domingo, setembro 23, 2007

Blogantologia(s) II (52): Era uma vez uma princesa... ou a globalização explicada pelo avô aos netinhos

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 1 de Setembro de 2007.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Há uma outra versão originalmente publicada em 26 Janeiro 2004 > Humor com humor se paga - XX: A globalização explicada às criancinhas: 'Quando passam rábanos é que é comprá-los'


Era uma vez uma princesa...


Era uma vez uma princesinha,
inglesa, muito bonita mas infeliz
no casamento com o príncipe,
que afinal não era encantado.

Um dia, a princesinha deixou de chorar
e arranjou um namorado egípcio,
muito rico,
que tinha a mania que era playboy.

Aconteceu que ambos tiveram um grave acidente,
do qual resultaria a sua (deles) morte,
num túnel por baixo de um boulevard parisiense,
num carro fabricado na Alemanha
com motor montado por operários checos ex-comunistas,
conduzido por um belga que bebia whisky (escocês) em demasia
e que, como belga, tanto podia ser valão como flamengo.

Este último pormenor da história só interessa à polícia,
incluindo os serviços secretos de sua majestade,
a raínha dos great britons,
que é a bruxa má desta história.

E todos, a princesa e o candidato a princípe,
mais o motorista belga
e os guarda-costas da princesa,
eram perseguidos por paparazzi italianos,
em potentes motos japonesas de grande cilindrada,
empunhando máquinas fotográficas japonesas
com teleobjectivas de infravermelhos made in China,
sob licença.

A princesinha,moribunda,
ainda foi assistida por uma equipa de emergência médica,canadiana,
num grande hospital árabe de Paris,
tendo-lhe sido ministrados medicamentos
de uma multinacional farmacêutica,
dessas sem pátria, com fábricas no Brasil.

A tecnologia de reanimação
também era de uma outra multinacional
que trabalhava no programa espacial da NASA
(os senhores que mandam foguetões para a Lua e para Marte)
e que acabava de fazer uma OPA hostil
para ficar com a parte de leão do mercado da indústria da doença
(Se vocês não sabem o que é uma OPA hostil,
perguntem lá em casa aos paizinhos
ou à stoura da vossa escolinha).

E eu, que sou portuga,
estou-vos a contar esta história
num blogue que existe na Internet,
usando tecnologia desenvolvida por um senhor chamado Bill Gates
e que vive na América dos cow-boys
e que é podre de rico por causa da terceira vaga
que ele cavalga como nenhum outro surfista do Hawai.

Vocês, muito provavelmente,
estão a ler esta mensagem num computador
que é um clone da IBM
e que usa chips feitos em Taiwan,
e num monitor sul-coreano,
TFT de 17 polegadas,
montado por pobres trabalhadores do Bangladesh
numa fábrica de Singapura,
transportado em camiões TIR de uma empresa chinesa,
de Honk-Kong,
conduzidos por indianos,
e que depois foram roubados (os camiões)
por piratas malaios e indonésios,
e descarregados por pescadores sicilianos
que trabalhavam para a máfia chamada Cosa Nostra.

E de repente estamos numa minúscula ilha das Caraíbas
onde o material (computador, monitores e demais periféricos)
está a ser empacotado
por campesinos mexicanos clandestinos,
à beira de entrarem para o grande sonho americano,
para depois ser transportado num porta-contentores russo,
de pavilhão de conveniênia, panamiano,
desembarcado em Roterdão,
e finalmente vendido por judeus holandeses,
que escaparam ao holocausto nazi,
e que até meados do Séc XVII viviam em Portugal,
prósperos, felizes e contentes.

Com eles desembarcaram,
mais mortos que vivos,
os novos escravos negros
que fogem do inferno
das Costas de Marfim e das Libérias,
das Serras Leoas e das Guinés.
Apanhados pela polícia da Eurolândia,
foram recambiados para as terras de fome, de miséria e de morte
onde nasceram.

Pois é, meus meninos,
isto é que é a globalização.
Convenhamos
que as histórias das princesas encantadas,
dos tempos dos nossos avós,
que se chamavam afonsinhos,
eram muito mais bonitas do que esta,
que é triste e sórdida e imoral.

Já não me lembro do nome da princesa
nem da bruxa má,
mas para o caso tanto faz.
Em boa verdade,
também não sei o verdadeiro nome dos chinos
que montaram o meu computador
e sem o qual eu nunca poderia comunicar com vocês
que são umas encantadoras cibercriancinhas biónicas.

Se puderem, escrevam um e-card
com musiquinha e animação.
Estamos a precisar de levantar o/a nosso/a moral
(desconheço o género da palavra,
e não tenho aqui à mão
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
que passou a ser o meu livro de cabeceira
e que eu uso em vez do xanax para dormir).

E ainda a propósito,
queria aqui referir um adágio popular,
que existe lá na terra dos tugas, e que diz:
"Quando passam rábanos
é que é comprá-los".

Não encontrei até à data
mais feliz e sintética definição
para essa coisa da globalização.
Há uma profunda mas tranquila sabedoria neste adágio
que só pode ser de origem moura
porque os rábanos são cultivados pelos saloios
da Estremadura lusitana
e estes descendem dos mouros,
como eu,
os quais foram escravizados pelos feros francos cristãos
da Reconquista.

Meus meninos, acabou a escolinha.
Podem ir para o recreio.

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