domingo, abril 06, 2008

Blogantologia(s) II - (66): O Parque dos Poetas do Isaltino

Cartaz do Parque dos Poetas

© Luís Graça (2005)


Originalmente publicado, no Blogue-Fora-Nada, como post de 3 Julho de 2005 > Blogantologia(s) - XXVII: O Parque dos Poetas .
Revisto, hoje, para poder ser dedicado à minha Joana, que faz 30 anos. E a quem há 14 anos atrás, eu escrevi a seguinte máxima singela, típica de um poeta de encomenda(s):

"a felicidade,
(...) se não me engano,
é também isso
de seres tu a construir
a tua própria vida
com e através dos outros
e às vezes contra os outros".


Parque dos Poetas do Isaltino

Poeta é quem tem
Uma estátua do Simões
No Parque dos Poetas
Mas também
As contas em dia
Nos Serviços Municipalizados
De Águas e Saneamento
De Oeiras.

Poeta não é
O Bocage, émulo de Camões
Que não tinha maneiras,
E, pior que tudo,
Dizia asneiras:
- Porra, atchiiim!
- Ai, tia, que ordinário,
Esse Ary.
Ah!, o Zé Carlos,
O Ary dos Santos,
O planfletário,
O pseudo-revolucionário,
O bardo
Do botequim!

Ser poeta não é
Ter os colhões...
In su situ
Como o Mário,
O Cesariny,
Que não quis, o parvo,
Ganhar o euromilhões
E entrar para a história
Da literatura do imobiliário.

Entrada para o Panteão Municipal de Oeiras

© Luís Graça (2005)










Em questões de género,
Aplique-se, entretanto,
O camartelo
Camarário,
Perdão, o regulamento municipal
Em forma de soneto,
Que manda atribuir quotas
Às senhoras:
- São cotas, senhoras, são cotas!
Para o caso são três, não mais,
Que foi a conta que Deus fez:
Natália, Sophia, Florbela.

- Mas que raio de país é este,
Em que a poesia é coisa de homens! -
Grita o almoxarife dos SMAS.
As senhoras, meu Deus,
Ficam sempre bem
Nas quermesses da cidade,
Nos jogos florais,
Nos bazares da caridade,
Nas feiras e mercados,
Na vida e na tela,
Nas telenovelas,
Nos lavadouros públicos,
Na vida-de-faz-de-conta,
No passeio das virtudes,
Na despedida dos soldados,
Na partida das caravelas para a Índia,
Nos funerais
E nas procissões.
Nos comícios.
Nas comixões.

Um século atrás
As nossas queridas poetisas
Teriam ficado à porta do parque,
Com botinha de pé alto
E saias de entrefolhos,
Com cliché tirado pelo Joshua Benoliel,
Capa na Ilustração Portuguesa,
E legenda a condizer:
"Não ficam bem as senhoras
Que se metem a doutoras".


Salvou a Natália
A honra do gineceu,
Ao trocar a poesia por comida
Que sempre enche a barriga:
"Senhores autarcas, sois a cidade,
E eu a cereja no cimo do bolo serei,
Não há pólis sem o parque
Dos sonhos que vos roubei".

Dantes os poetas, os machos,
De bigode farfalhudo
Ou de pálidas cores andróginas,
Íam para o Olimpo,
Laureados,
Ou para o Aljube,
Agrilhoados,
Ou para o Manicómio
Do Rilhafolhes,
Ferrados e dopados,
Ou para o Tarrafal,
Exilados,
Ou para o Sanatório,
Tuberculizados.
Para a Ilha da Madeira,
Os mais afortunados.
Ou para a Morgue,
Congelados,
Ou até para o Panteão Nacional,
Nacionalizados.
Conforme as vagas que houvesse
E o equilíbrio dos quatro humores
Do Senhor Intendente Geral.
Só a Sophia pediu para voltar:
Para passar os dias que não viveu
...Junto do mar.

Hoje o poeta,
Meus senhores,
Não sonha nem dorme
Nos bancos de jardim,
Ocupados pelos sem abrigo,
Os desistentes,
Os repetentes,
Ou como se diz agora
Os infoexcluídos...

Hoje o poeta vai directamente
Para o Parque,
De preferência já morto e cremado.
O Parque dos Poetas.
Das merendas.
Dos velhinhos
Que dão milho aos pombinhos.
Das criancinhas
Da escola, de bibe
Aos quadradinhos.
Dos desempregados
À espera do subsídio de
Desemprego
Ou do emprego virtual,
Do teletrabalho,
Da chamada do call centre,
E dos frutos da flexibilidade
Organizacional.
E a fazer contas
À puta da vida
Que está pela hora da morte.

Em vão, protestou
O Rosa,
O Ramos, o António,
Adjectivando a liberdade:
Mas que coisa horrorosa
Se ela não fosse liberdade... livre!

O Parque dos Poetas
E dos namorados,
Do arco e do balão
E das quadras
Ao Santo António,
Milagreiro,
Casamenteiro,
Brigão,
Brejeiro,
Fodilhão.

Porque a Poesia
Quando nasce não é
Para todos,
Terá já dito um estrangeirado,
O Conde de Oeiras
E futuro Marquês de Pombal
(Volta, Marquês, que estás perdoado!)
Aos eleitos e aos camareiros,
Atentos e venerandos,
Em soirée,
No seu paço,
Ali mesmo, junto à Marginal.

Homens de letras
Ou de cânones,
Os poetas lusitanos.
Míopes, nos seus fatos
Poídos e castanhos,
Cinzentões.
Só o Jorge Sena
Era engenheiro.
Naval. No papel.
Não consta que
Construisse ou reparasse
Embarcações.
O Torga, clínico.
O Régio, místico.
O O'Neil, publicitário,
E claro
O David Mourão-Ferreira,
Doutor de letras,
Universitário,
De capa e batina.
E o Pessoa, esse, coitado,
Era escriturário comercial.
Marçanos,
Cabouqueiros,
Coveiros,
Limpa-chaminés,
Cantoneiros de limpeza,
Calafates,
Estivadores,
Mineiros,
Calceteiros,
Picheleiros,
Almocreves,
Pescadores,
Barbeiros-sangradores,
Construtores civis
Ou outra gente
Dos ofícios mecânicos.
Nãoo há nenhum,
Que se saiba,
Que conste da lista imortal.
Dos poetas imortais
Do Parque do Isaltino.
Minto: há o Álvaro de Campos,
Guardador de rebanhos.
Mas esse não vi lá,
Porque é proibido pisar a relva
E pastar. E sonhar.
E sobretudo apascentar.
Guardador de rebanhos,
À porta da capital,
Parece mal,
Destoa.
Não dá,
Já não é para turista.
Não rima com coisa boa,
Não rima com Lisboa.
Não casa com a modernice
Da Oeiras futurista.

O poeta Manuel Alegre.

© Luís Graça (2005)



Nem o Alegre, o Manel,
Escapou, em vida,
Ao destino cruel
De ser transformado
Em réplica
Do homem de mármore.
Podiam ter-lhe posto,
Ao menos, numa mão, a pena,
E na outra a cana de pesca.
Há quem jure que é castigo
Para o ex-revolucionário
Da Praça da Canção,
Hoje homem de Estado,
Senador da República,
Bonacheirão,
Canastrão,
Arengando para a arraia-miúda do TagusPark:
"Em Nambuangongo, tu não viste nada!"...

Quem não viu nada,
Mas que riria
Até às lágrimas,
Se fosse vivo,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Da construção
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho,
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má catadura,
De má memória.

Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Genial,
Mas mais que morto
E enterrado,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um senhor autarca,
No seu feudo, no seu horto, no seu olival?


Forbela Espanca (1894-1930)

© Luís Graça (2005)



Alguém roubou
Uma pérola do colar
Da Florbela,
Tão excessiva em vida
Como na morte.
Alguma ninfomaníaca
Da tribo gótica,
Algum admirador secreto,
Coleccionador,
Adolescente,
Voyeurista,
Turista,
Visionário,
Cleptómano,
Antiquário,
Violador,
Sexista,
Misógeno,
Detective,
Homem aranha.
Ou quiçá
Algum promotor
(I)mobiliário,
O próprio dono da obra,
O empreiteiro,
O engenheiro,
O trolha,
O arquitecto paisagista,
O ajudante do escultor,
O fiscal,
O fisco,
O contabilista,
A mulher da limpeza,
O guarda municipal,
Eu sei lá!,
O homem do lixo
Ou até o morto da guerra colonial.

Outro tonto, senil,
Septuagenário,
É o Herberto, o Helder,
Que recusa viver
Com qualidade de vida
No Lupanário
Da poesia.
Porque ser poeta, sortudo,
É ser maior, ser mais alto,
Viver no enésimo andar do pensamento
Com vista para o Tejo e tudo.



Camilo Pessanha (1867-1926)

© Luís Graça (2005)



Por mim, confesso,
Gostaria de ter sido
Um simples Conservador
Do Registo Predial
Como o Pessanha.
E de ter escrito,
Não a fria Clépsidra,
Mas o Caleidoscópio
Lusotropical

Em mangas de alpaca.

Gostaria de ser poeta-funcionário,
Da autarquia local,
Ou do ministério da eternidade,
Com cama, mesa e roupa lavada,
Uma tença, mesada ou salário,
E ajudas de custo para poder sonhar
E ter tempo e vagar.
Gostaria de ter feito (e dito)
Um soneto
A letra gótica,
À mão,
À moda antiga,
Com punhos de renda,
Em papel azul, selado.
E de ter tido tempo
Para fumar ópio.
Na época das monções,
Em Macau.
E de imaginar
O eclipse total
Do Império Colonial,
Como um baralho de cartas monumental,
A desmoronar-se,
Do Minho a Timor.
Gostaria ainda de ter sido l
Laureado
Pelo Prémio do SNI
Do António Ferro.

Gostaria sobretudo
De ter dactilografado,
Em Courier, fonte 12,
Sem o mais pequeno erro
Nem rasura,
O Sentimento de um Ocidental
E de o ter posto no meu currículo
Existencial:

"Nas nossas ruas, ao anoitecer
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer".

Em Lisboa
Nem poesia má nem prosa boa,
Mas prefiro aquele verso,
Mais rasca,
Mais proleta,
Mais canalha,
Que evoca os construtores da cidade,
Tão bravos quanto boçais,
Vistosos nos seus fatos-macacos,
E que engrossavam as estatísticas
Dos acidentes de trabalho
Mortais:
"Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros".

Oliveira do Alqueva in su situ

© Luís Graça (2005)

Poeta maior da nossa modernidade menor,
Cesário, o Verde,
Não alcançou o Século
Da energia nuclear.
Da viagem à lua.
Dos amanhãs que o outro galo cantaria.
Da Festa do Avante.
Do cimento armado.
Do motor de explosão.
Dos tsunamis revolucionários.
Das alegrias dos futebóis.
Do triunfo da ecologia
E da googlização.
Da bomba que brilhou
Mais do que mil sóis
Em Hiroshima, meu amor.
O Século dos chips
E do chispe de porco liofilizado.
Do Spínola, prussiano,
De monóculo e bengalim
Nas bolanhas da Guiné.
Da farsa da história.
Da caixinha que mudou o mundo.
E que mundo!,
Basta puxar o autoclismo
E fazer glu-glu,
Par ires parar aos buracos negros
Do admirável mundo virtual.
O Século, e que século!,
O dos vestidos de fru-fru.
Da aspirina e da farinha Amparo.
Da Lili e do Caneco.
Do Taylor e do Ford on the road.
Do terror de Tianannmen.
Da Nossa Senhora de Fátima de Felgueiras.
Do Luís Moita aos microfones da Emissora Nacional:
- Rapazes, não cantem o fado!
O século dos comícios da Fonte Luminosa
Ou do povão do garrafão
No Pontal do Portugal sacro-profano.
O século do Portugal de Salazar,
Prometendo eleições tão livres
Quanto a livre Inglaterra.
E do O'Neil e do Ruy Belo.
E do Millenium BCP.
O Portugal do maneta.
E o Portugal futuro.

Cesário não conheceu a Amália
Nem a Mariza desta Lisboa que eu amo.
Não conheceu o Sá,
Talvez só o Mário,
Não o Soares, mas o Carneiro
A fazer o pino.
Não figura por isso
No Parque do Isaltino.

2 comentários:

Anónimo disse...

Voçê, Luís, tem a Graça de ser um vulcão de poesia...
Parabéns.

Anónimo disse...

poetas interessados em participar de uma antologia criada no Brasil pra rodar aqui e na Europa, favor responder este e-mail. conradoart@yahoo.com.br