quinta-feira, abril 16, 2009

Blogantologia(s) II - (79): Rua da Conceição nº 100, Lisboa, 1976

Lisboa > Terreiro do Paço (antes do terramoto de 1755) > Azulejos (pormenor) > Casa do Alentejo > 17 de Janeiro de 2009.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Rua da Conceição nº 100, 1976

Blogarias.
Papéis velhos,
amarelecidos,
desenterrados do baú.
Literalmente,
do baú do sótão da casa e da memória.
Outros tempos.
Outros estados de alma,
se é que a alma tem estados,
como a matéria
que é sólida, líquida ou gasosa.
Em 1976, o mundo ainda era
a preto e branco.
Não havia televisão a cores.
Nem computadores pessoais.
Era a pré-história de qualquer coisa
que mal se advinhava.
Havia a IBM
e as main frames
e as máquinas da Bull
e o cartão perfurado.
E a guerra fria,
que ironia.
Escrevias numa maquineta
de dactilografar,
levezinha,
daquelas portáteis.
Imperial, inglesa, vitoriana.
AZERT ou HCESAR ?
Não, não tinha certificação de qualidade.
Eras estudante de sociologia.
Um safado,
Um sacana,
Um semi-privilegiado
Do hemisfério norte.
Trabalhador-estudante.
Ex-combatente
Da guerra colonial.
Com sorte.
E com culpa por ter tido sorte.
Trabalhavas na Rua da Conceição,
nº 100.
Na Baixa.
Num velho prédio pombalino.
Ao serviço do fisco.
E do seu projecto de modernização.
E apanhavas o já famoso 28,
o eléctrico amarelo da Carris,
para ires almoçar a casa.
Moravas nas traseiras da Infante Santo,
no bairro da Lapa dos pobres,
dos criados da velha nobreza decadente.
Numa parte de casa de estudantes
e de obscuros professores de economia
que um dia irão vingar-se
do triunfo do mercado.
Travessa do Possolo, meu caro,
Nº 17, 19 ou 21,
já não me lembro.
Tinhas posto um anúncio no Página Um,
uma pasquim esquerdista,
dirás tu quando tiveres 70 anos.
Tentando a sorte de arranjar
uma casa ou parte de casa.
Que quem casa, quer casa.
Que a crise de habitação já não é de agora,
vem de trás,
desde que congelaram as rendas
e prometeram o bacalhau a pataco
à rapaziada da classe operária.
Ainda te recordas
que o anúncio (pessoal) começava assim:
"A um capitalista
que leia o 'Página Um' por engano"…
Arranjaste uma parte de casa.
Estudavas à noite.
Eras casado.
Não tinhas filhos.
Mas houve um senhor ministro,
O Sottomayor,
o Cardia,
paz à sua alma,
que decidira mandado fechar o teu instituto,
o ISCPS.
Em nome da normalização
democrática.
Tinham tirado o U ao velho ISCSPU,
depois da queda do império colonial.
Sanearam as 'múmias', os profes.
Decapitaram o conselho científico.
Importaram latino-americanos para ensinar
a sociologia da mudança, da revolução.
Os assistentes e os estudantes tomaram o poder.
Alguém escreveu nas paredes do Palácio Burnay,
que era o homem mais rico de Portugal
no virar do Século XIX.
Nada que não se tivesse visto antes,
noutros tempos,
noutros lugares.
O poder tem horror ao vazio.
O Sotto Mayor Cardia tinha horror ao vazio.
Foste para o ISEG,
Onde continuaste a martelar
O economês e o sociologuês.
Outros como o pobre do Salgueiro Maia
ficaram por lá,
na Guerra Junqueiro,
para acabar a antropologia.
Para gerir mais presídios transformados em tristes museus.
Imagino que ele fosse bom em etnologuês,
que é o dialecto que nos resta,
à porta de entrada da Europa.
Mas os sociólogos e os economistas foram corridos.
Acabaste, no 3º ano,
por ir parar ao ISCTE,
do senhor engenheiro Sedas Nunes.
Algumas destas blogarias
são dessa época, de 1976/1977.
Outras são até mais antigas.
Tinhas-lhes perdido o rasto.
Já não te reconheces totalmente
no que escrevias nessa época.
Não tens que te reconhecer,
que um homem não é de pau,
nem cara de pau,
nem de pau santo,
nem de cera,
nem de marfim.
Nem é feito de uma só peça,
a canivete,
Mas não rejeitas esses escritos
nem vás branqueá-las,
nem muito menos sorteá-los.


o tempo era de outono
e de 1976
o lugar poderia ser portugal
porta do cavalo da europa

exercícios de estilo,
atenção meus senhores
isto é um assalto,
façam exercícios compensatórios,
mãos ao ar,
cabeça direita,
nada de truques,
impressões de viagem no eléctrico
Estrela rua da Conceição,
fichas de leitura
na diagonal,
escrita automática,
contributo para um novo modo de produzir
e de viver
faits divers
a ideologia que se consome todos os dias
à mesa da boa consciência,
o direito de cagar ao ar livre,
consagrado na constituição,
já,
reclamavam os velhos anraquistas,
notícias necrológicas,
Max Weber, Durhkeim,
a epistemologia,
histórias aos quadradinhos dum maginal-secante,
boletim metereológico
da revolução que o não será,
revolução pr’amanhã.
Prá mamã.
Mas quem pediu uma revolução pr’ amanhã, prá mamã ?
Cartas clandestinas
ou nem por isso,
folha dominical para os dias cinzentos da semana,
informações pidescas ou pós,
relatório do crime,
pequena enciclopédia da via sexual
dos sete aos setenta anos,
o ânus horrível de 76,
a bancarrota,
que o FMI vem aí,
o arroto da banca
nacionalizada, nossa,
diziam os bancários agora banqueiros,
títulos de caixa alta
o tédio em tempo de paz,
a imaginação para a prisão,
recortes de A a Z,
curriculum vitae oprimido e explorado,
cadastrado,
o livrinho cor de rosa dos maus pensamentos,
transgressões íntimas,
o elogio do colchão ortopédico,
misérias e grandezas do(a) capital,
blá blá,
o livrinho vermelho dos maoístas
onde a explicação do mundo
cabe numa metáfora,
peças em 1 acto (sexual),
fogo sobre o revisionismo
e o social-facismo,
parecer sobre o estado calamitoso do reino,
a arte de fugir ao fisco,
os contos do vinho tinto,
a autofagia,
o fantasma do Pessoa
na tabacaria da esquima,
no Martinho da Arcádia,
ali tão perto,
ou a economia política
ao alcance de todas bocas,
proletas de todo o mundo (re)uni-vos.
ou melhor: os destroços das batalhas perdidas
dos últimos dois séculos.
Vous aimez Marx ?
A angústia em papel celofane,
poesia,
amor,
ao domingo,
na Rua da Conceição nº 100,
um pardieiro,
arte,
guerra,
solidão,
solidariedade de classe,
revolução de manhã, sol à tarde,
como a eira de sequeiro
e a horta de ragadio:
misturem bem e bebam frio!
Haraquiri dum petit-bourgeois,
aqui e agora
comem-se castanhas assadas
no jardim da Estrela.

PS - Nesse tempo não havia velhos.

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