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domingo, fevereiro 13, 2011

Blogantologia(s) II - (89): História (de)vida: Vila, vida, com o mar em frente, entre cabeços (para a Alice, companheira de meia vida)





Lisboa > Estuário do Tejo > 5 de Fevereiro de 2011 > Fim de tarde...


Foto: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados





História (de)vida:
Vila, vida, com o mar em frente, entre cabeços
(para a Alice, companheira de meia vida)


A vida no campo não era vida,
Não era a vida a vila,
A cidade, o campo.
Nem as tuas leiras,
Os teus solcacos,
Os teus montes.
Não era a vida devida.
Querida,
Esperada,
Sonhada.


Mas o que é a vida,
Meu bem ?
Pensando bem,
A vida no campo até tem
Ou tinha
O seu lado terno,
Ma non troppo.
Eu gostava do campo,
Nas férias grandes,
Do ar puro dos pinhais e eucaliptais
Do Vale de Geões
Que faziam bem aos pulmões,
Dizia o João Semana
Lá na minha terra,
Bacharel de medicinas
E de ervas medicinais.
Em contrapartida,
Odiava a colher de pau,
O óleo de fígado de bacalhau.
E as bolas de carne em sangue
Enroladas em açúcar,
Metidas pela goela abaixo.
Lembrar-me-iam mais tarde a guerra,
E a anatomia dos corpos
E a fisiologia do horror.
Temia, sobretudo,
E temia que me pelava,
As bruxas, à noite,
Debaixo dos lençóis.


Ele há coisas na vida do campo
Que eu nunca saberia explicar.
A lufa-lufa, a freima,
Os grandes trabalhos colectivos,
A ceifa,
Os miasmas das doenças,
O trabalho de sol a sol,
Trabalhar que nem um mouro,
Trabalhar que nem um boi,
Trabalhar que nem um galego,
Trabalhar que nem preto.
Temia a pata dos poderosos.
E dos seus cavalos e dos seus mastins.


Não, nunca trabalhei no campo.
Mas gostava da vida no campo
Onde não vivi.
Nasci ao som dos moinhos de vento
E do gemido nas redes dos barcos à vela.
Gosto do campo,
Quando o sol nasce,
Quando o sol se põe.
Tenho um pensamento piedoso
Para a parteira que me aparou.
E para o padre que me baptizou.
E para a professora que me ensinou
A ler, escrever e contar.
E me levou a primeira vez
À cidade.
Grande.


Gosto do campo,
Não sendo camponês
Como tu foste camponesa.
O campo,
A vindima,
A colheita,
O riacho,
As pedras no leito do rio,
O inverno,
A invernia,
O cheiro a estrume,
As batatas com pele,
A febre dos fenos,
Os amores ardentes,
Os colchões de palha,
A lareira no inverno,
Os lençóis de linho,
As tamancas,
As sardas escaladas,
As miúdas de sardas
E ranho no nariz,
Os carapaus secos,
A raia cozida,
A esterqueira,
A neve que nunca vi,
A matança do porco…


Ah! A matança do porco do teu imaginário,
Que o melhor era a bexiga do porco
Para os putos que nada sabiam da vida,
Nem das suas sete partidas.
Nem da guerra anunciada.
Para os putos jogarem à bola,
Os pés descalços
No campo da debulhadora do trigo.
A dois quilómetros da vila.
No Nadrupe.
Na Quinta do Bolardo.


No fundo, o que sabias tu da vida ?
O que sabes ?
Não é preciso ser bem pensante,
Que a vida é mal passada,
Pensada,
Prensada,
Uff! Puxá vida!
Na cidade,
Na vila,
Ou na cidade e no campo
A vida, a vila, é apenas
A estratégia da aranha,
A cilada da morte.
Por tédio,
Asfixia,
Overdose,
Aflição,
Desassossego,
Insónia,
Erosão,
Irrisão,
Depressão da paisagem
Por montes e vales.
A via estreita da vida na vila no campo
Ou na cidade.
A erecção.
A evicção.
A força centrífuga da morte
Na curva da vida.


Mal pensada a coisa
Da vida indevida,
Vida de cão na cidade das sete vidas,
Sete Colinas,
Capital,
Capitólio,
Tudo somado igual
A sete fôlegos de gato
No sobe e desce do bairro,
Entre o pau e o fogo da lareira.


Trespassa-se a vida,
Traspassa-se o corpo,
Trapaça de vida,
Em vila sossegada com vista de mar.
Prensa prensada puxada
Bem parecida a vida na vila,
Apetecida,
No campo de cebolas do talho
Que se comiam em azeite e sem alho.
Na tua terra, Candoz.
Na terra de todos nós,
O Portugal de lés a lés.
Pensando nos parentes embarcados,
Nos Brasis, nas Terras Novas,
Ganhando o pão que o diabo amassava.
Ou nos filhos mobilizados,
Feitos soldados,
P’r’a guerras do império.
Índia, Angola, Moçambique, Guiné…
A malga do vinho tinto verde
Entre os camponeses do norte.
O pão, o centeio, o milho,
A casa farta,
A mesa farta,
O presunto,
O salpicão,
A salgadeira que mata.
Alguém sabia lá da cartografia da morte
No Cacheu, ou no Oio, ou no Cantanhez ?!
O sal,
O colesterol,
A tensão essencial,
A vidinha.
Pior é a saudade que rói e que mata.


E agora que não há razões para pensar
Que a vida no campo é
O corpo de delito,
Eu grito
Que a vida está pela hora da morte
Vida, morte, ex-exaequo,
Tensão,
Macho e fêmea,
Misógina a cidade,
Macho, marialva, o campo
Ou o pré-conceito
da minha civilização judaico-cristã.


Saudades ?
A vida no campo era bem passada
Como o bife ao domingo,
Que tu ganhavas fazendo o pino
No Talho do Xico.
No tempo em que a vida no campo ou vila,
Que diferença!,
Era a tua infância.
Vida, vila com o mar em frente,
Entre cabeços.
As Berlengas ao fundo.
A eterna errância
Do mundo.
Foi lá que te vi,
Foi lá que te conheci.


(Para ser lida no dia dos namorados, 14/2/2011)

segunda-feira, setembro 01, 2008

Blogantologia(s) II - (67): Se tens galinha perdês, não a mates nem a dês

Se tens galinha perdês, não a mates nem a dês

Como era simples a vida da camponesa
Que ia ao monte buscar lenha
No carro de bois.
Ou que, de saco à cabeça,
Ia levar o grão de centeio
À azenha.
E que abria as pernas, depois,
Ao seu homem e seu amo,
No meio do campo de milho.

Que quadro,
Que pintura,
Que beleza,
Tardo-naturalística,
O desta humilde portuguesa,
Sem rosto,
Sem nome,
Sem registo,
Sem trilho.
Sem a mística
Nem a estética do Movimento Nacional Feminino.
Porra e lenha,
É quanto a venha
.

Como era simples e brutal
A vida da mulher do campo
No tempo em que ainda havia
A distinção socioantropológica
Entre a cidade e o campo.
E havia o carro de bois,
E a maçã, biológica,
E o império colonial,
E a costeleta de Adão
E as criadas de lavoura eram violadas
Em cima da meda da palha de centeio.
Enquanto os bois gemiam
E as rodas do carro chiavam
E o abade pregava:
Freiras e frieiras
É coçá-las e deixá-las
.

Como eram imutáveis as leis
Que regiam as relações
Entre machos e fêmeas,
Entre fidalgos e rendeiros,
Entre donzelas e donzéis,
Entre soldados e capitães,
Entre ricos e pobres
Entre operários e patrões.
E cada um tomava o seu lugar
No desconcerto das nações
Ou no palco do teatro da vida e da morte.
Se queres conhecer o vilão
Mete-lhe o mando na mão.


Como era estupidamente alegre
A infância, breve,
No tempo em que a sardinha
Era para três.
E sobreviva o mais forte.
E o galo cantava
Para a galinha perdês.
E a vida fiava-se e tecia-se
Linha a linha.

Como era curta a vida,
A esperança de vida,
E certa, tão certa, a morte.
Muita saúde, pouca vida,
Porque Deus não da(va) tudo.

Ou noutra variante, feminista:
Se tens galinha perdês,
Não a mates nem a dês.

sábado, maio 20, 2006

Blogantologia(s) II - (27): Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo.

Lisboa > Terreiro do Paço > 2005 >

A entrada da Rua Augusta e a colina do castelo vistas de uma janela do Ministério da Agricultura. "Da minha janela" diz ela.

© Maria Helena Moutinho (2005)

Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo (1).


Lisboa, sete colinas,
o rio, uma paixão,
que deram origem
à arte e à ciência da olissipografia.
E a Helena era uma das meninas
que ficava bem,
à janela,
recortada em pórtico manuelino
da Casa dos Bicos
ou no laranjal
da estória da Nau Catrineta,
desenhando castelos de Espanha
nas areias de Portugal.

Lisboa, menina e moça,
tu podias não saber nada
de geografia,
nem da didáctica da educação de adultos,
nem da fisiologia do coração,
nem de desenho a três dimensões
nem do risco sísmico
nem do simples risco de existir e de estar viva.
Mas sempre tiveste por perto
o estúpido pirata de perna de pau,
vesgo e maneta,
irrompendo os teus sonhos
com o pesadelo do sentimento de um ocidental
na ponta mais fina de uma espada
guardada na Torre de Belém.

Lisboa, o casario, o castelo,
e rente ao chão,
a devoção, a procissão
da Senhora da Saúde,
que nos valia nos anos de peste,
nos meses de guerra,
nas semanas de fome
e nos dias de depressão,
a depressão funda, cavada,
do vale de Alcântara até Xabregas.

Lisboa e os livros, os incunábulos,
os alfarrabistas da Baixa-Chaiado,
as pedras, as cantarias,
as traves mestras
que nos falam da cidade
em construção,
dos arquitectos,
dos trolhas,
dos estucadores,
dos pintores de tabuletas
e de retábulos dourados,
dos aguadeiros
do poço do mouros,
do Carmo e da Trindade
de pedra e cal,
dos engenheiros hidráulicos,
dos agrónomos,
dos agrimensores,
dos silvicultores do pinhal d’el-rei,
dos santos inquisidores,
das freiras e das frieiras
que é coçá-las e deixá-las

no cemitério de todos os prazeres.
Ah, aí onde a vida acaba
na ponta de uma naifa
no Bairro Alto
das fadistas e dos seus chulos.

Mas não de tédio,
minha querida,
diz o pregão da varina,
enquanto houver o 28 para a (Des)Graça
com bilhete de ida e volta,
as Escadinhas do Duque
ou a Calçada do Combro
e os escombros do terramoto
por subir, trepar ou escalar.
E os filetes de alfaquique
ou peixe-galo
com açorda de ovas.
E os pastéis de Belém
e o bife dos ricos
à Marrare
e as iscas com elas
nas carvoarias dos galegos
e o cheiro a carvão e a sardinha,
linda que tresanda
nas ruelas e vielas dos bairros populares.
E o Portugal very tipical
do António de Ferro
com que te quiseram tramar
e as sécias e os peraltas da Belle Époque
que a Avenida da Liberdade
acaba na rotunda das públicas virtudes
e no beco dos vícios privados.

A terna, eterna, Olissipo
onde o azul do céu é único
e te leva a todos os caminhos do infinito.
Ulisses sabia-o
e guardado estava o segredo
do mais fundo do tempo.
E por isso fundeou no estuário do teu Tejo
e trouxe com ele a Helena,
troiana,
transmontana,
fenícia, grega,
cartaginesa, romana,
celta, iberíssima,
goda, visigótica,
moura, berbere, preta,
bárbara, bela, pérfida Helena,
santa e penitente,
globetrotter,
errante, caminhante,
mística, algures perdida,
loucamente perdida
nos caminhos de Santiago.

Que te importa
se Lisboa já não é
uma praça forte,
uma bolsa contra os valores
daqui d’ el-rei
que o paço e o terreiro,
a trono e a régia cabeça,
tremem e estremecem,
entre o Martinho e a Arcádia,
na iminência de um ataque
terrorista.
Dantes chamava-se anarquista,
à bomba regicida,
quando a palavra de ordem era
a bolsa ou a vida.
E não havia as avenidas novas,
do Ressano Garcia,
nem o risco dos engenheiros,
nem a construção a custos controlados,
nem o prémio Valmor,
nem o fundo de mão-obra,
nem o Dow Jones ou o NASDAK.

E estavas tu, Helena,
postada à janela,
com vistas largas
para o casario, a sé, o castelo,
o mar da palha,
a rua do ouro e a da prata,
o augusto senhor dom José a mata-cavalos,
a serra, a arrábida fóssil,
a armada outrora invencível,
a ribeira das naus,
o turista, o voyeurista,
o motorista
do senhor ministro sem pasta
nem forragem para o gado na canícula do verão,
os heróis menores, anónimos,
que vieram morrer na praia,
o velho do Restelo,
que já foi praia sem bandeira azul,
o velho do Restelo agora ainda mais velho
e mais bota de elástico,
o Cesário e a sua idiossincracia,
o Cesário, verde e rubro,
nos estádios dos eurofutebóis,
mais o Eça de Queiroz,
o estrangeirado,
que te amava à maneira dele,
a Sofia, a deusa, a olímpica,
o Almada e os seus marinheiros sem futuro,
o Ary, provocateur,
panfletário,
o luminoso Eugénio de Andrade,
a Amália e a nossa estranha forma de vida,
e tantos outros poetas que te cantaram.
Ah, e o Pessoa, subindo e descendo o Chiado,
de braço dado contigo,
recitando-te o heterónimo:
A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz.
Mas como é que eu sei se teria sido feliz ?

Esquece o Álvaro de Campos, o sedutor,
e deixa-me pôr-te a caminhar
pelos caminhos ínvios e íngremes
desta cidade-sortilégio,
que tu amas, que eu amo, que nós não amamos…
E se, contudo,
há um privilégio,
é sempre o da amizade e do amor,
é esse de poder ter-te
ao alcance da mão e do coração,
entre Paço d’Arcos e o Cais de Sodré,
ou de permeio,
entre o teu blogue e a caixa de correio.
É, enfim, esse privilégio de poder dizer-te:
Como é bom rever-te…
Helena, Lisboa, Tejo e tudo.


________


Nta de L.G.:

(1) Querida Helena: Este é o meu contributo possível para tua festa, o meu e sobretudo o da Alice, que me deu mil e uma dicas sobre ti, como amiga tua de há muitos anos.

A pretexto da prenda que escolheram para te dar (O Livro de Lisboa / coord. Irisalva Moita. Lisboa: Livros Horizonte. 1994), glosei e explorei a tua paixão por Lisboa, o mesmo é dizer, a tua incessante procura da vida, da beleza, do amor, da liberdade, da poesia, do prazer, da felicidade...

Daí a festa que te fizeram na noite de 19 de Maio de 2006, na Casa de Cabo Verde, os teus amigos e amigas de longa data, que trabalharam contigo estes anos todos. Não foi um festa de despedida, mas de (re)encontro(s). Não existe, de resto, essa palavra, despedida, no dicionário dos amantes e dos amigos.

Como escrevi no teu blogue (Caminhos), fiz votos para que algum deles ou alguma delas, te tenham dito nessa noite, ou ouvido:
- Como é bom rever-te, Helena, Lisboa e Tejo e tudo.

Trata-se, se bem reparares, de uma ideia do Álvaro de Campos, um verso que eu adaptei do famoso poema Lisbon Revisited, de 1926.