domingo, setembro 16, 2007

Blogantologia(s) II - (51): A morte do pássaro de areia




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 (Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), com um Alfa Bravo (abraço) (1)

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
O tchador.
A burkha.
A mulher dengosa.
A expulsão do paraíso.
A língua veperina.
O caduceu do Asclépio.
Febre hemorrágica.
Sida.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
A língua azul dos camelos.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.
A gripe das gaivotas-ratazanas.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
A febre da carraça.
Malária, paludismo, sezonismo.
A doença de Creutzfeldt-Jakob
O mal de viver.
Os vectores das doenças emergentes.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.
As setas pragas do Egipto.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. Burn-out. Desidratação.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.
Ou um náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que eram verdes.
Diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.
Já.
Ou encontravas.
Diz ele.
Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha
nem ração de combate.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.
Simplesmente morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira.

-diz ele.
In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,
o napalm,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela.
- Quem vem lá ?
Cala-se o dari (2) no Cantanhez.
E as gazelas na orla das bolanhas da zona leste.
Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Chimpanzé

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