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sábado, dezembro 03, 2005

Blogantologia(s) II - (21): O deve-e-o-haver de 2004

Máscara do Mali.

Fonte: Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 21 de Novembro de 2004 (Um dos melhores museus de etnologia da Europa, aqui tão perto!).

Foto: © Luís Graça (2004).


Post originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > Blogantologia(s) - XXII: Saldo(s) para o ano de 2005


A todos os homens e mulheres (i) que cabem na minha lista de e-mails ou (ii) que a transbordam ou (iii) que circulam, a desoras e sem rumo, na blogosfera, (iv) quer façam ou não o favor de serem meus amigos: deixem-me desejar-vos o melhor da vida para o Novo Ano que, dizem, aí vem!!!

L.G.


Car@s amig@s planetári@s:

Eis-nos chegad@s
Ao fim do ano de dois mil e quatro,
E digo fim
Porque é já inverno
E faz frio
E porque acabei de arrancar
A última folha amarelada do calendário.
E digo fim para não praguejar
E para não ir parar com os quatro costados
Ao inferno.

Dizemos fim do ano
Por mera convenção ou conveniência.
Ou se calhar,
Por tristeza ou desfastio,
Cansaço, saturação, impaciência.
Depressão, dirá muita boa gente.
Ou só por que nos deu na real veneta;
Em suma, dizemos fim
Sem qualquer razão aparente.

Na prática não chegámos ao fim,
Não chegámos a parte nenhuma,
A pé, de carro, de barco ou de dromedário,
À boleia, a nado ou até de parapente,
Que o chegar é sempre a um algum sítio,
Lugar, porto, ilha, montanha de bruma,
País, continente, planeta,
Ou pico do Evereste.
E chegar ao fim
É sempre sinónimo de festa.

Não arribámos a nenhum porto
Ou outro ponto imaginário
Do globo terrestre;
Não fomos pioneiros,
Não descobrimos a misteriosa citânia
Da nossa proto-história lusitana
Nem sequer a porta do risonho futuro
Que há-de vir;
É tudo treta,
Não fomos os primeiros
Nem sequer os últimos
A cortar a meta;
Não fomos notícia,
Nem mesmo em Alcácer Quibir;
Não estávamos entre os anónimos mineiros
Soterrados na China e na Ucrânia;
Não houve festa, nem luto, nem bomba atómica,
Não houve alvoroço, nem foguetes,
Nem estátua equestre,
Nem sequer a banda trágico-cómica
Dos bombeiros voluntários
Do Emir Kusturica.
À nossa espera
Ou no nosso enterro.

Vendo bem,
Não fizemos nada de heróico,
Não salvámos a humanidade,
Não fizemos a guerra,
Não lutámos contra os canhões,
Não assinámos a paz,
Nem sequer levámos a carta a Garcia.
Enfim, não ganhámos nenhum prémio,
Nem sequer o Nobel, nem a lotaria,
Muito menos o Euromilhões;
Em resumo, dizem-nos que,
No ano da graça do senhor
De dois e mil e quatro,
Tu e eu, nós todos,
Nada temos de concreto
Para celebrar.

Mas chegados ao fim do ano,
É costume fazer-se o balanço,
Se não da viagem,
Pelo menos do deve-e-haver
Das nossas vidas,
Da carga preciosa que transportamos connosco,
Que é a vida e o dever de a viver.
Que é o fogo da vida
E a obrigação de o alimentarmos,
O pequeno milagre
Ou o simples facto
De estarmos vivos,
De ainda estarmos vivos
E de estarmos juntos.

Façamos, pois, o balanço,
Meus amigos,
O deve-e-haver deste ano
De dois mil e quatro,
Que se calhar foi um annus horribilis
Como os anteriores,
Para a maior parte dos homens e mulheres,
Noss@s vizinh@s planetári@s.
Que a vinte e três de dezembro,
O horóscopo da humanidade
Não está em condições de prever
Terramotos, catástrofes, pestes, tsunamis,
O cortejo dos horrores
Que costumam acompanhar os cavaleiros do Apocalipse.

Façamos o balanço das nossas vidas
Como pessoas, como grupos,
Como instituições, como países.
Siga-se, nesta matéria, a tradição,
Que a tradição ainda manda,
E com isso não vai grande mal ao mundo
(Se querem saber a minha opinião).

Como sempre, houve coisas boas
E coisas más
Ao longo do ano que agora finda.
Releguemos as más para os historiadores.
Ou para o nosso confessor, psiquiatra ou confidente.
Ou para o diário secreto de Narciso.
Em boa verdade, as coisas más vão ao fundo,
Não flutuam como os corpos,
São, por definição, para esquecer.
- Dorme, que foi um sonho mau!,
Diziam-te em criança.
Criança sem juízo,
Sem dente do siso.

Abramos, pois, os nossos corações
Para falar ou dar testemunho
Das coisas boas que nos aconteceram.
Que a hora é de desafivelar as máscaras
Dos actores que também somos.
Maus, canastrões,
Mas que importa, se o palco é tudo!

Falemos dos acontecimentos
De que fomos protagonistas.
Pequenos, sem dúvida,
À nossa escala, à escala humana,
Mas importantes,
Para nós, a nossa família, os nossos amigos,
As empresas ou organizações onde trabalhamos,
As pessoas que confiaram em nós,
Que apostaram e acreditaram em nós.

Falemos das situações de que fomos
Actores de verdade, actores de facto.
Independentemente do nosso papel,
E do tamanho do nosso papel.
Ou do número de graus de liberdade
A que temos direito
Ou que fazem parte do nosso contrato.
Que o importante foi ser actor
E não mero figurante.

Falemos dos projectos
De que fomos gestores
Ou simples trabalhadores
De equipa.
Falemos dos conhecimentos novos
Que tivemos o privilégio
De produzir, obter ou divulgar
Através do nosso trabalho, estudo ou formação.
Dos livros que lemos ou escrevemos
Ou que comprámos para ler mais tarde,
”Quando formos velhinh@s
E tivermos todo o tempo do mundo”
(Oh, doce ilusão!).

Não nos esqueçamos de evocar
As pessoas fantásticas que conhecemos.
Mas também os filmes de última hora
Que perdemos no trânsito da vida.
Ou as estórias que não ouvimos ou não lemos,
Por falta de paciência ou de audiência
Ou de simples lugar de estacionamento
No hall congestionado do planeta azul.

Falemos das oportunidades que tivemos
De fazer coisas novas,
Inovadoras, ou simplesmente úteis,
Para nós, para os outros, para o nosso país.
E que não desperdiçámos.
Ajudando o mundo a tornar-se
Mais amigável
Ou, pelo menos, mais habitável.

Falemos das pequenas coisas boas
Que nos aconteceram,
Não por mero acaso,
Mas porque as merecemos,
(Sem falsa modéstia!),
Porque lutámos por elas,
Porque outros nos ajudaram a conseguí-las
Porque juntos conseguimo-las.

Falemos ainda do nosso crescimento interior:
Se estamos mais sábios, mais atentos,
Mais conscientes da água que corre nos nossos rios
Ou do HIV/SIDA que nos está matando,
É porque crescemos por dentro.

Mas sejamos capazes também de falar
Das brincadeiras ou partidas
(Não das sacanices!)
Que fizemos uns aos outros.
Que o brincar não é proibido,
Ou não deveria sê-lo,
Que o brincar devia mesmo ser obrigatório
Na escolinha da vida
E nos locais de trabalho
Onde, já crescidos, a ganhamos.

Falemos dos e-mails que trocámos
E que encheram as nossas caixas de correio.
Das anedotas que contámos.
Até das de mau gosto,
Xenófobas, racistas e sexistas.

Falemos do pão, do queijo e do vinho
Que partilhámos com alguém,
Ao fim da tarde,
Não importa onde,
No Alentejo, em Angola, ou no Minho,
Em qualquer parte onde
Temos um amigo, um parceiro, um compincha.
Que o companheiro (do latim cum + pane) é
Justamente aquele que compartilha connosco
O pão e o vinho à mesma mesa.

Sim, falemos das emoções
Que pusemos em cima da mesa.
Ou da ausência delas.
Da paz que conseguimos, em certas ocasiões,
Estabelecer connosco e com os outros.
Sim, falemos da paz:
Nada como um minuto de paz
Ao fim do dia, no fim do ano.
Um minuto, uma hora,
Mesmo se o fim do ano é uma treta
Do calendário gregoriano.

Falemos, por isso, e já agora
D@s velh@s amig@s que voltámos a encontrar.
Em viagem,
Num terminal de aeroporto,
Numa esquina de rua congestionada,
Num bar triste de uma cidade
Em que estávamos de passagem.

Falemos d@s nov@s amig@s que fizemos.
Sem esquecer @s querid@s amig@s
Que perdemos, assim sem mais nada,
Por razões de vida ou de morte,
Ou de que perdemos simplesmente o norte,
O telefone, o fax, o endereço, o e-mail, a morada.

É a pensar em vocês tod@s
Com quem trabalhei, interagi, vivi, falei,
Discuti, barafustei,
E, se calhar, até magoei e decepcionei,
Durante o ano de dois mil e quatro,
É a pensar em tod@s vós,
Que eu peço ao Pai Natal
(Que eu ainda acredito nele,
Seja isso idiota ou infantil,
Muito pouco ou nada racional!)
Para pôr no vosso sapatinho
Esta singela mensagem:
“Que a nossa amizade seja…
O saldo contabilístico, positivo,
Que transita para o ano de dois mil e cinco”.

Estou-vos obrigado,
A todos vós,
Pela parte de mérito que vos coube
Nas pequenas coisas boas
Que me aconteceram, nos aconteceram,
Em dois mil e quatro.
Resta-me pedir-vos, sensibilizado:
"A mim, desculpem-me lá qualquer coisinha!"...

L.G.

Lisboa, 23 de Dezembro de 2004

sexta-feira, outubro 07, 2005

Blogantologia(s) II - (8): Quando os ventos sopram em Assuão

Originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada, em 14 Setembro 2004
Blogantologia(s) - XVIII: Quando os ventos sopram em Assuão é verão




Quando os ventos sopram em Assuão
É verão.
Aqui o verão é fértil,
O verão é fútil,
O verão é fértil em coisas fúteis.
O verão é fértil
No Vale do Nilo.
E fútil
Em Abu Simbel.

É no Verão
Que se come melancia
Ao quilo.
Enquanto amadurecem as tâmaras,
Vende-se a cultura a granel
Em folhas de falso papiro:
- Welcome, sejam bem vindos a Assuão!

Senhores do norte,
Em Agosto resiste-se melhor à melancolia
Do entardecer
Em África,
Bem como ao medo das escuras câmaras
Da morte,
Na linha do horizonte,
Abaixo do Trópico de Câncer.

Em Abu Simbel,
O verão é ostentação.
Eu prefiro
Os ostraca
Onde o operário
De Deir el-Medina
Falava da sua condição
De produtor, de artesão,
De construtor de túmulos,
De guardador de segredos,
De malandro e de grevista,
De salteador e de ladrão,
De violador de medos
E de barqueiro de Queronte.

Eu sempre achei que esta estação
Não rimava com poesia.
Mas eu não sou o Ramsés Segundo
Nem conheço o caminho irreversível
Para a imortalidade.

Aqui o verão é fértil
Em coisas fúteis
Como o escriba acocorado
Perante o espectáculo risível
Do mundo globalizado.

Na terra prometida do pão e do mel
Tenham cuidado, meus senhores,
Com os vegetais,
Bebam águas minerais,
Levem dimicina e ultralevure
Por causa dos desarranjos intestinais.
- E o vírus do Nilo ? É mortal ?
- Descanse, minha senhora,
Que o barco tem escolta policial.


Na Ilha Elefantina
Não há manicure,
Há apenas pessoas inúteis
Que adoram subir aos píncaros do verão.
De camelo.
- Sobretudo não tome uísque
Com gelo,

Pode ler-se numa tabuleta
À beira do lago Nasser.
- Meus senhores, estamos em África,
'Be careful'.


Aqui o verão é, por excelência,
O paraíso com o ocre
Como pano de fundo.
O verão é uma casa de adobe
E uma esteira no chão
E os altos muros do deserto
Estrangulando o fio de água da vida.
- Ah, o nascer e o pôr do sol,
Não esquecer de desfrutar
O deus-sol.

Porque o verão no Egipto
É a rosa do mundo.
O misticismo. A demência.
Os calores de Santa Teresa d’Ávila
Em trabalho de múltiplos orgasmos.
No Vale dos Reis.
E das Rainhas.
E dos Nobres.
Esqueçam, por favor,
A mastabas dos pobres:
- Não vêm nos roteiros turísticos!

O verão é o sexo distendido.
O músculo relaxado.
A alma em carne viva.
A praia. O creme Nívea.
O postal ilustrado.
A alegre promiscuidade
Dos cinco sentidos.
O Cairo em três dimensões.
O meu gin tónico com limão.
A carne em decomposição.
O desastre humanitário.
Mais ao fundo a Núbia, o Sudão.
Os dóceis núbios.
As volúpteis núbias.
A tragédia de Darfur.
A louca montanha russa.
O bazar.
A dança do ventre
Dançada por travestis, canastrões.
A mesquita de alabastro.
O mítico mar vermelho.
A Sagrada Família.
Jesus, Maria e José.
O burrinho puxando a nora.
A felicidade a preço de saldo.
O exotismo com molho de bechamel.
O oásis no deserto.
Todos os estereótipos do mundo.
- Tirem uma fotografia digital.
Da varanda do hotel Marriott.

Gostaria de apresentar uma reclamação,
Por escrito, ao senhor vizir:
- Eu estive em Abu Simbel
E experimentei as dificuldades
Da comunicação humana.

O verão é o Vale do Nilo
Um gigantesco falo
Que penetra, fundo,
A terra árida e seca
Da Mãe África.
Gretada, a terra, a carne.
- White women, carne branca.
I Egiptian man, fertility man.
Portugal ? Good, Luís Figo.


Do alto da mesquita de Najaf,
Mais acima no mapa do corpo humano,
Diz o guia, o nosso guia,
Com o coração sangrando
De dor
Pelos seus irmãos,
Xiitas, sunitas, ismaelistas;
Ou do alto das pirâmides de Sakara
Há um imã que te notifica
Por carta registada com aviso de recepção:
- Que a vida eterna te chama
E exige a mortificação, a mumificação.


Recebi hoje correio de Lisboa
Onde a fertilidade da futilidade
É agora um problema de saúde pública.
Um osso duro
De roer.
Tão duro como o granito de Assuão
Donde sopra o vento que modela
O rosto das esfinges.

De Lisboa ao Cairo
Ergo o templo do futuro
Com paragem técnica em Luxor
Para consultar os arquitectos da eternidade.
A antiga Tebas, a cidade das cem portas,
É hoje um pequeno burgo.
E o meu guia, egípcio, brasileiro,
Diz que tem o coração a sangrar.
Marcos chora pelos seus irmãos
De Najaf, no Iraque,
E confidencia:
- Eu nunca poderia trabalhar
Para os meus inimigos e vizinhos de Israel.
Por muito dinheiro que me pagassem.


Tenham santa paciência.
Os pobres. Os diabos.
Os pobres diabos.
Os santos. Os turistas.
Os contribuintes.
Os camponeses.
Os escribas.
Os guias turísticos.
Os romancistas policiais.
Os arqueólogos.
Os caçadores de tesouros.
As esposas dos ricos homens de negócios das arábias.
Os sacerdotes do templo de Kom-Omb
Que eram carecas.
- E sobretudo os pobres.
Porque deles será o reino da terra.


Pobre planeta, sem rei nem roque.
E com tantos súbditos.
Por favor ponham a escrita em dia.
Pesem a alma.
Meçam as bolsas.
Leiam o Livro dos Mortos
Ou A Morte no Nilo,
Que o barco vai zarpar.
- Um oiro um oiro, amigo.
Para o Habibo.
E para o camelo do Habibo.
Óscar, de seu nome.


E o Estado garante
Que não pode ser,
Que não pode mais no futuro
Garantir que é Estado.
E muito menos Estado-Providência.
E pagar o leitinho às criancinhas.
E o funeral aos velhinhos.
E a múmia do faraó.
Deixem isso às madraças
E à caridade em tempo de Ramadão.

Resta-nos a Alta Autoridade do Nilo
Que regula os influxos
E os defluxos dos deuses.
E a exploração do trabalho infantil
Nas escolas-fábricas de tapeçarias
Em Memphis.

Na verdade,
O verão é apenas uma estação.
De comboio.
Do comboio de via estreita
Que vai do nascer ao morrer.
Ou quem diz estação
Diz cais. De chegar. De apodrecer.
Como esta falua do Nilo à beira Tejo
Que é o rio que passa à minha porta.

Sexta-feira, treze
De Agosto.
Dia de azar,
Quer queiram, quer não.
A indústria do lazer, aposto,
Vai ser o principal foco de infecção
Neste pico de verão.
Tenham cuidado com o cão
E com a maldição
Do Faraó Tutankamon.

Morreu a indústria dos metais pesados,
Viva a indústria do lazer.
Leve. Ecológica. De terceira vaga.
Com homologação.
Com certificação.
Com acreditação.
Com exemplos de boas práticas.
Com análises de custo/benefício.

Graças ao lóbi da qualidade
O mundo vai bem melhor.
Que a vida é dura.
E o que a gente faz para ganhá-la.
Como o búfalo que pasta
Nas margens do Nilo.
Como qualquer búfalo domesticado
Depois de trabalhar o dia inteiro
Para o seu suserano,
O camponês egípcio.
Que por sua vez alimenta
O Faraó e as suas esposas e concubinas,
O seu exército, a sua polícia núbia
E a legião de escribas
Que têm o monopólio da escrita.
E do saber.
E os engenheiros da barragem de Assuão.

Hoje as partes pudendas,
A zona púbica,
A coisa pia
Do Portugal contemporâneo
Vai ser matéria de alto relevo
Na televisão.
Diz o Eça, o escriba acocorado,
Em missão de reportagem
Na inauguração do Canal do Suez.

Já não temos rei.
Nem o tique aristocrático
Do beija-mão.
Nem o Conde de Burnay
Nem faraó. Nem deuses. Agora é
A república quem mais ordena.
Senão popular, pelo menos populista.
A coisa pia mais fino
No Portugal pequenino
Mas democrático.

Imagino.
Sem imagem nem voz.
Porque estou em férias
Num cruzeiro do Nilo.
A observar o elegante voo da garça.
- Onde estará o pelicano ?
E a cegonha preta ?
E os filhos ilegítimos do povo ?


No barco não apanho
A RTP, felizmente de todos nós.
Nem sei se o Porto perdeu na supertaça
E o Obikwelo ganhou
A medalha de prata dos 100 metros
Nas Olimpíadas de Atenas.
- Turco, grego, tunisino ?
Espanhol, italiano, palestino ?
- Não, português !
- Ah!, Portugal, Luís Figo! Compra, amigo.
- Quanto, quanto ? Dez nove oito sete seis cinco.
Quatro três dois, um!
- É só um oiro, amigo.
Que o Habibo tem fome mais o camelo.


Maria do Patrocínio
Minha avó materna.
Lembrei-me de ti, Tia Patxina.
Patxina, de alcunha,
Uma alcunha tão terna,
De ressonâncias bascas.
Nunca foste rainha,
Nunca te chamariam Hatshepstut,
Nem te construiriam o templo
Mais belo do mundo
Na aldeia do Nadrupe.
Morreste cega,
Sem hieroglifos gravados na estela,
Tia Patxina,
Apalpando os netos
O cabelo a cara.
E não te mumificaram
Nem muito menos te operaram
Que no teu tempo
As obras de misericórdia
Eram sete espirituais
E sete corporais.
Como no Egipto dos faraós.
Como as pragas do Egipto.
Como nesta triste aldeia núbia
Que é uma espécie de reserva dos índios
Cá do sítio.
Com crocodilos de plástico
E pretos garanhões de olhos verdes.
E onde há uma velhota
Cega como tu, minha avó,
Que vende bugigangas pró turista.

De Assuão a Luxor
Eu gostaria de ter escrito
Um poema sobre os meus estados de alma.
Tão contraditórios que se anulam.
A verdade é que encontrei aqui
Um povo afável.
Mas que me adianta o pedigree
E os cinco milénios de civilização
E o templo de Edfu
Se nada nudou na minha condição
De burro carrejão ?

Sopra o vento dessecante.
Estou em Assuão.
Nos píncaros do verão.

Egipto, 22-28 de Agosto de 2004.
Portugal, verão de 2004.
Revisto em Setembro de 2007.