quarta-feira, janeiro 25, 2006

Blogantologia(s) II - (24): (Não) fumo, logo existo

Versão (modificada) do post inserido no Blogue-fora-nada, de 17 de Novembro de 2003 > Blognecos - IV: (Não) fumo, logo existo

poema neo-realista: eu, fumador, me confesso

mais um dia mundial do não fumador.
global.
nacional.
regional.
local.
só não o foi na minha freguesia.
nem no tasco que eu frequento.
nem na fábrica onde trabalho.
nem no meu bairro (social)
onde não há trabalho decente para a gente.
nem na rua do monóxido de carbono
que é a minha.
nem na minha casa
em que o tabaco é o xanax
do mulherio.

dizem-me que se aperta o cerco
aos fumadores.
que pelas estatísticas são
os que ainda não trabalham
mais os que já trabalham
e os que estão na casa dos trinta
e mais os que já deixaram de trabalhar.
(os que ficaram pelo caminho
ou na ponta final da linha de montagem).

ouvi o telejornalista de serviço
(fez-me lembrar o porta-voz
do tribunal do santo ofício
que condenou à fogueira o tetravô
do meu tetravô, cristão-novo).
o inquisidor-mor malha nas mulheres portugas
que estão a estragar as estatísticas sanitárias.
diz o papagaio:
os portugas ainda podem orgulhar-se,
(ao menos, valha-nos isso!),
de serem os menos fumadores da eurolândia.

repete o papagaio:
não fumar está na moda.
é fixe.
os portugas que não fumam ou deixaram de fumar
estão na moda.
são fixes.
eu, fumador, de maço e meio,
pecador me confesso:
não quero estar na moda.
não quero ser fixe.
quero e não quero deixar de fumar.
mas temo o cerco.

cerco, é isso.
os tempos são bons para apertar o cerco.
aos fumantes.
aos novos párias sociais.
aos novos inimigos da ordem pública.
o pretexto pode ser a nova peste branca.
a pandemia da gripe.
o direito à saúde.
a economia da saúde.
os direitos dos não fumadores.
o fumo passivo.
as finanças públicas.
o endividamento das famílias.
o cowboy da marlboro
que era gay e morreu de cancro.
a nova ética do trabalho.
a produtividade do trabalho
e a competitividade das empresas.
a identidade da nação.
a cultura do tabaco.
os superiores desígnios do estado.
a poluição tabágica que,
além dos pulmões dos colarinhos azuis
e do resto do corpinho da gente,
dá cabo da pintura dos tectos e das paredes,
do sistema de ar condicionado,
dos equipamentos,
dos circuitos dos computadores,
das mother boards,
dos chips,
das placas gráficas,
dos neurónios dos colarinhos brancos e dourados,
dos estofos do carro do patrão,
da pele da gaja do patrão,
do clima organizacional da empresa,
da missão, dos valores, da estratégia
do ranking de portugal no mundo.

o tabaco que mata meio milhão de eurolandeses por ano.
morrem que nem tordos,
dizem,
diz o sanitário de serviço.
doze mil, falando só de portugas.
e o mulherio a dar cabo da estatística,
diz o telepapagaio.

não vi, todavia,
as empresas portuguesas seguirem o exemplo
das suas congéneres multinacionais
que operam cá no burgo.
como a ibm ou a siemens.
não vi os senhores gestores
engravatados lá da minha tasca
virem à televisão dizer com orgulho:
somos mais uma smoke free company.
eles não têm lata para o fazer.
porque antes disso teriam que dar o exemplo.
e mostrar que também dão exemplos
de boas práticas noutras matérias
como a proteção ambiental,
o apoio aos órfãos e viúvos
dos operários que morreram a trabalhar,
a proteção da saúde e segurança dos trabalhadores,
a consulta e a participação do zé portuga,
a garantia do trabalho decente,
o sentido de responsabilidade social.
da empresa.

a propósito:
alguém sabe explicar-me
o que é isso de trabalho decente,
vida decente,
salário decente,
condições de trabalho decentes,
cuidados de saúde de decentes,
ambiente decente,
educação decente,
habitação decente ?
também eu quero viver
decentemente
e morrer docemente.

hoje é dia mundial do não fumador.
uma vez por ano todos os anos.
só não o foi na minha freguesia.
nem no tasco que eu frequento.
nem na fábrica onde trabalho.
nem no meu bairro (social)
onde não há trabalho decente para a gente
nem dinheiro para o tabaco que engana a fome.
e a apagada e vil tristeza do nosso quotidiano.
a falta de graveto, pilim ou guita
para oferecer uma rosa à patroa
que agora vai fazer 45 anos.

hoje foi um dia trivial.
como os outros.
não dei por nada de especial.
hoje o estado arrecadou mais de 600 mil euros
de imposto
sobre o vício de fumar.
33 portugas morreram
de doenças relacionadas com o tabagismo.
não vi nem ouvi o ministro da saúde preocupar-se
com os que trabucam e fumam.
com os pobres que fumam e que vão morrer.
tal como os outros que não fumam,
nunca fumaram
ou deixaram de fumar.
"um dia todos vamos morrer".
conheço essa teoria,
a da dissonância cognitiva,
diz-me o médico do trabalho lá da fábrica
e que até é um gajo porreiro
porque fuma
e sabe que fumar faz à mal saúde.
a gente precisa sempre de um bom alibi
para adiar a morte.
a doença.
a dor.
a travessia da noite.
a subida ao céu.
a descida aos infernos.
o trânsito no purgatório.
o juízo final.
a danação eterna.
amen. padre nosso. avé-maria.

minto: o senhor ministro da saúde
também o é da saúde pública.
da saúde da gente.
das crianças que estão no ventre
das mães toxicodependentes e
das mães fumadoras
e das mães operárias do vale do ave.
o senhor ministro
acaba de anunciar a sua (dele e do governo) intenção
de aumentar o número de consultas hospitalares
de desabituação tabágica
(público, 17.11.2003).
eu aplaudo.
mas quantas (consultas) não disse.
nem onde
nem com que meios.
há montes de portugas a pedir ajuda.
não há técnicos para as encomendas.
e os que há, são voluntários.
psicólogos à procura de espaço de trabalho
no mundo das batas brancas.
há listas de espera de dois anos (!)
para este tipo de consulta
(por exemplo, no hospital egas moniz).
a propósito: diz-se desabituação
ou cessação tabágica ?
cessação, dizem os puristas.

que fumar é uma doença.
uma pestilência.
mas o que é que um gajo como eu,
fumador compulsivo,
de maço e meio
(que a guita não dá para mais),
faz em dois anos ?
dá em doido ?
morre de cancro ?
estoira com os miolos ?
trepa pelas paredes acima ?

em dois anos um portuga fumante como eu
acendeu pelo menos 21900 vezes o isqueiro.
fumou pelo menos 21900 cigarros
(fora o cravanço).
ficou exposto a 4 mil produtos químicos
vezes 22 mil cigarros.
ou serão 5 mil ?
mais mil menos mil, tanto faz.

por conseguinte, um gajo está arrumado
ao fim de dois anos na lista de espera
e a continuar a fumar.
e a trabucar.
eu queria deixar de fumar.
talvez alguém me possa ajudar.
lá em casa todos fumam.
e as mulheres
(a patroa e as duas filhas)
mais do que os homens
(só eu, que o puto ainda é pequenitates).

eu fico, por isso, sensibilizado
com a sensibilidade do senhor ministro
que se preocupa com a gente.
gente como eu.
os que fumam e trabalham como eu,
classe operária,
malandra,
tunante
e fumante como eu,
embora em vias de extinção
enquanto classe mal comportada.
e se calhar também com os que não fumam
mas apanham com o fumo dos que fumam.

no dia mundial do não fumador,
eu escrevo no meu blogue:
fumo, logo existo.
imaginem se não fumasse:
estava tramado.
ninguém se preocupava comigo.
neste dia tenho a certeza que
alguém se preocupou comigo.
médicos, enfermeiros, psicólogos.
padres, polícias, jornalistas, amigos.
cangalheirpos, coveiros.
estatistas, informáticos, epidemiólogos,
patrões do século vinte e um,
gestores do capital humano, sociólogos.
tudo gente importante e séria.
hoje houve gente que se preocupou comigo.
e isso tocou-me,
deixou-me sensibilizado.
talvez eu ainda vá a tempo de me inscrever
numa consulta de desabituação
(perdão, cessação)
tabágica
em 2005.

mesmo com meio pulmão...
a sorrir à vida.

Luís Graça

1 comentário:

andre justino disse...

Gostei muito do seu blog, achei os seus poemas miuto expressivos...
quado puder de tambem uma olhada no meu blog: www.maisdoquepoesia.blogspot.com