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sábado, outubro 09, 2010
Blogantologia(s) II - (87): A velha Amura dos tugas
A velha Amura dos tugas (*)
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu Bissau.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.
Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha,
em formatura,
nas suas fardas multicolores,
coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria
e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.
Ah! A velha Amura,
inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze,
incandescente...
Casamata,
prisão,
dormitório,
agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.
Eram onze
os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.
Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo,
tu, Osvaldo ?
E tu, Vieira ?
E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Oio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados de branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.
Vejo mais à frente o Domingos,
o valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada,
em Madina do Boé.
E tu, Rui Demba Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do mítico Congresso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
suja e esburacada,
na capital da tua terra...
E o camponês balanta,
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a sua Kalash de contrafacção ?
Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história
de como venceram, afinal,
os vencidos.
PS - Há quem te espere, 'Nino',
no Panteão Nacional.
Luís Graça
Bissau, 7 de Março de 2008
Revisto em 8/10/2010
(») Originalmente publicada no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, II Série > 25 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3669: Blogpoesia (27): A velha Amura dos tugas (Luís Graça)
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segunda-feira, agosto 23, 2010
Blogantologia(s) II - (86): Na antiga picada do Xime - Ponta do Inglês
Na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês
por Luís Graça (*)
Não havia nada
Na antiga estrada
Do Xime-Ponta do Inglês,
Ligando o Geba ao Corubal.
Não havia nada naquele lugar
Que era de tormento,
Àquela hora mortal
Da madrugada.
Nada, onde um homem
Pudesse afogar a sua fome,
Matar a sua sede,
Aliviar o seu sofrimento.
Nem sequer um banco de pedra
Como aquele em que agora me sento,
Frente ao Tejo,
Fresco, límpido, matinal,
E onde alguém escreveu,
Em letra garrafal:
“Amo-te, Marta,
És a razão do meu viver”.
Hoje estou à beira Tejo
E não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
E o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
Que, dizem, é o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
Tarrafo, lodo, merda,
Dois cantis vazios,
Um céu de bronze,
E mil e uma razões para (sobre)viver.
Nem poderia haver
Nenhum banco de pedra,
Nem nenhum jardim,
Nem nenhuma Marta
À minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
Que fosse a minha razão de viver.
Quando muito, um fantasma,
Surgido do cacimbo matinal,
Por detrás do baga-baga,
Armado de Kalash!
Não tinha, de resto, razão de viver,
Raison d’être, diria a minha copine,
Se eu fosse refractário,
E tivesse dado o salto para França.
Não tinha nenhuma razão de viver,
Nem de morrer,
Nem de matar,
Não tinha sequer nenhuma razão
Para estar ali, àquela hora.
Não havia nada
Na antiga picada abandonada
Do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um pub irlandês
Com a ruiva Guiness
A piscar-te olho,
A ti, herói português,
Com um improvável genoma celta.
Nem uma tasca afadistada
Da tua saudosa Lisboa,
Com a perna da morena,
Esbelta,
Lânguida,
A faca na liga,
Deixando antever
Os doces mistérios da sua floresta-galeria.
Não, não havia nada,
Nem uma decrépita gasolineira
Dos filmes do Faraoeste da minha infância,
Onde abastecer a tua Daimler,
Salta pocinhas, minas e armadilhas,
Em que ias de Bambadinca ao Xime
Simplesmente para beber uma cerveja,
Sem escolta nem picagem,
Num jogo de roleta russa.
Nem muito menos a Marta-Mátria,
Republicana e laica,
Verde e rubra,
De busto farto,
De peito feito às balas,
Dando a volta à cabeça dos rapazes,
Dando-lhes tusa,
Na Feira Grande de Setembro:
- Vai mais um tirinho, ó freguês!
Não, não havia nada,
Nem sequer uma simples mulher,
Uma fêmea de bunda larga,
Ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
Cata-ventos,
Bailarina,
Redondinha,
Assexuada,
De pelo na venta
E apito na boca,
No cruzamento dos quatro caminhos.
Não, já não vou de G3 em punho,
Em defesa da honra das donzelas
Da minha Pátria.
Chamem-se elas Marta ou Mátria.
Não, já não vou, cego, surdo e mudo,
A correr,
Disposto a morrer,
Com ganas de gritar Pátria ou Morte!,
Na velha picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês
Onde não havia nada.
Nem ao menos um tosco espanta-pardais,
Especado no meio do capim,
Em vez do campo de mancarra do fula,
Ou do teu jardim,
Do Éden,
Ou até uma simples seta,
De pau,
A apontar-te a direcção do inferno,
A maldição bíblica do pecado,
Omnipresente,
Obsessivamente eterno.
Havia apenas,
No fim da picada, o inferno.
À minha espera,
À nossa espera.
Às 8h50 da manhã
Do dia 26 de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Da era de Cristo.
E Conacri ali tão perto!
O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês ?
A picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
Onde Cristo seguramente nunca parou
Nem amou
Nem penou
Nem sofreu
Nem pecou,
Nem rezou.
O teu Cristo etnocêntrico,
Judeu,
Semita,
Que nem sequer era caucasiano,
E nem muito menos sonhava onde era a Senegâmbia
Nem o Império do Mal(i).
Pensar global,
Sonhar alto,
Agir local,
Meu sacana…
Ou melhor ainda:
Não pensar,
Muito menos sonhar,
Tiro instintivo, a varrer o capim.
Eis a ordem do capitão
Que tem acima o major,
Na sua avioneta,
No seu PCV,
E no topo o general,
O Com-Chefe,
O Caco Baldé,
O Homem Grande de Bissau,
Herr Spínola, para mim,
E à frente de todos,
Com o seu inseparável cachimbo,
O Seco Camará,
Seco de carnes,
Velho e valoroso guia das NT,
Pau para toda a obra,
Cão de fila,
Mandinga do Xime,
Herói da minha galeria de heróis,
Verdadeiro líder, etimologicamente falando,
Aquele que vai à frente mostrando o caminho.
Nesta guerra de baixa intensidade,
Não dês vazão ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor poupe, senhor,
As munições.
Da NATO.
Dizem que a glória te espera”,
Escreveu um serial killer,
Roqueteiro,
Com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
Ao longo da alameda dos bissilões.
“Vai para casa, tuga,
Que a tua namorada põe-te os cornos”…
Não, não havia nada
Naquela picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês.
Lourinhã, 19 de Agosto de 2010
(*) Originalmente publicado em Luís Graça & Camaradas da Guiné, em homenagem a Luís Henriques e Armando Lopes que fizeram 90 anos em Agosto de 2010. Revisto nesta data.
___________
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domingo, maio 10, 2009
Blogantologia(s) II - (81): Bela Helena, abelha de mel e ferrão
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
O sexo em tempo de guerra (*)
Amorosa Helena,
pequena fula dengosa,
salva das garras do Islão
por zelosos missionários,
católicos,
apostólicos,
romanos,
mas não da faca da fanateca,
que te extirpou,
na festa do fanado,
o teu belo clitóris,
para te tornares o colchão de todas as camas,
a Vénus negra de batalhões inteiros,
a iniciadora sexual de tugas,
mancebos
que as sortes vieram arrancar às saias das mamãs,
a alegre,
a divertida,
a traquinas companheira de muitas farras de caserna,
correndo, nua e lasciva,
do regaço de tropas bêbedos que nem cachos,
para o abrigo mais próximo
quando às tantas da madrugada
soava o canhão sem recuo,
estoirava o morteiro 82,
disparavam os RPG
e silvavam as balas das Kalash!...
Bela Helena de Bafatá,
que sabias pôr na ordem
os arruaceiros pára-quedistas de Galomaro
que te batiam à porta a pontapé,
quando eu estava contigo,
deitado na tua liteira,
e me dispensavas pequenas gentilezas
- um ronco de missangas, vermelhas,
uma noz de cola,
uma cantilena da tua infância,
um punhado de mancarra seca ao sol,
uma talhada de papaia que trazias do mercado -,
sempre que eu ia a Bafatá
e procurava a tua companhia,
na melhor das hipóteses,
uma vez por mês,
no dia de folga dos guerreiros de Bambadinca…
Tu e as tuas amigas de Bafatá,
do Bataclã,
que tanto trabalho deram
ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins,
que nunca punha os pés fora da sua morança,
e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá,
o nosso querido Pastilhas,
que vivia 24 horas dentro do arame farpado,
no perímetro militar de Bambadinca,
trabalhando incansavelmente,
de bata branca,
em prol de uma Guiné Melhor,
que nos aturou mil e um travessuras,
bravatas,
praxes,
esperas,
serenatas,
tainadas,
emboscadas,
partidas de mau gosto,
brincadeiras estúpidas e perigosas,
bebedeiras de caixão à cova
e que sobretudo nos curou
de alguns valentes esquentamentos…
Destes e doutros males de amores,
dos milhões de unidades de penicilina
com que tu subtilmente te vingaste dos machos,
estás perdoada, Helena,
abelha do mel e do ferrão.
Afinal, quem vai à guerra,
dá e leva…
Tu curavas-nos dos males da alma,
o Pastilhas das mazelas do corpo…
Entretanto, quando a guerra acabou,
para mim
e para os demais tugas da CCAÇ 12,
por volta do mês de Março de 1971,
não tive tempo de te devolver
a pulseira de missangas vermelhas,
nem sequer de te dizer uma palavra,
um Adeus, até sempre,
um adeus, triste,
com saudade, morabeza,
essa coisa que os tugas nunca te souberam explicar,
mas sem regresso,
e sem lágrimas,
que Lisboa estava ali,
tão longe e tão perto...
Prometi guardar de ti
a doce lembrança,
das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas,
da tua voz rouca e sensual,
da tua fala encantatória,
do cheiro exótico do teu corpo,
das tuas sagradas funções de sacerdotiza
do amor em tempo de guerra…
Imagino que a tua vida não tenha sido fácil
depois da independência,
se é que lá chegaste,
com vida e saúde…
Se sim, não sei como viveste esse dia,
24 de Setembro de 1974,
não sei te raparam o cabelo,
ou se te apedrejaram, amarrada a um poilão,
ou se te violaram
ou se te renegaram para sempre,
que a pior das mortes
é a morte social.
Nunca mais tive notícias tuas,
mas, dez anos,
revendo mentalmente
a minha primeira viagem,
por terra,
em pleno chão fula,
do Xime até Contuboel,
onde os esperavam os nossos queridos nharros,
ao longo do interminável dia 2 de Junho de 1969,
o teu nome,
o teu rosto,
a tua voz,
o teu odor,
o teu corpo,
a tua púbis,
e as tuas gargalhadas, quiçá magoadas,
vieram-me à lembrança…
E essa lembrança tocou-me.
Lembrei-te de ti,
da história que se contava sobre ti,
passada em Ponta Coli,
entre o Geba e o Udunduma,
frente à vasta bolanha de Samba Silate,
agora seara inútil de capim alto,
com o cadáver do furriel vagomestre do Xime nos braços.
Lembrei-te de ti
e das minhas escapadelas a Bafatá…
Ia-se a Bafatá,
a bonita e alegre Bafatá colonial,
para limpar a vista,
entrar no café da Dona Rosa,
ver as manas libanesas,
comprar umas bugigangas da civilização,
comer o bife com ovo a cavalo na Transmontana,
dar um salto ao Bataclã
e passar pelo Teófilo,
para o copo de despedida,
antes de apanhar o último Unimog,
de regresso a Bambadinca...
Eram os únicos momentos do mês
em que eramos donos do nosso tempo,
em que a nossa liberdade não estava cercada
de arame farpado e minas,
nem pensávamos na emboscada de ontem
nem na operação de amanhã.
Também foste, à tua maneira,
uma heroína daquela guerra,
minha impossível amiga colorida,
separada pelos papéis
que nos obrigaram a representar
no teatro da tragicomédia daquela guerra…
Daí figurares,
contra toda a ortodoxia
(do teu povo, fula,
dos teus missionários, cristãos, que te queriam a alma,
dos tugas, putos de vinte anos,
que apenas te queriam o corpo,
dos revolucionários do PAIGC
que não te terão perdoado
o teu colaboracionismo com os tugas,
para mais sendo tu conterrânea do pai da Pátria,
o pobre do Amílcar Cabral
tantas vezes morto e remorto
ao longo destes anos todos),
daí figurares, dizia eu,
na minha galeria de heróis
e de heroínas…
Por direito próprio,
com todo o direito,
com o direito que ganharam as mulheres do teu país,
pobres,
as mais pobres dos mais pobres,
mas sempre dignas e corajosas,
apesar de ofendidas e humilhadas,
exploradas,
violentadas pelo sistema,
pela guerra,
pela dominância dos machos,
pelo imperativo da sobrevivência,
pela lotaria da geografia e da história…
Aceita esta pequena homenagem da minha parte.
Em contraparida,
dá-me o derradeiro prazer,
esse prazer tão terno,
de te ouvir soltar as tuas gargalhadas,
minha safada Helena de Bafatá,
onde quer que estejas,
...na terra,
no céu
ou no inferno!
Luís Graça
_________
(*) Publicado originalmente no blogue Luís Graça % Camaradas da Guiné > 9 de Maio de 2009 Guiné 63/74 - P4306: Blogpoesia (46): O sexo em tempo de guerra (Luís Graça)
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sexta-feira, abril 24, 2009
Blogantologia(s) II - (80) O menino da escolinha do Fiofioli
Um dia os historiadores haverão de ganhar dinheiro
à nossa conta,
da nossa e dos pobres guinéus
que andaram, tal como nós,
com a canhota na mão,
no Fiofioli,
em Guileje
ou noutros sítios lá no "cu do mundo,
longe do Vietname".
Eu não estive no Fiofioli,
em Março de 1969,
no decurso da Operação Lança Afiada.
Já estava no Campo Militar de Santa Margarida,
com outros camaradas,
com guia de marcha para a Guiné,
aonde chegaríamos em finais de Maio desse ano
para formar,
em Contuboel,
a futura CAÇ 12,
uma companhia de "nharros", de fulas ...
E também nunca lá fui depois,
ao Fiofioli, no meu tempo.
Nem eu nem ninguém, que eu saiba.
Estivemos só nos arredores,
mas ainda longe,
em operações, com a nossa tropa-macaca.
Se algum de vocês, algum dia,
antes, durante e depois da guerra,
esteve no mítico Fiofioli
(que pena eu não poder pôr isto no meu currículo!),
peço-vos que me mandem o vosso testemunho,
alguma estória,
alguma foto,
alguma pulseira de missangas,
vermelhas,
algum caderno escolar,
mesmo sujo e rasgado,
alguma lágrima de algum menino,
balanta ou beafada,
que nesse dia,
em 15 de Março de 1969,
não pôde ir à sua escolinha,
como de costume,
debaixo do belíssimo poilão da sua tabanca,
porque teve de fugir
e cambar o Rio Corubal,
à pressa,
em pânico,
sob as bombas dos T-6
e dos Fiat G-91,
a metralha do helicanhão,
e os gritos dos seus pais e irmãos:
"tuga, tuga, gosse, gosse"...
à nossa conta,
da nossa e dos pobres guinéus
que andaram, tal como nós,
com a canhota na mão,
no Fiofioli,
em Guileje
ou noutros sítios lá no "cu do mundo,
longe do Vietname".
Eu não estive no Fiofioli,
em Março de 1969,
no decurso da Operação Lança Afiada.
Já estava no Campo Militar de Santa Margarida,
com outros camaradas,
com guia de marcha para a Guiné,
aonde chegaríamos em finais de Maio desse ano
para formar,
em Contuboel,
a futura CAÇ 12,
uma companhia de "nharros", de fulas ...
E também nunca lá fui depois,
ao Fiofioli, no meu tempo.
Nem eu nem ninguém, que eu saiba.
Estivemos só nos arredores,
mas ainda longe,
em operações, com a nossa tropa-macaca.
Se algum de vocês, algum dia,
antes, durante e depois da guerra,
esteve no mítico Fiofioli
(que pena eu não poder pôr isto no meu currículo!),
peço-vos que me mandem o vosso testemunho,
alguma estória,
alguma foto,
alguma pulseira de missangas,
vermelhas,
algum caderno escolar,
mesmo sujo e rasgado,
alguma lágrima de algum menino,
balanta ou beafada,
que nesse dia,
em 15 de Março de 1969,
não pôde ir à sua escolinha,
como de costume,
debaixo do belíssimo poilão da sua tabanca,
porque teve de fugir
e cambar o Rio Corubal,
à pressa,
em pânico,
sob as bombas dos T-6
e dos Fiat G-91,
a metralha do helicanhão,
e os gritos dos seus pais e irmãos:
"tuga, tuga, gosse, gosse"...
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quarta-feira, setembro 24, 2008
Blogantologia(s) (II) - (72) Nasceu e morreu um pretinho da Guiné
Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau. Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Cadi era o seu nome. Vivia em Farim do Cantanhez. Esteve recentemente às portas da morte. E perdeu o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses. Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil... "Que raiva, que mundo, que desgraça de país" - é a primeira reacção que nos ocorre, a nós, que estamos num país que tem um dos baixos indicadores de mortalidade infantil do mundo... Sofremos, e muito, com estas notícias tristes que nos chegam da nossa querida Guiné... e que nos envergonham a todos (LG).
Foto: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados..
(…) “Segundo os dados da UNICEF, em cada mil crianças nascidas na Guiné-Bissau, 233 morrem antes de completar os cinco anos de idade, das quais mais de metade (138) não chegam a fazer o primeiro aniversário”. (…) (Dos jornais)
Nasceu e morreu um pretinho da Guiné (*)
Cadi, de seu nome.
Amorosa,
uma ternura,
uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
apascentando na orla da bolanha.
Era nalu,
vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
com direito a pensão
ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
em Iemberém,
no início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
das crianças africanas,
quando veem uma Mulher Grande, branca.
Homem estava em Bissau.
Todo o mundo vai p’ra Bissau,
onde é a escola da vadiagem e da malandragem.
Homem vai embora.
Diz que vai à lenha
e não mais volta.
Que o mundo é bem maior
e mais sedutor
e bem mais perigoso
que Farim do Cantanhez,
tabanca interior no interior.
E deixa Cadi com a barriga cheia.
Agora Cadi vai a Bissau
levantar a pensão do pai.
As duas novas mães, tugas,
dão-lhe dinheiro para a viagem.
Ficam amigas.
Prometem dar notícias,
de Lisboa, cidade grande,
chão dos tugas,
e mandar roupa para o menino ou menina.
Cadi bem gostaria que fosse menino,
para trabalhar na horta com ela.
Agora Menino já nasceu
e vai ter nome de padrinho, tuga,
lá longe, bem longe,
tão longe,
que é preciso tomar avião,
avião grande.
Nuno, Nuninho,
vai ser o nome do menino,
Por homenagem
ao senhor capitão-fula,
homem valente de Mejo e de Guileje,
Nuno Rubim, hoje coronel.
Todo o mundo está contente,
família está contente.
nalu está contente.
Agora que o Nhinte Camatchol proteja o menino
e a sua mãe Cadi.
e o avô, pensionista,
combatente da liberdade da pátria.
E o Estado guineense
que ainda paga pensão do avô.
Que a vida é a travessia de um rio,
cheio de rápidos e de armadilhas,
de crocodilos,
de diabos,
de irãs maus…
A vida corre, como a água do rio.
Vem tempo das chuvas,
vem mosquito,
vem insecto, aos milhões,
vem virús,
vem bactéria,
vem fungo,
vem nuvem negra,
vem HIV/Sida,
vem tempestade,
vem fome,
vem doença,
vem ave agoirenta,
vem a morte, aos quatro meses...
Por paludismo!
A dor quebra coração da gente.
Da Cadi.
Da Júlia.
Do Nuno.
O Nuninho morreu.
Dirão as estatísticas:
foi mais um dos duzentos
em cada mil
que não chega aos cinco anos.
A implacável estatística
da mortalidade infantil
na Guiné-Bissau:
138 por mil nados-vivos não sobrevivem
ao primeiro ano,
diz a OMS.
O que é tu podes fazer ?
No teu país, há um século atrás
também era assim...
A Alice não sabia,
não sabia das últimas notícias.
Hoje foi comprar roupinhas, lindas,
para o filho da Cadi.
Ao Colombo,
em Lisboa,
no chão dos tugas,
tabanca grande.
Telefona ao Pepito
para saber quando vai,
de regresso a casa,
em Bissau,
no Bairro do Quelelé,
para retomar o belíssimo trabalho da AD.
E se ainda tem espaço na mala,
ele ou a Isabel,
para arrumar uma roupa bonita p'ró menino.
Eu deve estar lindo
e robusto
e saudável.
Que em Iemberém, no Cantanhez,
os meninos não tinham barriga grande.
E eram lindos, robustos, saudáveis.
Telefona ao Nuno e à Júlia
para saber notícias da Cadi e do Nuninho.
Do outro lado da linha,
... o desalento, a tristeza, a desolação.
Alice, o Nuninho morreu, aos quatro meses!...
De paludismo.
Sem assistência médica.
Sem esperança.
Sem salvação.
Como um cão vadio,
que morre na beira da estrada,
no meio do capim,
na lixeira do bairro.
E a Cadi também esteve às portas da morte.
Por paludismo e desinteria.
O Nuno e a Júlia providenciaram, a tempo,
o recurso a uma clínica privada
em Bissau.
E a Cadi salvou-se.
Desta vez salvou-se.
Porque gente amiga e solidária
proporcionou os cuidados de saúde decentes
que o dinheiro pode comprar.
Cadi perdeu o seu menino,
espero que não tenha perdido
a fé e a esperança nos seres humanos,
mesmo naqueles
que assobiam para o lado,
enquanto as crianças da Guiné morrem
como os cães à beira da picada e do capim.
De paludismo.
De pneumonia.
De diarreia.
De má nutrição.
De Sida.
De abandono.
De indiferença.
De falta de médico
(Que não volta
e fica a ganhar bom dinheiro em Lisboa,
tabanca grande,
chão dos tugas).
E de falta de medicamentos.
E de meios de prevenção e tratamento.
E das coisas mais elementares e essenciais da vida,
como a água potável.
ou um mosquiteiro impregnado.
O Nuninho nasceu e logo morreu.
Um pretinho da Guiné nasceu para morrer.
Logo logo,
de paludismo,
que é a doença da vergonha dos ricos
e um dos inimigos mortais dos pobres,
nomeadamente em África.
O Nuninho não é, não devia ser
um número, mais um número
para as estatísticas, frias e cínicas,
do nosso descontentamento
e da nossa má conscência.
O Nuninho não era mais um pretinho da Guiné.
O Nuninho era um menino nalu,
filho da Cadi,
sem pai.
Ou com um mau pai, ausente,
que foi a lenha e não mais voltou.
E nesse dia, fatal, em que adoeceu,
sem a sorte do Nhinte Camatchol
a protegê-lo.
Hoje a morte em Bissau tem um rosto:
o do menino da Cadi.
E a ti, pobre gazela,
que direi ?
Coragem,
és nova,
a vida continua...
Não tenho palavras,
a não ser de circunstância,
para calar a tua dor...
E mesmo assim sei
que irás lutar para vingar a morte do Nuninho,
que irás lutar pela felicidade a que tens direito,
que irás herdar a coragem do teu velho pai,
que lutou por um país novo,
onde os meninos pudessem nascer e crescer,
lindos, livres, robustos e saudáveis.
Não tens outro jeito, Cadi,
não temos mesmo outro jeito,
os guineenses
e os amigos da Guiné.
Luís Graça
Setembro de 2008 (**)
(*) Dedicado à Júlia, à Alice e ao Nuno Rubim,
Que na semana de 1 a 7 de Março de 2008
se afeiçoaram à Cadi e ao seu futuro menino,
que só teve neste mundo
direito a uma curtíssima viagem de 4 meses.
(**) Revisto nesta data. Originalmente publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > 3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça).
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