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terça-feira, julho 03, 2012

Blogantologia(s) II- (100): De Lisboa a Luanda, ou o puro azul do desejo


De Lisboa a Luanda: o puro azul do desejo



Estavam lindos os jacarandás
quando deixei Lisboa
e o Tejo,
ao fundo.
Eram o puro azul do desejo,
o azul mais inebriante do mundo.
Para trás,
ficava o sulco de uma canoa
e o cheiro a alfazema de Alfama.
No teu quarto, de hotel barato,
o sofá-cama desfeito
era um certo jeito de dizer adeus.
Um jeito tão português,
tão nosso,
o nosso fado,
dirás.
Não posso
falar da saudade de quem fica,
nem devo dizer do desejo de quem parte,
que o amor é ciência e é arte.
Subo aos céus,
em avião a jacto
que corta o planeta
em duas metades laranja
ao pôr do sol.
Não sei se é amor,
de jure e de facto,
ou apenas sorte
o arco-íris da tua paleta
com que pinto Lisboa de jacarandás.
Mas que pode a imaginação do poeta,
quando o coração, mais forte,
pensa que manda ?
Eram os teus lábios
que eu em vão procurava
nas folhas das acácias vermelhas
com que imaginava,
coberta,
a ilha de Luanda…

Luís Graça

Portugal, Lisboa, Parque Eduardo VII;
Angola, Luanda, Ilha de Luanda, Clínica da Sagrada Esperança, junho de 2012.

________________

segunda-feira, janeiro 02, 2012

Vamos cantar as janeiras (4): Escola Nacional de Saúde Pública, 2011

Lisboa, ENSP/UNL, Festa de Natal,

Aos antigos diretores desta casa,
Ao presidente e membros dos atuais órgãos de gestão da Escola,
Conselho Geral,
Diretor
Sudiretora
Conselho de Gestão,
Conselho Científico
E Conselho Pedagógico…

A todos os demais senhores e senhoras,
Meninos e meninas,
Discentes, docentes e não docentes,
De todos os pisos,
De todas as secções,
De todos grupos de disciplinas,
De todos os gabinetes e projetos,
Comissões, subcomissões e grupos de trabalho…
Sem esquecer o pessoal do Back Office
Que faz parte da equipagem deste barco
(na marinha, diz-se navio, NPR –Navio da República Portuguesa):
Os serviços administrativos,
Os financeiros,
Os académicos,
Os secretariados,
As publicações,
A documentação e a informação,
A comunicação e imagem,
A informática,
As telefonistas,
A reprografia,
A manutenção, o bar, a limpeza, a segurança…
(sem esquecer os ratos, que também fazem parte de qualquer navio)

Boas festas a toda a gente,
Um Natal feliz e quente!…



O nosso alegre fadário (*)


[Tiítulo apropriado para as nossas Janeiras, em ano… em que Fado deixou de ser lisboeta e português: é agora Património Imaterial da Humanidade… E para que não digam que o ano de 2011 foi mais um annus horribilis do nosso Séc. XXI…]



Refrão

Sou o Principal
Desta Escola Nacional
Em que a saúde é global
E onde tudo é velho e novo…
E governando,
O barco lá vou levando,
Ai!...
O orçamento esticando,
Mas sempre… a bem do povo!

1.

Ainda mal era estudante,
Logo a achei deslumbrante,
Higia, deusa querida,
C’o tempo deu-lhe trela,
Namorei, fiquei com ela,
P’ró resto da minha vida!

2.

Qu’amor tão salutogénico,
Que casal tão transgénico!...
Só o Olimpo não perdoa
Tamanha humana vaidade,
A da eterna mocidade
No corpo de uma pessoa!

3.

E por mal dos meus pecados,
Chovem queixas e recados:
Essa deusa é paranóica,
Se não poupas o tostão,
Vais morrer de coração,
É melhor chamar… a troika!

4.

Pobre de mim, economista,
Nem p’rós melros tenho alpista,
Nem papel para as retretes;
Ai que me dá um achaque,
Vem lá o homem do fraque
E até nos leva os croquetes!

5.

Mesmo quem não é cá da rua,
A esta Escola chama sua:
Seu patrono é o Padre Cruz,
Tem condomínio fechado,
Com o INSA, geminado,
A quem paga água e luz.

6.

Chamam-lhe a Árvore do Mal,
Vai p’ra abate municipal,
É o cantinho do fumador…
Cada dia cai uma pernada,
E mesmo não dando por nada,
Paga o justo p’lo pecador.

7.

Para acabar o fadário,
Falta o conto do vigário,
Health is business, não é esmola:
Dando a Higia como dote,
Dá-se às manas um retoque
E cria-se a… Grande Escola!

8.

Boas festas, senhor Reitor,
Nosso amigo e benfeitor,
Saia o teste de literacia,
Oito mais um é poesia.
Soma nove e fora… NOVA,
Aqui tem a nossa prova!


9.

Boas festas, senhores discentes,
Nossos queridos clientes,
São os votos dos professores;
C’o histórico orçamento,
Quem lhes paga o vencimento
São os futuros doutores.


10.

Boas festas à Direcção,
Está cumprida a tradição,
Obrigados p’lo almoço;
Retribuímos co’ as Janeiras,
Modo de dizer asneiras
Do povo… em alvoroço!

11.

Boas festas aos demais poderes,
Científicos e pedagógicos,
Digitais e analógicos;
C’poucos teres e muitos saberes,
De fraque e até de cartola,
Assim se faz uma escola.


12.

E p’ró fim fica o melhor,
Boas festas, pessoal menor,
Nunca vos falte o trabalho:
Cá por mim nos invejo.
E neste Natal desejo:
“Nunca digam… pouco valho”!!!

Refrão


Sou o Principal
Desta Escola Nacional
Em que a saúde é global
E onde tudo é velho e novo…
E governando,
O barco lá vou levando,
Ai!...
O orçamento esticando,
Mas sempre… a bem do povo!

(*) Inspirado no Fado do Cacilheiro

Letra : Paulo Fonseca (**); música: Carlos Dias

[Criação do ator de revista José Viana, justamente imortalizado como o Zé Cacilheiro. Veja-se um vídeo, de 1966, que passou na RTP Memória, e está disponível no YouTube:

http://www.youtube.com/watch?v=qL07wLZPGFw&feature=related ]



(**) Fado do Cacilheiro

Quando eu era rapazote,
Levei comigo no bote
Uma varina atrevida,
Manobrei e gostei dela
E lá me atraquei a ela
P’ró resto da minha vida.

Às vezes, a uma pessoa,
A idade não perdoa,
Faz bater o coração
Mas tenho grande vaidade
Em viver a mocidade
Dentro desta geração.

Refrão

Sou marinheiro
Deste velho cacilheiro,
Dedicado companheiro,
Pequeno berço do povo,
E, navegando,
A idade vai chegando,
Ai…
O cabelo branqueando,
Mas o Tejo é sempre novo.

Todos moram numa rua
A que chamam sempre sua
Mas eu cá não os invejo,
O meu bairro é sobre as águas
Que cantam as suas mágoas
E a minha rua é o Tejo.

Certa noite de luar
Vinha eu a navegar
E de pé junto da proa
Eu vi ou então sonhei
Que os braços do Cristo-Rei
Estavam a abraçar Lisboa.

Refrão…

terça-feira, março 15, 2011

Blogantologia(s) II - (91): Nada disto é fado

Nada disto é fado


Nada disto é fado, é apenas história (de)vida,
Ruas do ouro e da prata, de outrora, querida.

Colina acima, rua abaixo, no metro de Lisboa,
Ou no amarelo da Carris, é a vida, à toa.

A vida é um assalto à caixa de Pandora, meu amor.
Beware of pickpockets, avisa o revisor…

Alcântara, a ponte de fogo, suspensa
Sobre a tua cabeça, e a nossa raiva, tensa.

Em Almada, a teus pés, tens o estuário do Tejo,
Mas é na solidão do Terreiro do Paço que eu mais te desejo.

Compro castanhas, quentes e boas, com ternura,
Enquanto a vida segue pelas ruas, sujas, da amargura.

Nada disto é fado, é apenas história (de)vida,
Ruas do ouro e da prata, de outrora, querida.

21/3/2011

quinta-feira, abril 16, 2009

Blogantologia(s) II - (79): Rua da Conceição nº 100, Lisboa, 1976

Lisboa > Terreiro do Paço (antes do terramoto de 1755) > Azulejos (pormenor) > Casa do Alentejo > 17 de Janeiro de 2009.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Rua da Conceição nº 100, 1976

Blogarias.
Papéis velhos,
amarelecidos,
desenterrados do baú.
Literalmente,
do baú do sótão da casa e da memória.
Outros tempos.
Outros estados de alma,
se é que a alma tem estados,
como a matéria
que é sólida, líquida ou gasosa.
Em 1976, o mundo ainda era
a preto e branco.
Não havia televisão a cores.
Nem computadores pessoais.
Era a pré-história de qualquer coisa
que mal se advinhava.
Havia a IBM
e as main frames
e as máquinas da Bull
e o cartão perfurado.
E a guerra fria,
que ironia.
Escrevias numa maquineta
de dactilografar,
levezinha,
daquelas portáteis.
Imperial, inglesa, vitoriana.
AZERT ou HCESAR ?
Não, não tinha certificação de qualidade.
Eras estudante de sociologia.
Um safado,
Um sacana,
Um semi-privilegiado
Do hemisfério norte.
Trabalhador-estudante.
Ex-combatente
Da guerra colonial.
Com sorte.
E com culpa por ter tido sorte.
Trabalhavas na Rua da Conceição,
nº 100.
Na Baixa.
Num velho prédio pombalino.
Ao serviço do fisco.
E do seu projecto de modernização.
E apanhavas o já famoso 28,
o eléctrico amarelo da Carris,
para ires almoçar a casa.
Moravas nas traseiras da Infante Santo,
no bairro da Lapa dos pobres,
dos criados da velha nobreza decadente.
Numa parte de casa de estudantes
e de obscuros professores de economia
que um dia irão vingar-se
do triunfo do mercado.
Travessa do Possolo, meu caro,
Nº 17, 19 ou 21,
já não me lembro.
Tinhas posto um anúncio no Página Um,
uma pasquim esquerdista,
dirás tu quando tiveres 70 anos.
Tentando a sorte de arranjar
uma casa ou parte de casa.
Que quem casa, quer casa.
Que a crise de habitação já não é de agora,
vem de trás,
desde que congelaram as rendas
e prometeram o bacalhau a pataco
à rapaziada da classe operária.
Ainda te recordas
que o anúncio (pessoal) começava assim:
"A um capitalista
que leia o 'Página Um' por engano"…
Arranjaste uma parte de casa.
Estudavas à noite.
Eras casado.
Não tinhas filhos.
Mas houve um senhor ministro,
O Sottomayor,
o Cardia,
paz à sua alma,
que decidira mandado fechar o teu instituto,
o ISCPS.
Em nome da normalização
democrática.
Tinham tirado o U ao velho ISCSPU,
depois da queda do império colonial.
Sanearam as 'múmias', os profes.
Decapitaram o conselho científico.
Importaram latino-americanos para ensinar
a sociologia da mudança, da revolução.
Os assistentes e os estudantes tomaram o poder.
Alguém escreveu nas paredes do Palácio Burnay,
que era o homem mais rico de Portugal
no virar do Século XIX.
Nada que não se tivesse visto antes,
noutros tempos,
noutros lugares.
O poder tem horror ao vazio.
O Sotto Mayor Cardia tinha horror ao vazio.
Foste para o ISEG,
Onde continuaste a martelar
O economês e o sociologuês.
Outros como o pobre do Salgueiro Maia
ficaram por lá,
na Guerra Junqueiro,
para acabar a antropologia.
Para gerir mais presídios transformados em tristes museus.
Imagino que ele fosse bom em etnologuês,
que é o dialecto que nos resta,
à porta de entrada da Europa.
Mas os sociólogos e os economistas foram corridos.
Acabaste, no 3º ano,
por ir parar ao ISCTE,
do senhor engenheiro Sedas Nunes.
Algumas destas blogarias
são dessa época, de 1976/1977.
Outras são até mais antigas.
Tinhas-lhes perdido o rasto.
Já não te reconheces totalmente
no que escrevias nessa época.
Não tens que te reconhecer,
que um homem não é de pau,
nem cara de pau,
nem de pau santo,
nem de cera,
nem de marfim.
Nem é feito de uma só peça,
a canivete,
Mas não rejeitas esses escritos
nem vás branqueá-las,
nem muito menos sorteá-los.


o tempo era de outono
e de 1976
o lugar poderia ser portugal
porta do cavalo da europa

exercícios de estilo,
atenção meus senhores
isto é um assalto,
façam exercícios compensatórios,
mãos ao ar,
cabeça direita,
nada de truques,
impressões de viagem no eléctrico
Estrela rua da Conceição,
fichas de leitura
na diagonal,
escrita automática,
contributo para um novo modo de produzir
e de viver
faits divers
a ideologia que se consome todos os dias
à mesa da boa consciência,
o direito de cagar ao ar livre,
consagrado na constituição,
já,
reclamavam os velhos anraquistas,
notícias necrológicas,
Max Weber, Durhkeim,
a epistemologia,
histórias aos quadradinhos dum maginal-secante,
boletim metereológico
da revolução que o não será,
revolução pr’amanhã.
Prá mamã.
Mas quem pediu uma revolução pr’ amanhã, prá mamã ?
Cartas clandestinas
ou nem por isso,
folha dominical para os dias cinzentos da semana,
informações pidescas ou pós,
relatório do crime,
pequena enciclopédia da via sexual
dos sete aos setenta anos,
o ânus horrível de 76,
a bancarrota,
que o FMI vem aí,
o arroto da banca
nacionalizada, nossa,
diziam os bancários agora banqueiros,
títulos de caixa alta
o tédio em tempo de paz,
a imaginação para a prisão,
recortes de A a Z,
curriculum vitae oprimido e explorado,
cadastrado,
o livrinho cor de rosa dos maus pensamentos,
transgressões íntimas,
o elogio do colchão ortopédico,
misérias e grandezas do(a) capital,
blá blá,
o livrinho vermelho dos maoístas
onde a explicação do mundo
cabe numa metáfora,
peças em 1 acto (sexual),
fogo sobre o revisionismo
e o social-facismo,
parecer sobre o estado calamitoso do reino,
a arte de fugir ao fisco,
os contos do vinho tinto,
a autofagia,
o fantasma do Pessoa
na tabacaria da esquima,
no Martinho da Arcádia,
ali tão perto,
ou a economia política
ao alcance de todas bocas,
proletas de todo o mundo (re)uni-vos.
ou melhor: os destroços das batalhas perdidas
dos últimos dois séculos.
Vous aimez Marx ?
A angústia em papel celofane,
poesia,
amor,
ao domingo,
na Rua da Conceição nº 100,
um pardieiro,
arte,
guerra,
solidão,
solidariedade de classe,
revolução de manhã, sol à tarde,
como a eira de sequeiro
e a horta de ragadio:
misturem bem e bebam frio!
Haraquiri dum petit-bourgeois,
aqui e agora
comem-se castanhas assadas
no jardim da Estrela.

PS - Nesse tempo não havia velhos.

domingo, março 15, 2009

Blogantologia(s) II - (76): Beware of pickpockets!



Foto: Luís Graça (2009). Direitos reservados


Beware of Pickpockets


No metro de Lisboa,
Colina acima,
Rua abaixo,
A vida underground.
Stop.
A economia subterrânea.
Stop.
A morte na alma.
Stop.
A ponte suspensa
Sobre as nossas cabeças.
Ponto.
Sinais do telégrafo
Que morrem, à toa,
À tona de água,
No estuário do Tejo.

Beware of pickpockets,
Cuidado com os carteiristas!,
Que isto é um assalto
À caixa
De Pandora.
Multibanco.
Ruas de ouro e prata
Do Novo Mundo
Que houvera de chegar.

Compro castanhas,
Quentes e boas,
Em Lisboa,
Numa manhã melancólica
De Outono.
Enquanto a vida segue
Pelas ruas, sujas,
Da amargura.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Blogantologia(s) II - (65): Em dia de São Valentim

Vila Praia de Âncora > 4 de Fevereiro de 2008

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Um dia vou ter pena de morrer,
Só por ti
E pelo azul da luz de Lisboa
Nas manhãs perfeitas de domingo.

Um dia vou ter pena de partir,
Não pelo que não vivi,
Mas só por que não namorei contigo
Nas horas e nas desoras
Dos dias em que o azul não era tão azul,
Nem os domingos tão domingos,
Tão perfeitos,
Como tu querias….

Ficarás na dúvida
Se eu afinal sempre era o teu príncipe
Desencantado,
E tu a minha chita,
Selvagem e pouco borralheira,
Em busca do azul perfeito dos domingos
À beira Tejo.

Fora eu transparente como o céu de Lisboa
Lúcido e translúcido,
Tão certo e previsível como o Domingo
Que é o Dia, perfeito, do Senhor,
E talvez tu nunca tivesses escutado
Os meus passos na rua estreita do teu bairro,
Nem sequer lido a letra do meu fado,
Ou estranhado a primeira e única carta
Que te escrevi.
De Amor.

O teu (e)terno namorado

Lisboa, Dia de São Valentim, 14 de Fevereiro de 2008

domingo, janeiro 06, 2008

Blogantologia(s) II - (61): Lembro-me que era Dezembro

Lisboa> Belém > A ponte 25 de Abril e o Cristo Rei, ao crepúsculo > 6 de Janeiro de 2007.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Para o João, quando fez 22 anos, e que estava em Florença, no Erasmus:

João:

Um poema (revisto) que eu escrevi à tua mãe, em 1995, e que eu gostava que tu conhecesses, nestes dias de Janeiro de 2006, em que fazemos anos (tu, a 21, eu a 29):

Revisitando o poeta Eugénio de Andrade (Matéria Solar),
em busca da Alice
Ou:
Cinquenta poemas de amor,
De Agosto a Dezembro.

Cinquenta poemas de amor
Por outros tantos anos
Que já viveste
Entre a aurora boreal
E a noite polar.

Como poderia imaginá-los
Sem ti,
Como poderia escrevê-los
Sem sequer te imaginar,
Como poderia simplesmente dizê-los
Sem estares aqui ?

Lembro-me
De te ter dito Jacques Prévert:
- Les enfants qui s'aiment
S'embrassent debout
Contre les portes de la nuit...


Lembro-me que era Dezembro
E o que em ti respirava
Eram os olhos,
De costas viradas para a noite
Enquanto a terra ardia,
Quase um rio.

Éramos filhos da madrugada
E dormíamos náufragos e nus
Entre os búzios,
Do vento e dos moínhos
Fazendo atalaias
Contra o medo.

De Abril ficou o travo
Da liberdade,
A paixão
E a arte de esculpir corpos e almas.

E aos filhos que fizemos
Chamámos Joana e João.
Em Agosto, era fatal,
Por ti,
yo perdi la lhave,
El sobrero y la cabeza,

Entre o Marão e o Cabo do Mundo.
De Setembro guardo o cheiro
A mosto, a broa e a caldo
E a amizade quente e fraterna
Da tua gente.
Já não há milho verde, milho rei,
Mas em Dezembro,
Felizmente é Natal!

Luís Graça (1995/2006)

quarta-feira, outubro 10, 2007

Blogantologia(s) II - (57): Cais de partida(s)

Cais de partida(s)

Sempre detestei os cais
de partida,
as estações ferrovárias,
os terminais de autocarro,
onde há gente vulgar
com lágrima fácil ao canto do olho
e pombos debicando restos de comida.

São sombrios e tristes os ares
das gares
como é sombrio e triste qualquer lugar
onde se parte
e reparte
e há sempre alguém que fica
com a melhor parte.

Campo Grande,
Rossio,
Santa Apolónia,
Sete Rios
Cais de Alcântara…
Quem parte está a mais
e não conta na cidade
e só quem parte
leva saudade.

Eu sei que tudo isto é à nossa escala,
liliputiana,
e que noutros sítios
há uma verdadeira tragédia humana
a correr, sem testemunhas.
Que Lisboa não é, ainda,
uma megacidade da quarta economia do crime,
nem pertence a um narco-Estado.

Mas o drama da angolana,
com a sua pequena mala,
que quer ir para Freixo de Espada à Cinta
à procura do velho pai
que não conhece,
não pode deixar-me indiferente.
Nem o caso do nordestino brasileiro
que em Sete Rios julga ter entrada no paraíso.
Nem tão pouco do romeno
que reboca o meu carro
e que me contou a história, fantástica,
da avó e dos seus filhos,
fugidos dos nazis
e alimentando-se, meses e meses a fio,
nos Cárpatos,
do leite da única vaca que escapou à orgia da cruz suástica…

Resta-me a grande nostalgia dos comboios
que nunca tive,
nem em brinquedos,
e que nunca sabotei,
porque nunca fiz parte da resistência,
e onde que nunca viajei
pela simples razão
de nem sequer passarem à minha porta.

Menino e moço me levaram da casa de meus pais
para longes terras, Bernardim,
e talvez por isso
me seja hoje mais fácil chegar do que partir.

segunda-feira, setembro 24, 2007

Blogantologia(s) II - (53): Rua da Conceição, nº 100, ou o poema do marinheiro sem mar

Região Autónoma da Madeira > Funchal > Baía do Funchal > 16 de Maio de 2007 > Réplica da caravela Boa Esperança.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Rua da Conceição nº 100: marinheiro sem mar

Português sem título nobiliárquico,
explorado
e oprimido,
suprimido,
reprimido,
duplamente comprimido,
retornado,
e agora prec[arizado],
quer dizer periférico e dependente,
pobrete e alegrete,
muito pouco enfático,
depois de perder o império colonial,
o último.
Sem os três DDD dos dedos da mão.
Que Abril já é Novembro.
Sem os cravos.
Sem os escravos.
Com o FMI à perna.

Advinha fácil, terna,
para um marinheiro
sem bote nem mar
mas os novos senhores da praça do comércio
ainda gostam do travo a sal,
maresia, canela, azebre,
bolor, patine e sangue
que a grande aventura dos avoengos,
burgueses,
lhes deixou na boca.

Pelo menos estas imagens e estes cheiros
são flores de estilo,
metáforas,
que ainda salpicam os seus discursos
gongoricamente socializantes.

Tuga,
chamavam-te os negros da guiné em crioulo
como quem chama filho da puta,
hoje demandas outras paragens,
vais por terra porque já não tens porto
nem naus
nem caravelas,
vai para o raio que te parta,
vai para a puta que te pariu.

Seis milhas marítimas são um lago
para as crianças brincarem
e já não há rei
nem roque
para poderes clamar aqui d’el-rei,
para não perderes o norte,
para apelares à real justiça
ou tão só para poderes morrer,
com cama,
comida
e roupa lavada
e ainda com a extrema-unção,
no real hospital
de todos os santos.

Mas não estás só
nem órfão,
que a europa, dizem, está contigo.
De qualquer modo
não perdeu o gosto pela história,
trágico-marítimas,
pelas anedotas
salpicadas de sangue, suor e lágrimas,
a par das picantes,
além das de escárnio & maldizer.

Agora, por exemplo,
falas no tigre de são bento
que era de papel
e tinha um amigo em belém,
rodeado de quarenta piratas de perna de pau
que haviam trocado a cruz e a espada
pelo garfo e a faca do gambrinus.

Português, enfim,
de seu nome,
filho de gente ilustre,
ilustrérrima,
cuja origem se perde na noite dos tempos
ou nas manhãs de nevoeiro.
Com alguns sarracenos, judeus e pretos
pelo meio,
a dar cabo da árvore genealógica,
a estripar a estirpe,
a sangrar a pureza do sangue.

bip
bipolar
bifurcação
bis bisar bisca bilhete bissexto
banco
banco português
banco intercontinental português
plural pluricontinental pluracial
rua da conceição 100
onde trabalho para a administração fiscal

baixa pombalina
15 de fevereiro de 1977.

Recordações
do império colonial
que eu não consegui defender
até à última gota do meu sangue...~
I'm sorry.
Em que repartição da pátria
é que poderei apresentar
as minhas desculpas ?

Mas onde é que acaba, afinal,
o passado
e começa o futuro,
ponto de interrogação
e fim de citação.

Um poeta sem mensagem.

Lisboa, Fev 77. Revisto em Set 07.

sábado, maio 20, 2006

Blogantologia(s) II - (27): Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo.

Lisboa > Terreiro do Paço > 2005 >

A entrada da Rua Augusta e a colina do castelo vistas de uma janela do Ministério da Agricultura. "Da minha janela" diz ela.

© Maria Helena Moutinho (2005)

Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo (1).


Lisboa, sete colinas,
o rio, uma paixão,
que deram origem
à arte e à ciência da olissipografia.
E a Helena era uma das meninas
que ficava bem,
à janela,
recortada em pórtico manuelino
da Casa dos Bicos
ou no laranjal
da estória da Nau Catrineta,
desenhando castelos de Espanha
nas areias de Portugal.

Lisboa, menina e moça,
tu podias não saber nada
de geografia,
nem da didáctica da educação de adultos,
nem da fisiologia do coração,
nem de desenho a três dimensões
nem do risco sísmico
nem do simples risco de existir e de estar viva.
Mas sempre tiveste por perto
o estúpido pirata de perna de pau,
vesgo e maneta,
irrompendo os teus sonhos
com o pesadelo do sentimento de um ocidental
na ponta mais fina de uma espada
guardada na Torre de Belém.

Lisboa, o casario, o castelo,
e rente ao chão,
a devoção, a procissão
da Senhora da Saúde,
que nos valia nos anos de peste,
nos meses de guerra,
nas semanas de fome
e nos dias de depressão,
a depressão funda, cavada,
do vale de Alcântara até Xabregas.

Lisboa e os livros, os incunábulos,
os alfarrabistas da Baixa-Chaiado,
as pedras, as cantarias,
as traves mestras
que nos falam da cidade
em construção,
dos arquitectos,
dos trolhas,
dos estucadores,
dos pintores de tabuletas
e de retábulos dourados,
dos aguadeiros
do poço do mouros,
do Carmo e da Trindade
de pedra e cal,
dos engenheiros hidráulicos,
dos agrónomos,
dos agrimensores,
dos silvicultores do pinhal d’el-rei,
dos santos inquisidores,
das freiras e das frieiras
que é coçá-las e deixá-las

no cemitério de todos os prazeres.
Ah, aí onde a vida acaba
na ponta de uma naifa
no Bairro Alto
das fadistas e dos seus chulos.

Mas não de tédio,
minha querida,
diz o pregão da varina,
enquanto houver o 28 para a (Des)Graça
com bilhete de ida e volta,
as Escadinhas do Duque
ou a Calçada do Combro
e os escombros do terramoto
por subir, trepar ou escalar.
E os filetes de alfaquique
ou peixe-galo
com açorda de ovas.
E os pastéis de Belém
e o bife dos ricos
à Marrare
e as iscas com elas
nas carvoarias dos galegos
e o cheiro a carvão e a sardinha,
linda que tresanda
nas ruelas e vielas dos bairros populares.
E o Portugal very tipical
do António de Ferro
com que te quiseram tramar
e as sécias e os peraltas da Belle Époque
que a Avenida da Liberdade
acaba na rotunda das públicas virtudes
e no beco dos vícios privados.

A terna, eterna, Olissipo
onde o azul do céu é único
e te leva a todos os caminhos do infinito.
Ulisses sabia-o
e guardado estava o segredo
do mais fundo do tempo.
E por isso fundeou no estuário do teu Tejo
e trouxe com ele a Helena,
troiana,
transmontana,
fenícia, grega,
cartaginesa, romana,
celta, iberíssima,
goda, visigótica,
moura, berbere, preta,
bárbara, bela, pérfida Helena,
santa e penitente,
globetrotter,
errante, caminhante,
mística, algures perdida,
loucamente perdida
nos caminhos de Santiago.

Que te importa
se Lisboa já não é
uma praça forte,
uma bolsa contra os valores
daqui d’ el-rei
que o paço e o terreiro,
a trono e a régia cabeça,
tremem e estremecem,
entre o Martinho e a Arcádia,
na iminência de um ataque
terrorista.
Dantes chamava-se anarquista,
à bomba regicida,
quando a palavra de ordem era
a bolsa ou a vida.
E não havia as avenidas novas,
do Ressano Garcia,
nem o risco dos engenheiros,
nem a construção a custos controlados,
nem o prémio Valmor,
nem o fundo de mão-obra,
nem o Dow Jones ou o NASDAK.

E estavas tu, Helena,
postada à janela,
com vistas largas
para o casario, a sé, o castelo,
o mar da palha,
a rua do ouro e a da prata,
o augusto senhor dom José a mata-cavalos,
a serra, a arrábida fóssil,
a armada outrora invencível,
a ribeira das naus,
o turista, o voyeurista,
o motorista
do senhor ministro sem pasta
nem forragem para o gado na canícula do verão,
os heróis menores, anónimos,
que vieram morrer na praia,
o velho do Restelo,
que já foi praia sem bandeira azul,
o velho do Restelo agora ainda mais velho
e mais bota de elástico,
o Cesário e a sua idiossincracia,
o Cesário, verde e rubro,
nos estádios dos eurofutebóis,
mais o Eça de Queiroz,
o estrangeirado,
que te amava à maneira dele,
a Sofia, a deusa, a olímpica,
o Almada e os seus marinheiros sem futuro,
o Ary, provocateur,
panfletário,
o luminoso Eugénio de Andrade,
a Amália e a nossa estranha forma de vida,
e tantos outros poetas que te cantaram.
Ah, e o Pessoa, subindo e descendo o Chiado,
de braço dado contigo,
recitando-te o heterónimo:
A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz.
Mas como é que eu sei se teria sido feliz ?

Esquece o Álvaro de Campos, o sedutor,
e deixa-me pôr-te a caminhar
pelos caminhos ínvios e íngremes
desta cidade-sortilégio,
que tu amas, que eu amo, que nós não amamos…
E se, contudo,
há um privilégio,
é sempre o da amizade e do amor,
é esse de poder ter-te
ao alcance da mão e do coração,
entre Paço d’Arcos e o Cais de Sodré,
ou de permeio,
entre o teu blogue e a caixa de correio.
É, enfim, esse privilégio de poder dizer-te:
Como é bom rever-te…
Helena, Lisboa, Tejo e tudo.


________


Nta de L.G.:

(1) Querida Helena: Este é o meu contributo possível para tua festa, o meu e sobretudo o da Alice, que me deu mil e uma dicas sobre ti, como amiga tua de há muitos anos.

A pretexto da prenda que escolheram para te dar (O Livro de Lisboa / coord. Irisalva Moita. Lisboa: Livros Horizonte. 1994), glosei e explorei a tua paixão por Lisboa, o mesmo é dizer, a tua incessante procura da vida, da beleza, do amor, da liberdade, da poesia, do prazer, da felicidade...

Daí a festa que te fizeram na noite de 19 de Maio de 2006, na Casa de Cabo Verde, os teus amigos e amigas de longa data, que trabalharam contigo estes anos todos. Não foi um festa de despedida, mas de (re)encontro(s). Não existe, de resto, essa palavra, despedida, no dicionário dos amantes e dos amigos.

Como escrevi no teu blogue (Caminhos), fiz votos para que algum deles ou alguma delas, te tenham dito nessa noite, ou ouvido:
- Como é bom rever-te, Helena, Lisboa e Tejo e tudo.

Trata-se, se bem reparares, de uma ideia do Álvaro de Campos, um verso que eu adaptei do famoso poema Lisbon Revisited, de 1926.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Blogantologia(s) II - (20) : O país que via passar os comboios

Lisboa > Museu daElectricidade > 2006

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


O país que via passar os comboios


14:13h.
Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.

Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes.
Abro talvez uma excepção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros,
Quando havia o cavador, o boi, a charrua, o burro,
O camponês, o portuga camponês e burro,
A horta, a saída directa para os campos.
As hortas.
O termo apeadeiro faz-me lembrar os tempos
Em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios.
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Caneças, Colares, Sintra...
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.

Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
Que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Aos Fontes.
Mesmo que a minha professora de sociologia histórica,
Filomena Mónica, discípula do E.P. Thompson,
Só goste dos corticeiros
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel
Da Nokia ou da Siemens, tanto faz.
Que as novas tecnologias quando nascem (não) são para todos.

Ou talvez houvesse stresse
Mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, é tão velho como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
Os ferroviários também punham bombas nas linhas de caminhos de ferro.
Para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem.
Resistência ao ocupante nazi.
Será que hoje seriam caçados como terroristas internacionais ?

Não sou ferroviário nem resistente.
Nem anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos.
Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
Vim de boleia.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.
- Lisboa, Sociedade Anónima ?
- Não, Lisboa, Santa Apolónia,
Corrige o portuga por detrás do guiché.
- Mas eu não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
- Lisboa, SA!

Sou um mau utilizador do comboio.
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
- 2ª classe ?,
Pergunta o portuga que fala em nome da CP.
Como se me tirasse as medidas.
Ou espreitasse para a minha secreta conta bancária.
2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe. Gente de 2ª classe
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
E a tua gente de 3ª classe
Nos porões nauseabundos dos cargueiros
Que rumavam às Américas!).

- 2ª classe ou turística ?
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há turística e conforto
No alfa pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
Minha querida professora.
- Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP,
Já não há 2ª classe, garanto-lhe eu.

Em contrapartida, o outro gajo, o do guiché,
Ainda não fez o upagrade do seu software sociolinguístico.
É por isso é que a CP ainda tem a imagem negativa que tem
Junto do público.
- O senhor,desculpe, mas eu sou fã dos comboios
E tinha que lhe dizer isto.
Também vou para Lisboa, desço na Gare do Oriente...

Tenho tempo.
Nada como esperar um comboio numa estação de tipo Coimbra B
Para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Como uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo.
Que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
Que está afixada na parede da estação de Coimbra B.
Alguém mandou afixar.
Creio que em bronze (sou mau em metais):
- "Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
No dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
O Papa João Paulo II".

O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B, o que diria a corte papal!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores.
E os vindouros.
Mas lá fica a tabuleta.
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu,
a caminho do sul.
Para ninguém.
Quem lê neste país placas de bronze afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país?

Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
Desaparafusa a placa e leva-a para casa,
Para o museu ou para a loja.
Não acontece nada em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II.
Em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
Na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia.
Mas esta é a minha leitura.
Peço desculpa aos mais doutos blogadores do que eu.
Peço desculpa aos lentes de Coimbra.

Chega o Alfa.
Just in time,
Como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
Na ponta mais ocidental da Europa.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência
das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor.
Provinciana e ronceira, lá diria o Eça.
Acelera o Alfa.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros.
Isto faz bem à minha auto-estima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
Que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso
Da estação deprimente de Coimbra B.
- Quanto vai dar ?
- Chega aos 200 ou mais,
Diz-me um puto de brinco na orelha...

Não apostei.
Nem gosto de apostas.
Deixei de ser solidário.
- Umas cartas para passar o tempo ?
- Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.

Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória colectiva.
O caminho de Santiago.
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
- Chega à tabela.
Dezassete e seis na Estação do Oriente,
Diz-me o pica, orgulhoso.
- Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela
Ba nossa terra.
Fico sempre com inveja
Quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
- Já não te calha na rifa.
Agora são vinte e cinco cães a um osso.
- Vai desejar tomar alguma coisa ?,
Pergunta no futuro próximo o homem do chá, café, laranjada...
- Um Prozac, por favor.
- Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
- Sim ?
- Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último.
Estação de Atocha.
Madrid.
Não leu nos jornais ?
- Não, acabo de chegar doutro planeta.
- En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías...
- Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos.
- Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
Muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
Que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
Se dirigen luego a Chamartín
Y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha
Desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
Que va a Andalucía...
- Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
- Só faço a península ibérica.
Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela...
- E não tem medo do futuro dos comboios ?
- Não... Com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida
De qualquer jeito.
- Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.

Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto. Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
Que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café para te tirar o sono.
- Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, ainda menino e moço!?
- É a voz do sangue, o meu lado de marinheiro que nunca fui.

Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas, uma feixe de linhas e cheiro a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais.
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa.
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
- Política, meu estúpido!,
A primavera política do Marcelo Cetano.

Eras jovem
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris.
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor.
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
Para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
Os grandes de Espanha que estão no Prado...
- És doido, ou quê ?!
Com a pide à perna,
Mais os fascistas da guardia civil!

Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo.
O país que mexe.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
Quando estou no hotel.
Três estrelas, o hotel. Novo.
Bom serviço.
Mas faz frio à noite.
- Voyeurismo, pensa ela.
A rapariga do bar.

Oito páginas,
Entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatinha dengosa"...
Linguagem de código.
A semiótica da solidão.
Do sexo triste e solitário.
- Ligue para o meu telemóvel,
Qu a crise bate a todas as portas,
Sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.
- A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
- Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
- Não sei se cresceu bem...
Não sou de cá.

O Politécnico, o túnel de Viriato.
Os colóquios. Os debates. As ideias.
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O comércio.
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Cavaquistão.
- Ruas, estás de granito!,
Diz o grafito.
(Ruas é o presidente da Câmara)

Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:
- Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
- Só falta a Universidade,
Que mais de 10 mil universitários já cá temos.
- Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
Os malandros da Covilhã.

Outro lóbi beirão, o da Covilhã.
Registo o orgulho dos putos
Da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
Que realizam anualmente as suas jornadas de enfermagem.
Este ano, na sua 16ª edição.
O país mexe.
Viseu mexe.
O país profundo mexe.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
Vstidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. Passou o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
- O Alfa vai a 140, ó puto.
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
Lio do tabelau de bord.
- Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
- Porquê ?

Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras.
Modernização da linha.
Tenho um pensamento para com os trabalhadores anónimos
Que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? Africanos ? Imigras ? Clandestinos ?
- Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
- Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, o inferno na terra.
Mas aí são magrebinos.
- O novo proletariado do Século XXI.
- Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
- Dá o Benfica na SporTV.

E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
O branqueamento de dinheiro
Qe vai por essa nova Lisboa Oriental.
A luxuriante estação do Oriente.
Just in time.

17:06h.
Cheguei.
Balanço do cliente:
- Pensei que já fosse o TGV.
O TGV é que é.
- Não é o TGV,
Ms por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular.
Turística, claro.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal & Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
E o puto tinha razão:
Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo
Os 210.

Um dia ainda vou ter orgulho na CP
E na terra onde nasci
E onde nunca vi passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
Nem chegam a Viseu.
Um abraço aos viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem.
De Expresso, pelo IP3 acima.
Com regresso de comboio.
Se não matarem o comboio que pára em Coimbra B.
E não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha
Qando voltar a Coimbra B.
De Lisboa SA com amor.


(Revisto nesta data)
____________
(1) Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em post de 25 Março 2004 > Portugal sacro-profano - XVI: De Coimbra B a Lisboa SA