quinta-feira, outubro 28, 2010

Blogantologia(s) II- (88): A Caixa de Pandora

A caixa de Pandora




(...Ou um poema panteísta contra a misoginia
No Dia Internacional da Mulher, 21 de Março)


* Luís Graça






Os deuses criaram a primeira mulher,
e puseram-lhe o nome de Pandora.
Dizem que foi por castigo,
como presente envenenado,
oferecido aos homens,
a quem Prometeu, o titã, tinha dado o fogo,
roubado aos céus.


Na sua fabricação,
à imagem e semelhança dos deuses,
trabalharam Hefesto e Atena,
sob as ordens do próprio Zeus,
e com o auxílio do resto do Olimpo.


Cada dividindade se esmerou
e lhe deu uma qualidade:
a graça,
a beleza,
a meiguice,
a paciência,
a persuasão,
a inteligência,
a graciosidade na dança,
o talento para a cozinha,
a destreza para os trabalhos manuais,
o amor maternal…


Porém Hermes, o pérfido,
inocolou no seu coração
o virús da traição e da mentira.


Zeus, o colérico e vingativo pai dos deuses e dos homens,
mandou então a sua obra-prima
para a terra.


Epimeteu, irmão de Prometeu, estava por este avisado:
- Do céu nunca virá nada de bom!
Nunca aceites nenhum presente divino…


Deslumbrado com a sua beleza,
Epimeteu tomou Pandora como esposa.
Em casa, ele tinha uma misteriosa caixa
que trouxera consigo do céu.


Pandora fora instada a nunca a abrir,
em circunstância alguma.
Mas a curiosidade feminina foi superior às suas forças.
… Lá dentro estavam todos os males e todas as doenças,
incluindo a peste (a pior das doenças),
que haveriam de afligir a humanidade,
até ao fim dos séculos dos séculos…


Mas no fundo da caixa, ficou ainda
um resto do recheio da caixa
o único elemento que não se chegara a libertar,
porque Pandora, assustada, acabou por fechar a tampa,
na última fracção de segundo …


E esse elemento era… a Esperança!
Apesar do erro irreparável,
com Prometeu, Pandora vai permitir aos homens
manter acesa a luz ao fundo do túnel,
manter vivo o fogo do conhecimento e da paixão,
ter direito ao futuro,
levá-los, enfim, a superar a sua condição animal…


Com Pandora, não somos definitivamente criaturas divinas,
somos assumidamente seres livres,
humanos,
mortais,
mas donos do nosso destino.


Com Pandora, tornámos irrisórios os deuses,
libertámos as suas criaturas,
humanizámos a vida e a terra…


Pandora não é a fonte de todos os males,
é afinal “a que tudo dá",
em grego.

sábado, outubro 09, 2010

Blogantologia(s) II - (87): A velha Amura dos tugas



A velha Amura dos tugas (*)
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu Bissau.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.

Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha,
em formatura,
nas suas fardas multicolores,
coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria
e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.

Ah! A velha Amura,
inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze,
incandescente...
Casamata,
prisão,
dormitório,
agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.

Eram onze
os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.

Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo,
tu, Osvaldo ? 

E tu, Vieira ?

E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Oio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados de branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.

Vejo mais à frente o Domingos,
o valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada,
em Madina do Boé.

E tu, Rui Demba Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do mítico Congresso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
suja e esburacada,
na capital da tua terra...

E o camponês balanta,
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a sua Kalash de contrafacção ?

Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história
de como venceram, afinal,
os vencidos.



PS - Há quem te espere, 'Nino',
no Panteão Nacional.

Luís Graça
Bissau, 7 de Março de 2008



Revisto em 8/10/2010


(») Originalmente publicada no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, II Série > 25 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3669: Blogpoesia (27): A velha Amura dos tugas (Luís Graça)