Para a minha Joaninha,
Que continua a ser a minha Joaninha,
E para a mãe da Joaninha,
Que continua a ser a minha… Chita!
Chita, como era difícil a ternura, em 1978!
A festa, o 25 de Abril, tinha acabado há muito.
Arrumados o palco,
As cadeiras,
Os bonecos,
As palavras de ordem,
As cadeiras,
Os bonecos,
As palavras de ordem,
Regressávamos a casa e ao trabalho.
Em 1977 o país, pobre de pedir,
Batia à porta do FMI.
Batia à porta do FMI.
Em 5 de Abril de 1978,
Pelas nove da manhã,
Eu tinha-te deixado à porta do elevador,
No 3º piso do Hospital de Santa Maria.
Feio,
Lúgubre,
Medonho,
Estado-novista.
Lúgubre,
Medonho,
Estado-novista.
Estavas grávida.
Gravidíssima.
Não escondias algum cansaço e ansiedade.
Nada do que tinhas planeado, batera certo.
A sala de maternidade do Hospital Egas Moniz,
De quarentena,
Por causa de uma infecção qualquer.
O parto sem dor, em não sei quantas lições,
Era para esquecer.
A minha presença, a teu lado,
Um direito que tínhamos conquistado há pouco,
Gorava-se…
A maternidade agora era um fábrica de parir.
Demos um beijo, apressado,
Enquanto a enfermeira te levava para dentro do bunker.
Às duas da manhã do dia 6 tu dormias, pensava eu.
No 6º piso do hospital.
Ou foi o que me disseram ao telefone, à meia noite.
Alguém, sonolento, do outro lado da linha.
Em casa, na Travessa do Possolo,
Eu disfarçava as insónias,
Por entre um bagaço e dois cigarros.
(Ainda se fumava, naquela época!).
Tinha regressado das aulas à noite, no ISCTE.
Não devo ter estado muito atento
Ao que disse o professor.
Por entre a janela da sala de aulas, podia vislumbrar
O mastodonte do edifício do hospital
E lá dentro, naquele imenso formigueiro,
Uma mulher desesperada para dar à luz…
E sentia-me vagamente culpado
Por não poder (ou não querer ?) ser
Totalmente solidário contigo
Que estavas ou ias estar em sofrimento nessa noite,
Para de madrugada pores no mundo um filho,
O teu filho, o nosso filho…
De repente dei conta
Que não estava a escrever ou a dizer
O meu filho,
Não estava ainda a assumir o meu papel de pai,
A parentalidade, como agora se diz…
Afinal, era a ti que essa criança
Estava ligada pelo cordão umbilical,
Era a ti que ela ficaria vinculada para sempre,
E as dores só podiam ser tuas…
Nunca, em época alguma, um homem podia
Sentir nas entranhas,
Avaliar,
Conhecer por experiência própria
Avaliar,
Conhecer por experiência própria
As dores do parto,
O anátema bíblico
O anátema bíblico
Do “Parirás com dor!”…
De repente tive um momento de fraqueza,
De dúvida,
De angústia.
Será que vou ser um bom pai ?
Um bom marido ?
Ou o melhor pai ?
Ou o melhor marido ?
Do trabalho, no Terreiro do Paço,
Às 13h15 telefonei para o hospital…
E não queria acreditar.
Não havia ainda telemóveis,
Em 1978,
No século passado…
Não podia sequer falar contigo.
Por isso, não acreditei.
Pensei que devia haver confusão,
Troca de nomes,
Bagunça à portuguesa,
E até quiçá troca de crianças.
Eu sei lá, o que me terá passado pela cabeça.
Pedi a uma colega de trabalho,
Que me confirmasse.
Olga, de seu nome. Minha amiga.
E ela transmitiu-me o recado:
A parturiente Maria Alice Ferreira Carneiro,
De 32 dois anos,
Casada,
Residente em Lisboa,
Na Travessa do Possolo,
Tinha dado à luz
Uma robusta, perfeita e linda criança,
Do sexo feminino,
Com 3,850 quilos de peso
E 50 centímetros de altura,
De olhos de amêndoa,
Achinesados,
Por volta das 10 e meia da manhã.
Mãe e bebé estavam bem…
E logo confirmei, à tarde,
Que tu e a nossa Joaninha estavam bem.
… Claro que nessa noite,
Sozinho em casa,
Fui festejar com os amigos
Que convidei.
Os amigos da turma, o Jorge, a Joana...
Os amigos da turma, o Jorge, a Joana...
Coisas de homem, de pai babado,
De macho orgulhoso.
Comemos a tua reserva de bolinhos,
Feitos por ti, com tanto amor,
Para oferecer às visitas.
Sei que nunca me perdoaste esse gesto perdulário!
Mas, acredita,
Esse crime de lesa-património familiar
Esse crime de lesa-património familiar
Foi por uma boa causa,
Na altura, pela melhor causa do mundo,
Por ti e pela nossa Joaninha!
Alfragide, 6 de Abril de 2011, trinta e três anos depois…
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