quinta-feira, abril 28, 2011

Blogantologia(s) II - (93): Elegia para um paisano





Elegia para um paisano (*)

por Luís Graça [ foto acima, no "oásis de paz" de Contuboel, Centro de Instrução Militar, Junho de 1969]

(À memória de A…, meu camarada
da CCAÇ 12, Guiné, 1969/71…
e dos demais camaradas, desconhecidos
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos,
por homicídio, por suicídio, por acidente)



Disseram-me que tinhas morrido,
Meu infortunado camarada,
Já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
Do século passado,
Não posso precisar.
Morrido, lerpado,
Para usar o nosso vocabulário,
Bruto e feio.
Lerpado, assim, sem mais nada,
Sem uma palavra,
Sem uma despedida,
Sem uma oração,
Talvez até sem um ui nem um ai,
Sem um grito.
Sem aviso prévio,
Nem sequer um cheque-mate!
Morrido, de morte matada!
Morrido, como um cão.
De um tiro na nuca.
Como os cães que abatemos,
Um noite, em Bambadinca,
A Noite das Facas Longas,
Lembras-te?!

Disseram-me que tinhas sido encontrado,
Longe da nossa Guiné,
Dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
Longe da tua Sinchã Mamadjai,
E da morança da tua bela Fatumatá,
De mama firme,
Que se escapulia para a tua morança,
Nas noites, de lua cheia,
Em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
Do Mato Cão,
Dos Nhabijões,
Da Missão do Sono,
Da Ponte do Udunduma,
Da orla da bolanha,
Do poilão,
Do bagabaga…
Onde ?
Longe dos teus verdes anos,
Longe do arco-íris do teu céu de menino.
Perto do teu Tejo,
Numa valeta da rua
Da tua cidade…
Ou de qualquer subúrbio triste e cinzento
De cidade nenhuma.

Que morte tão crua,
A ser verdade,
Oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
Que alguém leu no jornal.
A notícia de uma morte
Em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
Tenhas simplesmente desaparecido,
Emigrado,
Sido sequestrado,
Mudado de código postal
Ou até de identidade,
Sempre era menos mal.
E poupavas-me o teu elogio fúnebre,
Que é a pior das missões
Que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me
(Mas eu não quis crer)
Que tinhas sido morto,
Sem honra nem glória,
Depois de cumprido o teu dever
Para com a Pátria
Que te foi madastra,
Cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
No mar da Palha da tua infância!
Já muito depois
Dos últimos guerreiros do império,
Terem feito o espólio de todas as guerras
E o relatório da sua errância
Desde Quinhentos.

No século passado, meu amigo!...
No século passado, meu irmão!...
Lembro-me do velho Uíge,
Da velha Companhia Colonial
De Navegação,
Nos ter devolvido a terra,
À nossa cidade e capital,
Nas praias de Alcântara,
No cais da saudade,
No cais de pedra
Donde partíramos,
Quase às escondidas,
Vindos do comboio nocturno e soturno
De Santa Margarida.

Não sei quem te esperava
Nesse dia 22 de Março de 1971,
Mas seguramente os mesmos entes queridos
Que me esperavam a mim,
A todos nós,
Que ali, no cais, passávamos à condição
De paisanos.
Vestidas as calças à boca de sino,
E as camisas às florinhas,
Regressávamos ao doce lar,
Com as bugigangas compradas no Taufik Saad
ou na Casa Gouveia,
E à rotina das nossas vidas,
Insignificantes.
E a uma outra guerra,
A da lufa lufa do quotidiano.
Tu tinhas um lar,
Todos tínhamos um lar,
Uma família, alguns um emprego,
Muitos uma namorada ou noiva à sua espera…

Mas eu o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ?
Tiveste filhos ?
Não tiveste tempo de ser bom filho,
Nem bom pai,
Muito muito menos avô…

Nunca mais voltei a rever-te,
Em todos estes anos,
Em que tantas coisas aconteceram,
Para o pior e o melhor,
Na nossa Pátria,
Uma palavra, repara,
Que saiu do léxico dos tugas,
E já não se usa mais…

A imagem mais forte, não a última,
Que retenho de ti,
É a do menino e moço
Que saiu, fardado, garboso,
Da casa de seu pai e sua mãe…
É a do puto reguila,
Quiçá rebelde,
Temperamental,
Belicoso mas generoso,
Da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
O desenrascanço,
Que a vida era dura para os homens
Da CCAÇ 12,
Brancos e pretos.

Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love
!)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,
Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

Foi esse fado que te matou,
Essa maldita, tóxica, adrenalina,
Que trouxeste do Geba e do Corubal.
E que te impedia de parar para pensar,
Simplesmente parar,
Simplesmente pensar,
Simplesmente viver,
Simplesmente respirar
À tona de água.


Meu irmão.
Meu camarada.
Meu amigo.
Foi o sobressalto da vida.
Foi a vida em sobressalto.
Foi a vida em saldo.
Foi a alma em dor.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra.
Na guerra dos paisanos.
Foi isso, foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!

Sexta-feira Santa, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 22/4/2011

Originalmente publicado no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné: Vd.poste de 23 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8157 Blogpoesia (146): Elegia para um paisano (Luís Graça)

  

quarta-feira, abril 06, 2011

Blogantologia(s) II - (92): Como era difícil a ternura em 1978

Para a minha Joaninha,
Que continua a ser a minha Joaninha,
E para a mãe da Joaninha,
Que continua a ser a minha… Chita!


Chita, como era difícil a ternura,  em 1978!
A festa, o 25 de Abril,  tinha acabado há muito.
Arrumados o palco,
As cadeiras, 
Os bonecos, 
As palavras de ordem,
Regressávamos a casa e ao trabalho.
Em 1977 o país, pobre de pedir, 
Batia à porta do FMI.
Em 5 de Abril de 1978,
Pelas nove da manhã,
Eu tinha-te deixado à porta do elevador,
No 3º piso do Hospital de Santa Maria.
Feio, 
Lúgubre, 
Medonho, 
Estado-novista.
Estavas grávida.
Gravidíssima.
Não escondias algum cansaço e ansiedade.
Nada do que tinhas planeado, batera certo.
A sala de maternidade do Hospital Egas Moniz,
De quarentena,
Por causa de uma  infecção qualquer.
O parto sem dor, em não sei quantas lições,
Era para esquecer.
A minha presença,  a teu lado,
Um direito que tínhamos conquistado há pouco,
Gorava-se…
A maternidade agora era um fábrica de parir.
Demos um beijo, apressado,
Enquanto a enfermeira te levava para dentro do bunker.

Às duas da manhã do dia 6 tu dormias, pensava eu.
No 6º piso do hospital.
Ou foi o que me disseram ao telefone, à meia noite.
Alguém, sonolento, do outro lado da linha.
Em casa, na Travessa do Possolo,
Eu disfarçava as insónias,
Por entre um bagaço e dois cigarros.
(Ainda se fumava, naquela época!).
Tinha regressado das aulas à noite, no ISCTE.
Não devo ter estado muito atento
Ao que disse o professor.
Por entre a janela da sala de aulas, podia vislumbrar
O mastodonte do edifício do hospital
E lá dentro, naquele imenso formigueiro,
Uma mulher desesperada para dar à luz…
E sentia-me vagamente culpado
Por não poder (ou não querer ?) ser
Totalmente solidário contigo
Que estavas ou ias estar em sofrimento nessa noite,
Para de madrugada pores no mundo um filho,
O teu filho, o nosso filho…
De repente dei conta
Que não estava a escrever ou a dizer
O meu filho,
Não estava ainda a assumir o meu papel de pai,
A parentalidade, como agora se diz…

Afinal, era a ti que essa criança
Estava ligada pelo cordão umbilical,
Era a ti que ela ficaria vinculada para sempre,
E as dores só podiam ser tuas…
Nunca, em época alguma, um homem podia
Sentir nas entranhas, 
Avaliar, 
Conhecer por experiência própria
As dores do parto,  
O anátema bíblico
Do “Parirás com dor!”…
De repente tive um momento de fraqueza,
De dúvida,
De angústia.
Será que vou ser um bom pai ?
Um bom marido ?
Ou o melhor pai ?
Ou o melhor marido ?

Do trabalho, no Terreiro do Paço,
Às 13h15  telefonei  para o hospital…
E não queria acreditar.
Não havia ainda telemóveis,
Em 1978,
No século passado…
Não podia sequer falar contigo.
Por isso, não acreditei.
Pensei que devia haver confusão,
Troca de nomes,
Bagunça à portuguesa,
E até quiçá troca de crianças.
Eu sei lá, o que me terá passado pela cabeça.
Pedi a uma colega de trabalho,
Que me confirmasse.
Olga, de seu nome. Minha amiga.
E ela transmitiu-me o recado:
A parturiente Maria Alice Ferreira Carneiro,
De 32 dois anos,
Casada,
Residente em Lisboa,
Na Travessa do Possolo,
Tinha dado à luz
Uma robusta, perfeita e linda criança,
Do sexo feminino,
Com 3,850 quilos de peso
E  50 centímetros de altura,
De olhos de amêndoa,
Achinesados,
Por volta das 10 e meia da manhã.
Mãe e bebé estavam bem…
E logo confirmei, à tarde,
Que tu e a nossa Joaninha estavam bem.

… Claro que nessa noite,
Sozinho em casa,
Fui festejar com os amigos 
Que convidei.
Os amigos da turma, o Jorge, a Joana...
Coisas de homem, de pai babado,
De macho orgulhoso.
Comemos a tua reserva de bolinhos,
Feitos por ti, com tanto amor,
Para oferecer às visitas.
Sei que nunca me perdoaste esse gesto perdulário!
Mas, acredita, 
Esse crime de lesa-património familiar
Foi por uma boa causa,
Na altura, pela melhor causa do mundo,
Por  ti e pela nossa Joaninha!

Alfragide, 6 de Abril de 2011, trinta e três anos depois…