segunda-feira, setembro 24, 2007

Blogantologia(s) II - (53): Rua da Conceição, nº 100, ou o poema do marinheiro sem mar

Região Autónoma da Madeira > Funchal > Baía do Funchal > 16 de Maio de 2007 > Réplica da caravela Boa Esperança.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Rua da Conceição nº 100: marinheiro sem mar

Português sem título nobiliárquico,
explorado
e oprimido,
suprimido,
reprimido,
duplamente comprimido,
retornado,
e agora prec[arizado],
quer dizer periférico e dependente,
pobrete e alegrete,
muito pouco enfático,
depois de perder o império colonial,
o último.
Sem os três DDD dos dedos da mão.
Que Abril já é Novembro.
Sem os cravos.
Sem os escravos.
Com o FMI à perna.

Advinha fácil, terna,
para um marinheiro
sem bote nem mar
mas os novos senhores da praça do comércio
ainda gostam do travo a sal,
maresia, canela, azebre,
bolor, patine e sangue
que a grande aventura dos avoengos,
burgueses,
lhes deixou na boca.

Pelo menos estas imagens e estes cheiros
são flores de estilo,
metáforas,
que ainda salpicam os seus discursos
gongoricamente socializantes.

Tuga,
chamavam-te os negros da guiné em crioulo
como quem chama filho da puta,
hoje demandas outras paragens,
vais por terra porque já não tens porto
nem naus
nem caravelas,
vai para o raio que te parta,
vai para a puta que te pariu.

Seis milhas marítimas são um lago
para as crianças brincarem
e já não há rei
nem roque
para poderes clamar aqui d’el-rei,
para não perderes o norte,
para apelares à real justiça
ou tão só para poderes morrer,
com cama,
comida
e roupa lavada
e ainda com a extrema-unção,
no real hospital
de todos os santos.

Mas não estás só
nem órfão,
que a europa, dizem, está contigo.
De qualquer modo
não perdeu o gosto pela história,
trágico-marítimas,
pelas anedotas
salpicadas de sangue, suor e lágrimas,
a par das picantes,
além das de escárnio & maldizer.

Agora, por exemplo,
falas no tigre de são bento
que era de papel
e tinha um amigo em belém,
rodeado de quarenta piratas de perna de pau
que haviam trocado a cruz e a espada
pelo garfo e a faca do gambrinus.

Português, enfim,
de seu nome,
filho de gente ilustre,
ilustrérrima,
cuja origem se perde na noite dos tempos
ou nas manhãs de nevoeiro.
Com alguns sarracenos, judeus e pretos
pelo meio,
a dar cabo da árvore genealógica,
a estripar a estirpe,
a sangrar a pureza do sangue.

bip
bipolar
bifurcação
bis bisar bisca bilhete bissexto
banco
banco português
banco intercontinental português
plural pluricontinental pluracial
rua da conceição 100
onde trabalho para a administração fiscal

baixa pombalina
15 de fevereiro de 1977.

Recordações
do império colonial
que eu não consegui defender
até à última gota do meu sangue...~
I'm sorry.
Em que repartição da pátria
é que poderei apresentar
as minhas desculpas ?

Mas onde é que acaba, afinal,
o passado
e começa o futuro,
ponto de interrogação
e fim de citação.

Um poeta sem mensagem.

Lisboa, Fev 77. Revisto em Set 07.

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