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quarta-feira, setembro 10, 2008

Blogantologia(s) II - (71): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra

Com o atraso de décadas, quiçá de séculos,
presto hoje o meu preito às mulheres portuguesas
que se vestiam de luto
enquanto os maridos ou noivos ou namorados ou irmãos
ou simplesmente amigos
andavam na guerra do ultramar,
Ou guerra colonial, como se queira.

Já foi há tanto tempo
que eu perdi as contas aos contos,
às estórias, às vidas, às lendas,às narrativas.

Venço, por fim, a minha relutância,
o meu preconceito, o meu medo do irracional
e porventura o meu medo visceral do sagrado,
e presto a minha homenagem
às mulheres que rastejavam no chão de Fátima,
implorando à Virgem o regresso dos seus filhos,
sãos e salvos.
Só as mulheres, em bando, são capazes
de implorar a piedade dos deuses
e ao mesmo aplacar a sua ira,
para logo a seguir imprecar contra eles,
se for caso disso.

Decididamente, sem pejo nem pudor,
presto a minha homenagem
às mulheres que continuavam,
silenciosas e inquietas,
ao lado dos homens
nos campos, nas fábricas e nos escritórios.

Por que havia um silêncio
que não era cumplicidade,
que não era traição,
que era inquietação,
que não era claudicação,
que era a raiva a crescer dentro do peito,
que era porventura já a emergência, a explosão
da revolta e da liberdade.

Descubro a cabeça,
tiro o chapéu,
ajoelho-me,
perante estas mulheres do meu país
que ficavam em casa,
rezando o terço à noite,
como a minha mãe e as minhas manas
e até o meu pai,
a quem, de resto, nunca agradeci este gesto de amor.
Nem em público nem em privado.
Nunca saberia, porventura, merecê-lo
nem muito menos agradecê-lo.

Mas também endosso
as minhas palavras de admiração
às que aguardavam com angústia,
pelo aerograma, na hora matinal (e às vezes mortal),
do correio,
vindo do SPM número tal.
Sem esquecer as que, muito poucas,
subscreviam abaixo-assinados
contra o regime e contra a guerra.
Às que, muito poucas,
escreviam, liam, tiravam a stencil e distribuíam
comunicados e folhetos clandestinos.

Às que, também raras,
sintonizavam altas horas da madrugada
as vozes da rádio que vinham de longe
e que falavam de resistência
em tempo de solidão e de servidão.

Homenageio, sim, àquelas que, muitas,
tiravam carinhosamente
do fumeiro (e da barriga)
as chouriças
e os salpicões
e os nacos de presunto
e as morcelas
e as alheiras
que iriam levar até junto dos seus filhos,
homens-toupeiras,
no outro lado do mundo,
no calor dos trópicos
e na humidade dos abrigos,
um pouco do amor de mãe,
das saudades da terra,
dos cheiros da casa e dos animais,
dos sabores da comida,
e da alegria da festa.

Mas também, e por que não, às, muitas,
e em geral adolescentes, virgens,
e às jovens solteiras, namoradeiras,
que se correspondiam com os soldados
mobilizados para o ultramar,
na qualidade de madrinhas de guerra.

Não tive, nunca quis ter, madrinha de guerra,
por preconceito, por orgulho e preconceito,
por achar que era uma instituição ou criação
do Estado Novo,
dos senhores da guerra,
e das senhoras que os geravam…

Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma
a uma madrinha de guerra.


Lisboa, 1981/2008