Ypsilon,
vou a correr para o heliporto,
sem soro,
sem garrotes,
sem pensos,
sem maqueiro,
sem mala de primeiros socorros!

...Numa luta desvairada contra o tempo,
na estrada Nhabijões-Bambadinca.


Era possível, entretanto,
que houvesse mais minas
pela estrada fora.
Ainda hesitaste
em mandar picar o terreno,
mais alguns metros em redor,
mas não podias perder nem mais um segundo,
para logo seguires de imediato
para os helis
que aguardavam os feridos mais graves.

Mais até do que a solidariedade
entre camaradas de guerra,
mais até que a minha amizade pelo Marques,
de repente o que me terá movido,
o que me deu força anímica,
foi o brutal sentimento do absurdo da morte,
do absurdo daquela guerra,
a raiva contra aquela guerra.

… À uma e meia da tarde
nessa maldita picada do inferno.

Foi uma corrida louca,
aquela,
na fronteira indefinida
que separava a vida da morte
na estrada de Nhabijões.
No primeiro Unimog que te apareceu à mão,
e que levava um carregamento letal de feridos.
Três deles estavam em estado de coma
e tinham como destino outro inferno:
o hospital de Bissau,
os Alouettes III roncando como o macaréu,
sobre o Geba, largo e medonho,
a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte
aos vinte e poucos anos de idade.

…No dia 13 de Janeiro de 1971,
num dia que nem era sexta-feira,
mas que foi de terrível azar,
às treze e meia da tarde,
quando o teu relógio parou
à saída da grande tabanca balanta de Nhabijões,
finalmente reordenada
e controlada…

Luís Graça

______________

(*) Originalmente publicado em: 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)

domingo, maio 10, 2009

Blogantologia(s) II - (81): Bela Helena, abelha de mel e ferrão

Vale de Frades, Lourinhã > Junho de 2007 > A lotaria da geografia e da história

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


O sexo em tempo de guerra (*)

Amorosa Helena,
pequena fula dengosa,
salva das garras do Islão
por zelosos missionários,
católicos,
apostólicos,
romanos,
mas não da faca da fanateca,
que te extirpou,
na festa do fanado,
o teu belo clitóris,
para te tornares o colchão de todas as camas,
a Vénus negra de batalhões inteiros,
a iniciadora sexual de tugas,
mancebos
que as sortes vieram arrancar às saias das mamãs,
a alegre,
a divertida,
a traquinas companheira de muitas farras de caserna,
correndo, nua e lasciva,
do regaço de tropas bêbedos que nem cachos,
para o abrigo mais próximo
quando às tantas da madrugada
soava o canhão sem recuo,
estoirava o morteiro 82,
disparavam os RPG
e silvavam as balas das Kalash!...

Bela Helena de Bafatá,
que sabias pôr na ordem
os arruaceiros pára-quedistas de Galomaro
que te batiam à porta a pontapé,
quando eu estava contigo,
deitado na tua liteira,
e me dispensavas pequenas gentilezas
- um ronco de missangas, vermelhas,
uma noz de cola,
uma cantilena da tua infância,
um punhado de mancarra seca ao sol,
uma talhada de papaia que trazias do mercado -,
sempre que eu ia a Bafatá
e procurava a tua companhia,
na melhor das hipóteses,
uma vez por mês,
no dia de folga dos guerreiros de Bambadinca…
Tu e as tuas amigas de Bafatá,
do Bataclã,
que tanto trabalho deram
ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins,
que nunca punha os pés fora da sua morança,
e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá,
o nosso querido Pastilhas,
que vivia 24 horas dentro do arame farpado,
no perímetro militar de Bambadinca,
trabalhando incansavelmente,
de bata branca,
em prol de uma Guiné Melhor,
que nos aturou mil e um travessuras,
bravatas,
praxes,
esperas,
serenatas,
tainadas,
emboscadas,
partidas de mau gosto,
brincadeiras estúpidas e perigosas,
bebedeiras de caixão à cova
e que sobretudo nos curou
de alguns valentes esquentamentos…

Destes e doutros males de amores,
dos milhões de unidades de penicilina
com que tu subtilmente te vingaste dos machos,
estás perdoada, Helena,
abelha do mel e do ferrão.
Afinal, quem vai à guerra,
dá e leva…
Tu curavas-nos dos males da alma,
o Pastilhas das mazelas do corpo…
Entretanto, quando a guerra acabou,
para mim
e para os demais tugas da CCAÇ 12,
por volta do mês de Março de 1971,
não tive tempo de te devolver
a pulseira de missangas vermelhas,
nem sequer de te dizer uma palavra,
um Adeus, até sempre,
um adeus, triste,
com saudade, morabeza,
essa coisa que os tugas nunca te souberam explicar,
mas sem regresso,
e sem lágrimas,
que Lisboa estava ali,
tão longe e tão perto...
Prometi guardar de ti
a doce lembrança,
das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas,
da tua voz rouca e sensual,
da tua fala encantatória,
do cheiro exótico do teu corpo,
das tuas sagradas funções de sacerdotiza
do amor em tempo de guerra…

Imagino que a tua vida não tenha sido fácil
depois da independência,
se é que lá chegaste,
com vida e saúde…
Se sim, não sei como viveste esse dia,
24 de Setembro de 1974,
não sei te raparam o cabelo,
ou se te apedrejaram, amarrada a um poilão,
ou se te violaram
ou se te renegaram para sempre,
que a pior das mortes
é a morte social.
Nunca mais tive notícias tuas,
mas, dez anos,
revendo mentalmente
a minha primeira viagem,
por terra,
em pleno chão fula,
do Xime até Contuboel,
onde os esperavam os nossos queridos nharros,
ao longo do interminável dia 2 de Junho de 1969,
o teu nome,
o teu rosto,
a tua voz,
o teu odor,
o teu corpo,
a tua púbis,
e as tuas gargalhadas, quiçá magoadas,
vieram-me à lembrança…
E essa lembrança tocou-me.

Lembrei-te de ti,
da história que se contava sobre ti,
passada em Ponta Coli,
entre o Geba e o Udunduma,
frente à vasta bolanha de Samba Silate,
agora seara inútil de capim alto,
com o cadáver do furriel vagomestre do Xime nos braços.
Lembrei-te de ti
e das minhas escapadelas a Bafatá…
Ia-se a Bafatá,
a bonita e alegre Bafatá colonial,
para limpar a vista,
entrar no café da Dona Rosa,
ver as manas libanesas,
comprar umas bugigangas da civilização,
comer o bife com ovo a cavalo na Transmontana,
dar um salto ao Bataclã
e passar pelo Teófilo,
para o copo de despedida,
antes de apanhar o último Unimog,
de regresso a Bambadinca...

Eram os únicos momentos do mês
em que eramos donos do nosso tempo,
em que a nossa liberdade não estava cercada
de arame farpado e minas,
nem pensávamos na emboscada de ontem
nem na operação de amanhã.
Também foste, à tua maneira,
uma heroína daquela guerra,
minha impossível amiga colorida,
separada pelos papéis
que nos obrigaram a representar
no teatro da tragicomédia daquela guerra…
Daí figurares,
contra toda a ortodoxia
(do teu povo, fula,
dos teus missionários, cristãos, que te queriam a alma,
dos tugas, putos de vinte anos,
que apenas te queriam o corpo,
dos revolucionários do PAIGC
que não te terão perdoado
o teu colaboracionismo com os tugas,
para mais sendo tu conterrânea do pai da Pátria,
o pobre do Amílcar Cabral
tantas vezes morto e remorto
ao longo destes anos todos),
daí figurares, dizia eu,
na minha galeria de heróis
e de heroínas…
Por direito próprio,
com todo o direito,
com o direito que ganharam as mulheres do teu país,
pobres,
as mais pobres dos mais pobres,
mas sempre dignas e corajosas,
apesar de ofendidas e humilhadas,
exploradas,
violentadas pelo sistema,
pela guerra,
pela dominância dos machos,
pelo imperativo da sobrevivência,
pela lotaria da geografia e da história…
Aceita esta pequena homenagem da minha parte.
Em contraparida,
dá-me o derradeiro prazer,
esse prazer tão terno,
de te ouvir soltar as tuas gargalhadas,
minha safada Helena de Bafatá,
onde quer que estejas,
...na terra,
no céu
ou no inferno!

Luís Graça

_________

(*) Publicado originalmente no blogue Luís Graça % Camaradas da Guiné > 9 de Maio de 2009 Guiné 63/74 - P4306: Blogpoesia (46): O sexo em tempo de guerra (Luís Graça)

sexta-feira, abril 24, 2009

Blogantologia(s) II - (80) O menino da escolinha do Fiofioli

Um dia os historiadores haverão de ganhar dinheiro
à nossa conta,
da nossa e dos pobres guinéus
que andaram, tal como nós,
com a canhota na mão,
no Fiofioli,
em Guileje
ou noutros sítios lá no "cu do mundo,
longe do Vietname".

Eu não estive no Fiofioli,
em Março de 1969,
no decurso da Operação Lança Afiada.
Já estava no Campo Militar de Santa Margarida,
com outros camaradas,
com guia de marcha para a Guiné,
aonde chegaríamos em finais de Maio desse ano
para formar,
em Contuboel,
a futura CAÇ 12,
uma companhia de "nharros", de fulas ...

E também nunca lá fui depois,
ao Fiofioli, no meu tempo.
Nem eu nem ninguém, que eu saiba.
Estivemos só nos arredores,
mas ainda longe,
em operações, com a nossa tropa-macaca.

Se algum de vocês, algum dia,
antes, durante e depois da guerra,
esteve no mítico Fiofioli
(que pena eu não poder pôr isto no meu currículo!),
peço-vos que me mandem o vosso testemunho,
alguma estória,
alguma foto,
alguma pulseira de missangas,
vermelhas,
algum caderno escolar,
mesmo sujo e rasgado,
alguma lágrima de algum menino,
balanta ou beafada,
que nesse dia,
em 15 de Março de 1969,
não pôde ir à sua escolinha,
como de costume,
debaixo do belíssimo poilão da sua tabanca,
porque teve de fugir
e cambar o Rio Corubal,
à pressa,
em pânico,
sob as bombas dos T-6
e dos Fiat G-91,
a metralha do helicanhão,
e os gritos dos seus pais e irmãos:
"tuga, tuga, gosse, gosse"...