domingo, novembro 27, 2005

Blogantologia(s) II - (17): Com Brueghel, domingo à tarde

Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.

Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.

Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas,
A sacola às costas,
O bife ao domingo,
O bacalhau com grão às sextas-feiras,
A Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão,
A Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
O supremo heroísmo
De alguém que morre para te salvar,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda,
E tinha mamas grandes
E que viria a morrer, coitada,
De cancro da mama…

Havia as festas, as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
A bolsa lacrimal,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
O carrocel,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Fortes e valentes,
Como os seus pais e os seus avós
tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum.


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas e os abrunhos,
O pão cozido no forno a lenha.
Comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores.
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dava tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede.
Menino com vocação circense,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino.








O Tio Silvano

© Luís Graça (2005)


Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Os carros de pão,
As promessas,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’Adelina
Contra o mau olhado,
O samparo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A bruxa de São Bartolomeu,
Ou Samert’meu
O santo que pisava a seus pés
Um diabo negro como o carvão....
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.


E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado pouco ou nada heróico de patriotas,
Vagamente republicanos,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar.

Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona .
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
nem o correio azul
nem a Internet
e o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes.
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conhecia um carteiro,
o ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E, fora disso, meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?


E ao alto, a cima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morreu para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.



Lourinhã: finais dos anos 40.
Jogava-se à bola no largo do convento...
© Luís Graça (2005)











Havia a bola, o hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
No largo do coreto da minha aldeia.
E a senhora professora Dona Helena
Que te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.

Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra
Que te vem de fora,
Arremessada por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
Que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe


Jogava-se à bola
Domingo à tarde.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe.
E o louco.
E o beato.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O provedor da Misericórdia.
Os ricos, os remediados e os pobres.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.





















Quando eu era pequenino... mais a mana

© Luís Graça (2005)



Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
A escola do Conde de Ferreira,
O carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa,
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Havia a vida privada,
Exposta na via pública.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
E a barraca onde só iam os homens feitos.
E as virtuosas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
no lendário Bairro Alto
da formosa Lisboa
onde se ia de camioneta uma vez na vida.



Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca.
E que morreu virgem
e chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.





















1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os aliados, as potências do eixo...



Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro
Ou a Marinha Grande
E os operários em contrução.
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
E o Álvaro Cunhal,
foragido,
grande herói da classe operária,
e imnimigo mortal
da Nação.
Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do João:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.
De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
e de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante.
Lembro-me…
Enfim, havia o Império,
Do Minho a Timor,
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.


O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os amigos, os aliados, as potências do eixo,
a Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das beiras,
Dos alentejos.
Fugindo da fome
E dos cavalos da GNR.



Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…
E também nunca gostei do alvoroço do povo,
dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes
Na maré vazia
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas.
Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinés.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.

Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde.
O Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Chamar a partêra
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A agonia do porco.
O sangue.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As partidas que os grandes pregavam à pequenada,
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os beijos roubados na palha do trigo,
O peixe a secar ao sol no telheiro,
O pilau que o menino exibia para criada,
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos, no Inverno,
Os filhos dos pescadores de Peniche.
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro. As galinhas. A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.

O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.


Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo, mas o teu sangue.
Tomavámos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai, misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou )
Tinha uma explicação para tudo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite
Junto à Igreja do Castelo.





















Eu e os meus queridos nharros (1969)

© Luís Graça (2005)



Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
As meninas da rua do clube,
Aos serões
E meteram-me na camioneta do Claras
(Ou era dos Capristanos ?)
Com destino a Santarém.
Eu e o meu baú,
terrivelmente sozinho
ante os dilemas da fé,
da vida,
da carne
do pecado,
da morte,
da ressurreição eterna
Lá atrás ficava o mar,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem sete, oito, nove, dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.

Revisto em Julho de 2007. L. G.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Blogantologia(s) II - (16): Cá vamos andando

Publicado originalmente Blogue-Fora-Nada, em post de de 16 de Novemnbro de 2004 > Portugal sacro-profano - XXI: 'Ala malek' ou o tráfico do Cairo

Revisto nesta data

Cá vamos andando


Às vezes este país parece-se com o Cairo,
Com o caótico tráfico rodoviário do Cairo.
Sem código da estrada.
Sem regras.
Sem semáforos.
Sem polícia sinaleiro.
Uma perigosa montanha russa,
Um carrossel desengonçado.
Mas mesmo assim a coisa anda, flui,
E a gente sempre consegue chegar a alguma parte.
Pode não ser o sítio certo,
Mas sempre chega a alguma parte.
Ou pelo menos tem essa ilusão de óptica.
Que o importante é chegar, sobreviver, dizem-te.
- Cá vamos andando -, responde-te o Zé Portuga,
Quando lhe perguntas como está.
No Portugal sacro-profano,
A gente lá vai andando.
Ora bem, ora mal.
Conforme o tempo e os humores.
Conforme o caminho e as pedras.
Ou até os companheiros de viagem.

Às vezes a gente tropeça e cai,
Para logo se levantar
E prosseguir a marcha,
Ora lenta ora brusca.
Agora o pobre do país tenta,
A todo o custo,
Não perder a última carruagem
Do comboio chamado Europa.
Há quanto tempo?
Às vezes tenho a impressão
De que essa correria
Atrás do comboio da Europa
É um filme que dura há já muito,
Há anos, há séculos, quiçá desde sempre...
Um daqueles filmes, mudos,
Que a gente via no nosso cinema de bairro.
Quando havia cinema de bairro
E filmes mudos
E a Fénix da Europa renascia das cinzas
E eu vivia num país orgulhosamente só.
- Pobrezinhos mas orgulhosamente sós,
Meu menino! - dizia o padre e
A senhora professora.

Mas tal comparação é injusta e ofensiva
Para com os portugas,
Para com o Zé Portuga,
Que é, afinal,
O nosso único (ou último) herói nacional.
Na realidade, é a política deste país
Que se parece com o caótico trânsito cairota...
É a política, são os políticos,
Os seus dirigentes, a sua elite...
É a gestão da coisa pública,
Ou a falta dela,
O laxismo, o cansaço,
A falta de imaginação,
A perda de valores,
A ausência de liderança,
A opacidade das regras
Ou melhor, o seu vazio,
A ligeireza,
A falta de lata, de vergonha, de carácter...

Às vezes apetece-me gritar,
Ao homem do leme,
Ao motorista do táxi,
Ao condutor do carro de bois,
Ao simples peão,
A mim próprio:
- Ala malek!, mais depressa, homem,
Que se faz tarde,
E que ainda perdes
A última carruagem do último comboio!(1)

_________

(1) Ala malek, em árabe, quer dizer mais depressa.

É sempre bom, em qualquer esquina do mundo, ter meia dúzia de palavras do patois local na ponta da língua... Como, por exemplo, desenrascanço, em Lisboa. Ou esquema, em Luanda.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Blogantologia(s) II - (15): O amor em Agosto

Publicado originalmene no Blogue-fora-nada, post de 18 de Agosto de 2005 > Blogantologia(s) - XXIX: Viagens nas minhas praias imaginárias . Revisto nesta data.

O amor em Agosto

Praia de Paimogo.
Estas pedras estão aqui
Há milhões de anos.
E eu não sei dizer-te
Por que é que estas pedras
Estão aqui
Há milhões de anos.















Uma enseada, uma cratera, um lago.
A Praia de Paimogo foi talhada
A ferro e fogo.

Mas se eu fosse deus,
Todo poderoso senhor
Ou até vulcão,
Tê-la-ia desenhado,
Com muita ternura,
Sob a forma de coração.
Só para ti, meu amor.

Estas pedras estão aqui
Muito antes dos dinossauros
Evoluírem e dominarem
O planeta azul.
Que afinal não era assim tão azul
Quanto o pintavam.

Visto da janela do teu quarto,
Em Candoz,
O vale era o mundo
E era verde,
Tal como em A Cidade e as Serras,
Do Eça de Queiroz.
Muito antes do mar,
E do pôr do sol sobre o mar,
Muito antes de saberes
Onde ficava a praia da minha infância.















Nem vale.
Nem pombas.
Nem praia.
Na Praia do Vale de Pombas,
À maré cheia, à praia-mar,
Há apenas um fio de água doce
Que mantém os cordões umbilicais
Do infinitamente pequeno da vida
Ligados ao infinitamente grande
Dos corpos celestiais.

Vale de Pombas:
Aqui caiu uma chuva de meteoritos.
Um dia hei-de lá levar-te.

Praia de Vale de Frades.
Mas que sei eu de cronogeologia
Para te dizer que estas pedras estão aqui
Há tantos milhões de anos ?!
Sei apenas que, de acordo
Com toda a teoria das probabilidades,
Estas pedras vão ficar aqui,
Muito depois da minha morte,
Muito depois da extinção da minha espécie.














Praia da Peralta.
O melhor do mês de Agosto
É enterrar a cabeça na areia
E escutar.
O mar.
A voz rouca do mar.
Que chegou até aqui,
Muito antes de mim e de ti,
E que vai ficar aqui
Muito depois de mim e de ti.

Não há farol
Na Peralta,
Para eu poder avisar a malta.
Enquanto o teu país arde
Ou o que resta dele.
Na Peralta passam navios ao largo.
Como manadas de elefantes.



















Porto Dinheiro
Um espesso nevoeiro
Cobre as falésias
Em Agosto.
Até aqui chegavam
As galés romanas.
E os barcos dos piratas.
Não sei se o sítio tem padroeiro
Ou orago.
Nem sei se por aqui passava
O teu caminho de Santiago.

Praia de Vale de Frades.
À volta de um prato de sardinhas,
A vida pode não ter
Metafísica nenhuma
E mesmo assim ser
Pura,
Emoção pura,
E simples,
Prazer simples.

Mandei pôr mais um prato
Na mesa, sem toalha,
Virada para o Mar do Serro.
Não me esqueci do pão,
Das sardinhas, das batatas,
Dos pimentos, da salada e do vinho...
Esperava por ti,
Que eras a oficiante da vida.

















Na Peralta,
Na malhada grande,
Eu poderia ter sido feliz
Entre apanhadores de lapas e de ouriços.

Mesmo sabendo
Que estas pedras estão aqui
Muito antes de mim,
Há milhões de anos.
Mesmo não tendo
Todas as respostas
A todos os porquês.


No Porto das Barcas
Não há ciência,
Apenas sapiência,
Que é a mais antiga das virtudes.

Porto das Barcas:
Um navio fantasmagórico
Entra pela terra adentro.

Praia do Caniçal:
Podia trepar
Pela minha árvore genealógica
Até ao paleolítico superior.
Pelo leito dos rios
Que sobem, secos,
Até às grandes fossas marinhas.

Porto das Barcas.
Daqui avistamos as Berlengas.
E a Nau Catrineta
Que já nada tem para nos contar.

Porto Dinheiro.
Aqui deito contas à vida.
Aqui conto as marcas
Do tempo.
Aqui lanço a âncora.
Aqui fui carpinteiro de naus.
Aqui, Plínio, o Velho,
Poderia ter fundado a paleontologia.
Mas, não:
Morreu em 69 a observar
A erupção do Vesúvio.


Praia do Valmitão
Podia ter sido ilha de corsário
Ou baía de tubarão.
A ter bandeira,
Só a preta,
Com caveira.

Praia da Areia Branca:
Não te conseguiram amar
Sem te possuir e violar.
Livro Sexto, de Sophia.










Praia do Areal:
Há uma seta
Que indica o sul.
O sol.
A zona dos chapéus.
O espaço rigorosamente vigiado
Dos amantes.
O risco de cancro da pele.
A rota da seda.
A sede.
Os amores de verão.
A morte.
Saio noutra estação.

Volto à Peralta
Para partilhar contigo
A magia do sol posto
No Atlântico norte.
O amor em Agosto.















Fotos: Praias do concelho da Lourinhã

© Luís Graça (2004-2005). Direitos reservados.

Blogantologia(s) II - (14): Por mor da nossa saúde

Originalmente publicado no Blogue-fora-nada, post de 17 de Março de 2005 > Blogantologia(s) - XXIV: Bons augúrios para a governança da coisa pública

Revisto nesta data


Por mor da saúde de todos nós.
Por mor da boa governação da coisa pública.
Por mor do nosso futuro.
Por mor da nossa memória futura.
Por mor dos vindouros e dos perdedores.
Por mor dos historiadores
Que escreverão a história
Em nome dos vencedores.
Por mor dos que vierem depois
De eu fechar a porta.
Por mor dos guardiões da Torre do Tombo.
Por mor de quem de direito.
Por mor dos pagantes.
E dos não-pagantes.
Por mor dos actores e dos espectadores.
Por mor dos marginais-secantes.
Por mor do mercado e da bolsa de Lisboa
E da casa forte do Banco de Portugal.
Por mor do meu querido Portugal S.A.
Que não quer dizer Portugal Sociedade Anal.
Por mor dos loucos e dos menos loucos.
Por mor dos poetas
Que têm um pouco de gestores.
E dos gestores
Que têm um pouco de médicos.
Mas também dos médicos
Que têm um pouco de loucos.
Por mor dos economistas
Que gostariam de governar o mundo.
Este mundo e não o outro.
Sem esquecer os políticos
Que gostariam de mandar nos economistas,
Nos gestores, nos médicos e nos doentes.
Por mor daqueles dos políticos
Que falam em nome do povo.
E daqueles que gostariam de mandar no povo.
Por mor do povo de esquerda, de centro e de direita.
(Abaixo a unicidade nacional!).
Por mor dos da lista de espera
Que desesperam de esperar.
Por mor dos que vão morrer esta noite
Nos Hospitais S.A.
E nos Hospitais S.P.A.
E amanhã nos Hospitais E.P.E.
Por mor dos que foram hoje
Ao serviço de atendimento permanente
Do meu centro de saúde
E que deram com a porta na cara.
Por mor dos cirurgiões que afiam a faca
À espera dos da lista de espera.
Por mor dos doentes agudos.
E dos doentes crónicos.
E dos hipocondríacos.
E dos doentes da saúde.
E dos utentes da indústria da doença.
Por mor da saúde doente e das doenças saudáveis.
Por mor da saúde emprezarializada.
Por mor das vítimas da guerra, dos terramotos, dos tsunamis,
Da fome, da peste e do bispo da nossa terra,
De que Deus nos livre!
Por mor dos simples, dos utentes, dos pacientes, dos clientes,
Dos beneficiários, dos misericordiosos e das crianças.
Por mor das catorze obras de misericórida,
Sete espirituais e sete corporais.
Por mor dos meus (con)cidadãos, os remediados e os ricos.
Por mor dos pobres, dos tristes,
Dos descrentes, dos desempregados,
Dos velhos, dos sós, dos esquecidos
E dos desconsolados
Da minha rua, do meu bairro, da minha cidade, do meu país.
Sem esquecer os apátridas
E os que perderam a identidade.
Por mor daqueles de quem um dia se disse
Que eram os bem-aventurados
Porque deles seriam o reino dos céus, amen.

Por mor do meu fornecedor da revista cais
no semáforo da esquina da rua
Da alegria com a avenida da liberdade.
Por mor da minha médica de família
Que contava os dias
Que lhe faltavam para a reforma.
Por mor do médico do gabinete ao lado
Que se enganou no curso que queria tirar
E que está a atender os gajos da propaganda médica.
Por mor do boticário do meu bairro.
Por mor do meu barbeiro-sangrador.
Por mor de mim e de ti, meu amor.
Por mor do meu psicanalista, do meu psicoterapeuta,
Do meu confessor e do meu curandeiro.
Por mor do meu médico do trabalho
E do meu técnico de higiene e segurança do trabalho.
Por mor do ergonomista que está a desenhar
O meu sistema técnico e organizacional de trabalho.
Por mor dos habitantes da minha casa inteligente do futuro.
Por mor da minha cartomante preferida.
Por mor de ti, feiticeira.
Por mor dos mais distraídos.
Dos votantes.
Das debutantes.
Dos amantes.
Por mor do meu patrão
Para que Deus lhe conserve a saúde e a riqueza.
E lhe aumente o empreendedorismo
E a capacidade de inovação.
Por mor dos meus dinossauros de estimação.
Por mor dos médicos da noite.
Dos médicos na noite.
Da minha querida Médis.
Por mor dos mercadores de sonho
Que trazem com eles a peste onírica e bubónica.
Por mor do meu rico seguro contra todos os riscos.
Por mor do Estado,
Que se quer menos Estado e melhor Estado.
Por mor dos contínuos, porteiros e seguranças do Estado.
Mais os cobradores de impostos.
E os pagadores de promessas.
E os guarda-costas das figuras de Estado.
Por mor do Estado de todos nós,
Sem pompa nem circunstância.
Por mor da nossa jovem democracia.
Por mor dos gestores e administradores dos serviços de saúde.
Por mor dos que passam as noites e os dias a pensar
Na reforma do serviço nacional de saúde.
Por mor dos reformadores de sistemas.
De todos os reformadores.
E das vítimas das reformas.
Dos reformados e aposentados.
Dos humilhados e ofendidos.
Das viúvas e dos órfãos.
Por mor da nossa frágil saúde.
E dos vírus que hão-de vir.
E do mal gálico.
E do mal italiano.
E do mal espanhol.
E do mal americano.
E do mal chinês.
E do mal português.
E do Ribeiro Sanches
Que curava os males de amor
Na Rússia Imperial.
O amor em carne viva.
Por mor das doenças emergentes e re-emergentes
Que nos querem matar.
Por mor das galinhas
E da gripe dos comedores de galinhas.
Por mor do virus da gripe das aves do céu
Por mor dos codificadores
De grupos de dignósticos homogéneos de doença.
Por mor dos marcadores biológicos do Homo Sapiens Sapiens.
E sobretudo dos grandes arquitectos do genoma humano.
Por mor do meu antepassado troglodita
Que era recolector-caçador
E que quando almoçava nunca sabia
Onde e o quê iria jantar.
Por mor do meu Professor de economia
Que me lembra que não há almoços grátis.
Nem entradas grátis
No céu, no purgatório ou no inferno.
Qe se fazem, cá se pagam.
Por mor dos actuais e futuros ministros da saúde.
Por mor dos ministros do futuro.
Por mor da utopia do futuro sem ministros.
E até dos ministros sem futuro.
Por mor dos servidores do povo,
Para que nunca esqueçam que ministro
Vem do latim minus, pequeno.
Para que os deuses iluminem os nossos governantes
E os pescadores que andam perdidos no mar alto.
E os pecadores dos sete pecados mortais.
Por mor dos nossos governantes e dos seus governados.
Para que o canto e o voo dos pássaros lhes sejam favoráveis.
Por mor do Zé Portuga.
Do Zé Manel.
Do Zé, simplesmente.
E para que, eu, Blogador, me confesse
E nunca perca de vista
O essencial.
Por mor da minha terra, Portugal.
Por mor de todos nós,
Como se diz em terras de Entre Douro e Minho.
Por mor de nós e dos que hão-de vir atrás de nós.
Por mor da parca herança que lhes deixamos.

terça-feira, novembro 08, 2005

Blogantologia(s) II - (13): Descansa em paz, Iero Jau

Publicado originalmente no Blogue-fora-nada, post de 10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau


Descansa em paz, Iero Jau


A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.

Para mim, a guerra é
A aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
Para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
De matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
Os dias que faltam para a peluda.

Trinta e tal anos depois,
Venho dizer-te
As palavras que ninguém te disse
No teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Ieró Jau,
Meu herói!
Soldado atirador
Do 2º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
Que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12.
Companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
Os meus camaradas,
O meu bando de primatas sociais,
Territoriais, predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
De Herr Spínola, o prussiano,
Como eu lhe chamava,
Ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
São outros contos, outras estórias,
Outros ajustes de contas
Com as nossas doridas memórias.

Dscansa em paz,
Iéro Jau,
Debaixo do poilão secular
Na tua tabanca,
No chão fula,
Belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
Lá para os lados de Galomaro ? (1)

Desculpa-me ter esquecido
O nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
E o rosto das tuas mulheres,
Agora órfãos e viúvas,
Sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis.
Já não dão o milho painço nem o fundo,
Nem a mancarra
Nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra.
Voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
Poisados no alto da tua morança,
Cheirando a morte,
Pressagiando a desgraça

Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia (2).
Morreste em linha.
Aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
Próximo da Ponta do Inglês.

IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
Por comodidade,
Por lassidão,
Por economia de análise.

Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
De cidadão português.
Eras um fula preto, um fula forro,
Não creio que fosses futa-fula.
Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
Mais os teus camaradas,
Que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares, tiros de salva,
E a bandeira verde-rubra dos tugas
Por cima do teu caixão.
De pinho.
Do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
À maneira dos teus.

Portugal ? Ainda te lembras,
Os senhores que vieram do norte
E do lado mar.
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história. Nem de geopolítica.
No sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
Eu deveria saber o nome da tua aldeia,
No chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Ieró Jau.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
Talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
Mas faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
Confesso que chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
Teu irmão,
Pela mão.
E que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
Soldado-atirador
De 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
Para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
Da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
O que primeiro que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jau.
Chorei de raiva.

Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te djubi,
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os djubis à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe.
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo.

E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Ieró,
Morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
Na tua cara.
Acidente de serviço
No auge da batalha,
Quando avançavas em linha,
No assalto ao acampamento
Do IN,
Levando pela corda
O teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
Ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga (3),
Tão crente como tu,
Tão observador dos preceitos corânicos
Como tu, meu querido nharro.

E agora, Ieró,
Que foste poupado
À humilhação da derrota
E não viste o teu país
Sentar-se de pleno direito
À mesa do mundo...
Que farias tu com esta independência
Contra a qual lutaste
Sem querer,
Sem saber,
Sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
Que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
Esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
Não chegaste a aprender o alfabeto latino
E a juntar as letrinhas e ler,
Com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
Não de morte matada, como a tua,
Mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
Devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
Na parada de Bambadinca,
O poderoso régulo de Badora,
Tenente de milícias,
Que havia trocado o cavalo branco
Da gesta heróica do Futa Djalon,
Por uma prosaica motorizada japonesa
De 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado
E de uma harém de cinquenta mulheres,
Uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
Era filho dele,
O Umaru e mais soldados da CCAÇ 12.

Hoje os heróis do passado sucumbem
Sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
Tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
Às portas do templo da deusa Europa,
Em Ceuta e em Melilla,
Em Lisboa ou em Paris.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
Desde esse dia já distante
Em que a tecnologia da guerra
Ou a lotaria do ADN
Te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
Três meses depois de jurares bandeira
E te comprometeres, por tua honra,
A defenderes uma pátria que não era tua,
Até à última gota do teu sangue ?

E do Malan Mané não tenho notícias,
Se é isso que queres saber,
Mas duvido que ele tenha sobrevivido
Aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
À laia de despedida:
Não sei se um dia
Ainda terei coragem de voltar
À tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
Gostaria de perguntar pela tua aldeia,
E de procurar-te
E de ter tempo para conversar contigo,
Só tu e eu,
Debaixo do teu poilão.

Luís Graça
_______________

(1) Vd. carta da Guiné (1961), dos serviços cartográficos do exército.

(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(3) Vd. post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

segunda-feira, novembro 07, 2005

Blogantologia(s) II - (12): Luanda (re)visitada

Publicado originalmente no Blogue-fora-nada, em post de 11 de Julho de 2004 > Blogantologia(s) - XVI: Luanda revis(i)tada


Revisto nesta data

Créditos fotográficos: © Luís Graça (2004)








Luanda revis(i)tada

Não vi flores,
Não vi acácias vermelhas,
Dessas rubras acácias de Benguela,
No teu imenso muceque;
Não vi o esplendor celebrado
Da tua baía,
Nem senti o sortilégio da tua ilha dos amores,
Ó cidade de Luanda,
Outrora tão jovem e tão bela,
E que a gente nunca esquece.

Porém, no teu rosto (re)visitado
Pelas rugas velhas
Da guerra, da pobreza e da malária,
Descobri diamantes em estado puro
No teu olhar de criança
Perdida em viagem imaginária.



















De modo nenhum te quereria
Em postal ilustrado,
Decadente e saudosista,
Com carimbo de correio pós-colonial:
A restinga do Mussulo ao pôr-do-sol,
A laguna, o mangal, a marginal,
E o estúpido turista em férias,
No Coconuts, na ilha, elitista,
Ou na piscina do Hotel Tropical!




Não li sequer os graffiti do FMI,
Gravados a duro pau de giz
Nos muros dos palácios da cidade alta,
Proclamando urbi et orbi
Que doravante toda a malta
Seria rica e feliz!

Há muito que os kaluandas partiram,
Deixando atrás de si,
Com um misto de saudade e de glória,
O calor húmido e fraterno
Da grande nação crioula.
Mais os imbondeiros que resistiram
À seca, à fome, ao inferno,
Ao lixo, à sida, à história.


















O cheiro fétido do humano
Viaja nos candongueiros
Que atravessam de lés a lés
A tua rede de túneis-formigueiros,
As tua entranhas,
O teu tutano,
A tua essência.
Alguém poderia achar essas correrias loucas
Se não soubesse quem tu és,
Mas tu tens o teu tempo e a tua medida,
Ó cidade das mulheres empreendedoras,
Peritas na arte da sobrevivência.

Um enorme exército de formigas obreiras,
Com os jerricãs de plástico à cabeça,
Leva o fio da água da vida,
Tão preciosa quanto parca,
Ao teu ventre de Jocasta,
Mãe África, mãe de kixikila,
Zungueira, matriarca,
Moça reguila, parideira,
Quitandeira, kinguila.




















Na praia dos pescadores
Há meninos, brancos e pretos,
Pé descalço e calças rotas,
A chutar a bola às balizas da sorte.
Poderão não vir a ser uns senhores,
E sorrir como o Mantorras,
O rosto espalhado em outdoors pela cidade.
Mas contarão, decerto, aos seus netos
Como souberam fintar a morte
Desde a mais tenra idade.

Mãe África, mãe coragem,
Para quem pouco te basta,
Mesmo se muito tu queres
Daquilo a que tens pleno direito:
Cidade revis(i)tada,
Sem mapa nem roteiro,
Simples lugar de passagem,
Onde um litro de gasolina, imagina!
Custa tanto quanto um pão,
Vinte kwanzas.

Poderei dizer em Lisboa, se quiseres,
Que o melhor de ti, Luanda, terra quente,
É a tua gente,
A quem mando um chicoração:
As tuas infatigáveis mulheres,
E as tuas ternas, eternas, crianças.

De Lisboa, um Kandandu, para ti, Luanda!

Luís Graça


Glossário de termos do falar local:

Candongueiros >

Os endiabrados táxis colectivos de Luanda. Param um qualquer sítio e levam sempre mais um passageiro para além da sua lotação máxima Cada viagem custa 30 kwanzas. O termo vem de candonga (contrabando). "Inicialmente o contrabando de peixe seco. Só muitos anos mais tarde se passaria a usar o termo candongueiro para designar os contrabandistas de diamantes ou, mais tarde ainda, os novos taxistas luandenses do chamado processo dos 500" (Segundo leio no sítio de um brasileiro sobre os países e comunidades de língua portuguesa) .

Imbondeiro

Também conhecido por n´bondo (Adansonia digitata, Lin.):

Kaluanda

Nome antigo, colonial, dado ao habitante de Luanda.

Kandandu

Abraço (Plural: Jindandu). Ver outras expressões usadas nas saudações em kimbundu.

Kimbundu >

Considerado o maior grupo etnolinguístico de Angola (c. 25% da população na costa oeste e no norte), a seguir ao ovimbundu (c. 37%, a sul), mas à frente do bakongo (13%) (Estas são as três principais línguas de Angola, todas elas pertencentes ao grupo bantu).

A língua oficial é, como se sabe, o português. No Ciberdúvidas da Língua Portuguesa há uma interessantíssima nota de Rui Ramos sobre as relações nem sempre fáceis entre o português (colonial, dominante) e o kimbundu (ou quimbundo, o falar das gentes de Luanda-Malanje). Termos usados hoje pelos nossos jovens, como cota (dikota, pessoa mais velha) são provenientes do kimbundu.

Sobre as questões de grafia (kimbundu ou quimbundo), ver igualmente a resposta do angolano Rui Ramos, especialista em línguas africanas, no mesmo sítio. Não se deve confundir, no entanto, o kimbundu com o calão de Luanda (caso de bué, e outras expressões que se ouvem na noite lisboeta).

Kinguila >

Rapariga ou mulher que, no mercado paralelo, se dedica ao câmbio de moeda. Em geral, os maços de kwanzas e de dólares são guardados nos seios. Este negócio era tradicionalmente dos zairotas, habitantes do Zaire. Segundo o portal Netangola, numa página com preciosas dicas para os homens de negócios estrangeiros em visita a Luanda, "one can often find in the streets of the city the typical Kinguila - the seller of money - who normally offers the best quotation. This practice is forbidden by the authorities and offers some risks".

Kixikila >

Em kimbundu, quer dizer contribuição, em dinheiro, para um dado fim colectivo. Em África, em geral, e em Angola, em particular, é aquilo que se designa pela expressão inglesa Rotating Savings and Credit Associations (ROSCA), um sistema informal de poupança e crédito, um grupo de ajuda mútua, liderado em geral por uma mulher, a "mãe de kixikila".

O pequeno grupo, de cinco a dez elementos, tende a ser constituído por pessoas que estão ligadas entre si por laços de amizade, parentesco, vizinhança ou profissão. Cada elemento faz periodicamente uma determinada contribuição para um fundo comum que é depois utilizado rotativamente por cada um, com uma taxa de juro nula ou de valor reduzido. Na ausência de sistemas de crédito bancário acessíveis à generalidade da população, o kixikila voltou aos hábitos dos kaluandas como forma de atenuar ou reduzir o impacto da pobreza. O kixikila está hoje vulgarizado, não só entre as vendedeiras, quitandandeiras e kinguilas, mas também nos serviços públicos e nas empresas (vd. Neto, S. - Kixikila não é uma lotaria. Economia & Mercado. 19 (Maio-Junho de 2004). 40-42). Vd. também: Ducados, H.L.; Ferreira, M.E. (1998) - O financiamento informal e as estratégias de sobrevivência económica das mulheres em Angola : a Kixikila no caso do município do Sambizanga (Luanda). Lisboa: CEsA - Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento. Instituto Superior de Economia e Gestão. Universidade Técnica de Lisboa. 1998 (Documentos de Trabalho, 53).

Kwanza >

Moeda local. 1 dólar equivale a c. 85 kwanzas. O cacete (tipo de pão) custa cerca de 20 kwanzas (Julho de 2004). Consultar também o sítio oficial da República de Angola.

Muceques >

Bairros populares degradados de Luanda.

Quitandeira >

Vendedora de rua (ou de mercado), em geral de produtos hortofrutícolas. Vem de quitanda, um termo kimbundu que significa expor (determinados produtos para venda), e, por extensão, feira ou mercado. Há um belíssimo poema de Agostinho Neto sobre a quitandeira, que vem no seu livro Sagrada Esperança (1974): "A quitanda. Muito sol /e a quitandeira à sombra / da mulemba. /- Laranja, minha senhora, /laranjinha boa!"...

Zungueira >

Vendedor ambulante, uma figura típica da economia paralela de Luanda. Em geral é do sexo feminino, mas também há cada mais jovens e crianças do sexo masculino. Estima-se que 70% da população de Luanda, em idade activa, seja zungueira. Ninguém sabe ao certo qual é a população actual da cidade e periferia: estima-se que possa chegar aos 4 milhões (a maior parte deslocados de guerra), ou seja, mais de 1/3 da população angolana actual, estimada actualmente pela CIA em c. 11 milhões de habitantes. Do verbo zunguar (andar para cima e para baixo, circular tentando vender alguma coisa).

As zungueiras abastecem-se em mercados como o Roque Santeiro ou o Kikolo, onde não é aconselhável, por razões de segurança, a visita do turista estrangeiro. Considerando a sua densidade populacional e o drama do seu quotidiano, Luanda é apesar de tudo uma cidade com uma baixa taxa de criminalidade. Sobre o comércio informal, a figura da zungueira e a arte de sobreviver em Luanda, veja-se uma excelente reportagem assinada pelo jornalista e sociólogo Paulo de Carvalho (paulodecarvalho@sociologist.com, na revista Economia & Mercado. 19 (Maio-Junho de 2004).34-39.

Blogantologia(s) II - (11): A mão invísivel do mercado

Publicado originalmente no Blogue-foira-nada, em 19 de Janeiro de 2005 > Blogantologia(s) - XXIII: O Comércio Justo. Revisto reformulado nesta data.

Andei por aí
À procura de lojas
Do Comércio Justo:
Queria comprar dez cêntimos de equidade;
Acabei por encontrar uma, a custo,
Já à saída da cidade.

Ao lado, havia um hipermercado,
Com a bandeira de Portugal;
E, mais à frente,
Uma Loja dos Trezentos;
E a seguir, uma outra, a do Chinês;
E às tantas perdi-me,
Só de contar as lojas
De artigos de marca
Que havia na Grande Superfície Comercial.
Pensei cá para mim:
- Eh!, já não vives na era de Quinhentos,
O planeta está mais quente,
O mundo está mais global, mais plural,
E até mais louco,
Ó Português.
Falta-te o cheiro da pimenta e da canela,
O sangue, suor e lágrimas
Das fábricas de vão de escada.

Entrei na loja do Comércio Justo,
E ouvi estórias
De gente de mil e uma cores e sabores:
- Sou uma pobre viúva da Índia
E faço bonecos de pano,
Comprem, comprem, meus senhores,
Ganham mais vocês num só dia
Do que eu em todo o ano.

Dez cêntimos de equidade
Embrulhada em papel de jornal...
- Essa coisa da equidade
Que o senhor vem à procura
Eu não vendo nem nunca vi;
Não é por ter a pele escura
Mas a verdade, a verdade,
É que só conheço a ruindade
Da ilha do Haiti
Onde nasci.

Equidade não é justiça,
Mas igualdade de oportunidades:
- O pensamento pode ser profundo,
Mas que me adianta, a mim,
Ser bonita e mestiça,
Sem direitos nem liberdades,
Neste sítio do fim do mundo.

A OIT vem agora falar
De trabalho decente...
- Tu, estrangeiro,
Que me acusas de dumping social,
Por extrair o carvão da mina:
Silicótico, ex-mineiro,
Fiz a revolução cultural
E mudei p'ra mensageiro
Do Grande Negócio da China.

A seguir entra em cena
O dono da loja,
Que parece ser o ideólogo de serviço:
- Tu, meu amigo,
Que és um consumidor responsável,
E vives na parte do planeta
Que é a mais habitável,
Põe sempre o olho na etiqueta,
Que o desenvolvimento sustentável
É a minha e a tua meta.

Oiço algures um apelo:
- Sê solidário comigo
Que estou há dias sem vender,
E sem dinheiro para comer,
Compra-me esta estatueta,
Que o politicamente correcto
Não enche a barriga da gente;
Já sei o que me vás dizer,
Que se a peça é de pau preto,
É mau para a ambiente.
E se alimento pai e mãe,
Na Indonésia ou no Brasil,
Dizes-me que é crime também,
Por ser trabalho infantil.

Fico sem jeito,
Ao ouvir todas estas estórias
E lições de geografia:
- Não sabes onde fica o Benim,
Mas podes ajudar-me
Ao meu povo, aos meus irmãos,
Não quero que tenhas pena de mim,
Basta ambos darmos as mãos.

- A mão invísivel do mercado,
Diz o meu professor economista,
Que encontro no piso superior,
Há-de chegar a todo o lado,
Mais devagar ou mais depressa,
De avião, de carro ou a pé,
E poderá fazer-te até
Um pequeno capitalista.

Fico baralhado
Mas, para resumir a lição,
Ouvida na loja do Comércio Justo,
Presto um pouco mais de atenção
Ao meu amigo mandinga da Guiné-Bissau:
- Tu és consumidor, solidário,
Eu sou produtor, acreditado,
Do Comércio Justo és partidário,
Só posso ficar-te muito obrigado.