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sábado, janeiro 19, 2008

Blogantologia(s) II - (62): O que é feito de ti, Maria Bárbara ? E das operárias de Castelo de Paiva ?

Clarks ou: as multinacionais têm alma ? (1)

Uma das habituais perguntas da Bárbara,
e esta por sinal muito pouca metafísica.
Perdi-lhe o rasto,
à Maria Bárbara,
aliás, Barbarian Girl.
Só lhe conhecia o nickname,
além de uns escassos dados biográficos
que ela deixava transparecer nos seus postes,
habitualmente escritos em letra minúscula,
em estilo telegráfico:
lembro-me, por exemplo, que morava em Lisboa,
nas Avenidas Novas, e tinha uma avô galega;
andava em biologia da Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa.
Já deve ter acabado o curso,
já ter feito um mestrado,
quiça até o doutoramento,
tendo depois ficado a engrossar o número dos desempregados jovens
com títulos universitários.

Nunca nos cruzámos por aquelas ou outras bandas.
Trocámos apenas alguns e-mails.
Nunca lhe vi uma foto.
Participou em alguns temas de discussão
que eu próprio suscitei
ou em que intervi,
nos saudosos Fóruns do Publico.pt > Cidadania.
Um desses temas de discussão foi sobre a
"Clarks: ou as multinacionais têm alma?".

Revisitei aquele cantinho do ciberespaço,
como eu lhe chamava.
Com alguma saudade, diga-se de passagem...
Dela e doutros cibercidadãos:
a Isabel Coutinho, a tabagista militante,
o Migoma,
o Jota Lourenço,
o Cibernocturno,
o Dr. Hipócrates,
o Fiatux,
a Megane,
a Raquel,
o Eugénio Rosa,
a Eva Luna,
o J.B. Mendes,
o Queirós,
o Eljump,
o Deus das Moscas,
o Bafo de Nuca e outr@s...

Incisiva, contundente, agressiva como sempre.
A Bárbara.
Creio que eu fiquei com um fraquinho por ela.
Era uma mulher generosa
de uma generosidade que é(era) própria dos verdes anos
mas sobretudo de um já maduro sentido de cidadania...

BNão se era feia se era bonita.
Confesso que gostaria de saber por onde pára ela,
a Barbarian Girl.
E já agora gostaria também de saber do paradeiro
.daquelas mulheres (e homens)
que a Clarks mandou para a rua.
Na voragem mediática dos acontecimentos do dia-a-dia,
Castelo de Paiva e a sua gente foram durante anos notícia nos media
por causa da tragédia da Ponte de Entre-os-Rios
e do julgamento dos seus presumíveis responsáveis...
Sei que perder o emprego ou a vida não é a mesma coisa.
Em todo o caso, pelo seu impacto,
o despedimento colectivo do pessoal da Clarks,
em Castelo de Paiva,
foi notícia nacional por um dia, por uma semana.

castelo de paiva ?
sabes onde ficava, Bárbara ?
eu não...
que uma desgraça nunca vem só,
dizia então uma operária da multinacional do calçado
que, depois de arouca, decidiu fechar a sua segunda unidade fabril
em castelo de paiva.
mandaram para o desemprego mais 600 trabalhadores.
a acrescentar aos outros 300 e tal de há dois anos.
primeiro, foram as minas do pejão que encerraram de vez;
depois foi a tragédia de entre-os-rios;
e depois foi a clarks que se mudou,
de máquinas e bagagens forradas a euros,
para outro paraíso capitalista.
para outra terreola qualquer,
talvez parecida com castelo de paiva.
talvez do leste europeu,
com tabuleta escrita em caracteres eslavos;
não importa onde,
desde que haja sempre gente disposta a vender a sua força de trabalho
por um punhado de cêntimos.
é o circo trágico-cómico das multinacionais
que montam e desmontam fábricas,
em qualquer parte do mundo.
faz-me lembrar os recintos das touradas desmontáveis no verão.

não creio, tal como tu, Bárbara, que as multinacionais tenham alma.
não creio que os tecnocratas que as governam tenham alma.
ou que saibam, no mínimo, compreender a raiva das pobres mulheres operárias
que entraram tarde para o mundo do trabalho.
e que agora se sentiram usadas, abusadas, deitadas fora, velhas, traídas.
imagino que seja esse o sentimento de se ser despedido colectivamente.
e no entanto o mundo é assim, dizem-nos.
os teóricos.
os intelectuais.
os gurus.
os padres.
os sociólogos.
os políticos.
os jornais.
e não há volta a dar-lhe.
os cães ladram e a circo das multinacionais passa.
são elas que governam este mundo.
são elas que dão e baralham as cartas.
são elas que nos vestem e calçam e criam os mitos que nos alimentam.
são elas que são donos do destino de milhões e milhões de pessoas.
pobres diabos e diabas (de é que há diabos no feminino, Bárbara),
contentes hoje por terem pão para a boca.
desesperados amanhã porque já não sabem onde vão buscar com que pagar
as prestações da casa e do carro.
ouvimos o presidente da câmara de castelo paiva dizer
que o total de despedidos eram 25% da força de trabalho industrial do concelho,
3% da população do concelho.
e nós perguntámo-nos onde estavam então os líderes do nosso país,
levando um pouco de conforto e de esperança
àquela pobre gente,
como na altura da tragédia da ponte.
eu não sabia, tu não sabias,
onde ficava castelo de paiva,
mas o presidente da república,
o primeiro ministro,
o ministro do trabalho,
o patrão do investimento estrangeiro,
e todos os restantes senhores
deviam saber onde ficava castelo de paiva.
dizem-nos que a esperança é a última coisa a morrer.
mas a verdade é que também morre.
e infelizmente morreu para os trabalhadores da clarks,
uma multinacional sem alma.

fui espreitar o site dos gajos.
dos sapateiros ingleses.
nem uma palavra em português.
nem uma palavra em qualquer língua para os seus colaboradores.
lá dentro (do sítio), dizem-me,
“a world of comfort and style awaits you”…
valores como a responsabilidade social,
o respeito pelos direitos de quem trabalha
ou o cumprimento da palavra dada a uma comunidade inteira,
parece que são coisas que não constam dos core values desta multinacional. valores ?
são para pisar pelas botas altas das manequins no estrado da alta moda...
e depois quem sabia onde ficava castelo de paiva,
uma minúscula peça do puzzle da europa das multinacionais ?
mas vale a pena, Bárbara, barbaramente revoltada e deprimida.


_________

(1) Publicada originalmente, noutra versão, em prosa, no Blogue-Fora-Nada, em 26 de Outubro de 2003 > Portugal sacro-profano - IX: O que é feito da Barbarian Girl ? E das operárias de Castelo de Paiva ?

quarta-feira, outubro 10, 2007

Blogantologia(s) II - (58): Tratamento VIC (Very Important Client)

Eu, blogador, me confesso:
sei agora até que ponto sou um tecnicodependente.
Em boa verdade,
sou um pobre tecnicodependente.
Estive dois dias sem computador
e, imaginem!,
fiquei doente,
foi como se eu tivesse partido as pernas,
o mundo tivesse desabado,
a vida perdido o seu sentido.

Eis a estória,
em síntese:
A placa gráfica do meu PC,
de topo de gama
(talvez a peça mais cara do meu brinquedo!),
bifou,
e o resto da máquina recusou-se a trabalhar.
O material é assim.
Neste mundo é o material que tem razão.
Aliás, o material tem sempre razão,
dizem os engenheiros.
Mas, eu, tecnicodependente,
é que não estive nada pelos ajustes.
Tive um ataque de nervos,
digno de um verdadeiro primata,
de um macho babuíno,
de um egocêntrico e miserável mandril.

Triste episódio este,
ridícula situação a minha,
reacção pueril...
Um homem já não é mais mais o que era,
sobretudo depois de regressar vivo,
mas não incólume,
não impunemente,
da guerra (colonial).
É duro, mas tenho de confessá-lo.

À parte este registo intimista,
deixem-me dizer-vos
que felizmente valeu-me,
nesta triste ocasião,
a pronta assistência do meu fornecedor
e sobretudo a amizade do João.
O meu PC estava dentro da garantia
e eu tive um tratamento VIC
(leia-se: very important client).
Por sorte, havia duas placas gráficas
do mesmo modelo e marca em armazém.
Mas por azar nenhuma delas funcionava.
Dizem-me que é um erro de produção num lote inteiro,
um erro de série.
Eu digo que é falha grave
uma falha que escapou ao controlo de qualidade
por parte do fabricante...
Enfim, à terceira tentativa lá se optou
por um novo modelo de placa gráfica,
de outra marca,
mas igualmente made in China.

Podiam ter-me dito:
o seu PC vai para arranjar
e, quando estiver pronto,
a gente telefona-lhe.
Mas não, deram-me um tratamento VIC,
trataram-me como cliente muito importante,
ou simplesmente como cliente,
ou tão apenas como pessoa...

Tenho pena de não poder publicitar aqui os seus nomes,
o da empresa
e a dos seus colaboradores
que me atenderam e resolveram o meu problema.
Em boa verdade,
era naquele momento
o meu pequeno problema existencial.
Mas a minha vontade
era mesmo elegê-los os portugas da semana.

Devo dizer-vos que é gente do melhor.
E bem precisava este país de multiplicar o seu número
por cem.
Juntando mais 10 AutoEuropas
tínhamos muitos dos nossos problemas colectivos resolvidos.
Para já, tudo somado,
eram mais uns 150 mil postos de trabalho
com um significativo peso no nosso PIBezito,
graças ao seu considerável VAB
(leia-se: valor acrescentado bruto).

Já que estou aqui hoje,
e para mais em maré de confidências,
direi que o que é bom no tratamento VIC,
é tu sentires mais do que cliente,
é sentires-te gente,
pessoa, de carne e osso.
Eu gostei de sentir-me gente esta manhã,
mesmo tendo perdido uma manhã da minha vida
à espera que resolvessem
o meu pequeno grande problema,
que o nosso problema é sempre
o maior problema do mundo.

Sentir-se gente é uma coisa
que começa a faltar neste país.
Uma pessoa sentir-se gente,
alivia as dores,
do corpo e da alma
faz bem à nossa auto-estima,
diz o meu psicólogo
que passou a substituir o meu confessor
do tempo em que eu era menino e moço
e tinha fé,
esperança
e caridade.

Quanto ao problema técnico
que causou a minha infelicidade durante dois dias,
ele é apenas um dos muitos efeitos perversos
da globalização.
Graças à mão de obra quase escrava da China,
a globalização operou este espantoso milagre
do embaratecimento do material electrónico,
incluindo os PC
e os respectivos periféricos.
Lembro-me do primeiro PC que comprei
há mais de um dúzia de anos...
Era um oito seis e troca o passo!
Custou-me os olhos da cara.
Hoje nem para peça de museu o queriam em lado nenhum.
Já foi para o lixo,
nem sequer para o ecoponto
(Shame on you!)
depois de anos passados no limbo do sótão
das velharias.

Deixem dizer-vos que me separei dele,
sem uma ponta de emoção:
estava velho, obsoleto, ultrapassado.
Foi para o sótão, foi para o lixo, e pronto!.
Foi tratado afinal como se tratam hoje
os velhos neste país.
Já o mesmo não aconteceu
à minha velha máquina de escrever:
esqueci o nome da marca e do modelo,
mas ainda hoje a recordo
com a ternura dos meus 17 verdes anos...
E que saudades do martelar seco das suas pequenas teclas!

De qualquer modo,
protesto contra todas as formas de tecnicodependência,
seja a do carro,
do telemóvel,
da máquina fotográfica,
da escova de dentes,
do micro-ondas,
do multibanco
ou do PC.
Um dia o mundo desaba mesmo
e a gente não sabe sequer escrever a giz
no quadro de ardósia da nossa velha escolinha,
plantar umas pencas,
enterrar um morto,
cuidar de um vivo,
fugir a sete pés dos nossos predadores,
da peste, da fome e da guerra,
fazer um filho e pô-lo a medrar
nesta vida e neste mundo.

É um cenário aterrador
mas perfeitamente verosímil.
A regressão
(económica,
social,
tecnológica,
política,
cultural,
moral,
humana...)
tem-se passado em muitos países à nossa volta,
nas nossas barbas,
da antiga Jugoslávia ao Iraque.
Perdi o contacto com as minhas amigas jugoslavas,
croatas e sérvias,
todas elas médicas.
Uma amizade que fiz em Valência
em 1991.
Estava eu para partir para Zagrebe,
para frequentar um curso de verão,
o primeiro curso europeu
sobre promoção da saúde,
quando eclodiu a guerra civil nos Balcãs.
Acabei por ficar o tórrido mês de Agosto
em Valência,
traduzindo de espanhol para inglês as más notícias
que nos chegavam da Jugoslávia.
Ironicamente,
em Valência ainda se faziam sentir,
na memória dos mais velhos,
as marcas cruéis e recalcadas
da guerra civil espanhola
de 1936/39.

Passados estes anos todos,
perdi-lhes o rasto,
às minhas amigas jugoslavas,
uma delas sérvia casada com um bósnio...
E sobretudo tenho pudor em perguntar por aí
se elas ainda estão vivas,
se estão bem,
se não foram violadas,
fuziladas,
enterradas numa vala comum...
E se as encontrassse não saberia como perguntar-lhes,
olhos nos olhos,
se elas tinham conseguido voltar à vida
depois do pesadelo
que foi o desmembramento do seu país
e, em muitos casos, das suas vidas,
das suas famíliasd,
das suas rotinas,
das suas memórias,
da sua identidade...

Rezo, ao menos,
para que elas tenham voltado a sorrir
e a ter esperança.
Mesmo sem computador, e-mail, webpage ou blogue.
Mesmo já sem saber rezar
como quando era menino e moço.
Pensar nas desgraças piores que as nossas
sempre alivia um pouco.
É safado dizê-lo ou pensá-lo,
mas alivia.


Originalmente publlicado em: Luía Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-fora-nada > 8 de Janeiro de 2004 > Socio(b)logia - IV: A tecnicodependência

Revisto em 10 de Outubro de 2007:
a pensar no sr. Carlos Pinto,
chefe de oficina da Santogal,
a RTM, de Alfragide,
que me tratou como um VIC,
que me tratou como gente,
quando, desalentado, lá deixei o meu carro,
empanado...
Como é importante, para todos,
as empresas e os seus clientes,
a economia e o país,
terem pessoas como o João
(hoje posso acrescentar, da Databox)
ou o Carlos Pinto, da Santogal,
que nos sabem transmitir confiança,
diagnosticando o nosso problema
e mostrando que afinal
ele é importante
e que tem solução,
mas que, apesar de tudo,
nem tu nem o teu problema
são os mais importantes do mundo.