sábado, dezembro 01, 2007

(Pré-)Textos (2) - Um Portugal ao espelho, mas pouco narcísico

Foto de uma imagem de Koudelka (1976), exposta no CCB. Foto de Luís Graça (2005) > Talvez o melhor retrato do Portugal que nasce e renasce.

Exposição no CCB (Centro Cultural de Belém, Lisboa) > Espelho Meu: Portugal visto por fotógrafos da Magnum. Data: 1 de Julho a 28d e Agosto de 2005. Comissariado: Alexandra Fonseca Pinho e Andrea Holzherr (Magnum Photos Paris). Produção: Centro Cultural de Belém e Agência Magnum Photos Paris


Espelho meu: Portugal visto por fotógrafos da Magnum Photos (1)


1. Um país tão pequeno e tão periférico (em relação ao centro do mundo, da notícia, do acontecimento, da história, da geopolítica, da economia global) que cabe em mil negativos do arquivo de uma das mais célebres agências de fotojornalismo do mundo: a Magnum Photos, criada em 1947 por Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e colaboradores.

Havia registos de 1955, da década de 60, do 25 de Abril de 1974, do PREC (Processo Revolucionário Em Curso)… Depois disso, os fotógrafos foram assobiar para outro lado. Que o mundo é vasto e fotogénico, mesmo quando feio, horrível e sujo. Portugal deixou definitivamente de estar na moda quando a festa acabou. Os ratos abandonaram o navio.

Na ressaca da festa, pá, ficaram os bêbados, os loucos, os marginais, os místicos, os poetas, os cães que ladram à lua, as mulheres de preto, os eternos perdedores… Trinta anos depois era preciso bater umas chapas para fazer o upgrade do arquivo. Vieram a Susan Meiselas, , o Miguel Rio Branco, o Joseph Koudelka. Com as suas credenciais da praxe, as suas obsessões de estimação, o seu portfólio, o seu prestígio, os seus mitos, os seus medos, a sua vaidade, o seu génio, o seu código de ética e deontologia profissionais.

“Não era de surpreender a desconfiança com que os meus passos eram seguidos enquanto percorria as ruas da Cova da Moura, mas na Cova são propriedade privada. Cada esquina tem uma personalidade distinta” (Susan Meiselas).

2. A exposição, no CCB, começa na Nos Kasa, a 10ª ilha de Cabo Verde, com seis a sete mil habitantes, incluindo gente oriunda de Angola e de S. Tomé e Príncipe, parte dela imigrantes ilegais. A casa dos náufragos, dos últimos náufragos, do império. Com um fabuloso som de fundo: o coro das mulheres da Cova da Moura. Meiselas teve vontade de lá ir porque ouviu a notícia do arrastão na BBC ou noutra estação global qualquer. De repente, Portugal deu de novo a volta ao mundo. O arrastão de Carcavelos foi notícia (breve), à falta de Tsunami, vulcão, terramoto, atentado terrorista ou castigo divino.

Há males que vêm por bem, dirão uns. As fotos da Meiselas, penduradas nas janelas, nas varandas e nos estendais da roupa do gueto da Cova da Moura, acabaram por dar-lhe uma outra dimensão mediática e contribuir para a melhoria da sua imagem e da auto-estima dos seus habitantes, filhos de um deus menor.

Os jovens perceberam que a fotografia podia ser uma arma. Que uma foto de Meiselas valia mais do que uma presidência aberta. Ou o estafado, inócuo e eleitoralista discurso de um presidente da câmara qualquer. As associações locais comentaram que a notícia (da participação de jovens desta comunidade, local no já famoso arrastão de Carcavelos) foiraum exagero, mas que acabou por ter um efeito positivo na sócio-economia da ilha.

De facto, por 5 euros, os estrangeiros passaram a poder entrar, sem passaporte, na Cova da Moura, com direito a visita guiada e guarda-costas. Por mais 7 euros e meio, o turista, o tótó, podia inclusive provar os sabores da gastronomia local, a melhor cachupa da diáspora creoula.

O período de tréguas, boa vontade e estado de graça acabou no dia 17 de Julho de 2005], mas a exposição do CCB continua aberta até Agosto.

Entretanto, a polícia vem dizer, pelo seu serviço de relações públicas, que afinal o arrastão nunca existiu: fora uma figura de retórica... País de inventonas, de polícias que gostam de fazer notícia e de jornalistas que emprenham facilmente pelo ouvido, de jornalistas que dão demasiado crédito aos polícias... País de minorias que a maioria nega, escamoteia, ignora. Todos iguais, mas uns mais do que outros.

3. Miguel Rio Branco (n. 1946), de ascendência lusitana, é o único dos fotógrafos que fala com o coração:

“Portugal, o berço dos meus antepassados, das primeiras memórias com significado, dos meus primeiros amores, deixa-me sempre profundamente emocionado. Mais uma vez, procuro as raízes que perdi…”.

E quem pode viver sem raízes ? É preciso o trabalho do arqueólogo, do paleontólogo, do geólogo, para voltar a aprender a ler as sucessivas camadas que compõem a realidade de Portugal, o unto, o sebo, a epiderme dos portugueses: um coração talhado na pedra, a pedra, o chão, a sombra, a penumbra, as castanhas quentes e boas, o silêncio, a cruz, o mistério, o profano e o sagrado,

4. Também nada tem de fotojornalismo o olhar de Josef Koudelka… Aqui não há mais tropas, tanques, botas a esmagar a primavera de Praga, os cravos checos. Aqui já não há império, nem do mal nem do bem. Apenas uma paisagem calcinada pelos incêndios que lavram desde o 25 de Abril de 1974 e que nunca mais se extinguiram. Portugal está a arder em fogo lento. Portugal já ardeu. Portugal é consumido por uma trágica paixão. Foi a mensagem que eu li nas legendas que podiam ser em checo ou noutra língua qualquer, desde que falada pelos humanos:

“Passei seis semanas em Portugal. Viajei de norte a sul, de este a oeste. Segui um caminho que eu próprio tracei. Tentei ver o máximo. Fiquei surpreso. Com o que Portugal mudou desde os anos setenta. Mas eu também mudei” (Josef Koudelka).

Todos nós mudámos, camarada. E, connosco, Portugal, a Europa, a tua terra, o mundo … Mas em 1979, cinco anos depois do poder ter sofrido o risco de ter caído na rua, o que atrai o fotógrafo é a Ladeira do Pinheiro, a santa, a Procissão dos milagres, o Portugal no seu pior, o Portugal sacro-profano (Bruno Barbey, n. 1941).

5. Mas se o Portugal não tem raça nem fotogenia, tem-nas, uma e outra, os ciganos, as minorias. Registe-se as cenas de um casamento cigano, em 1998 (Bruce Golden, n. 1946). Há ainda o olhar, eslavo, russo, de Georgui Pinkhassov (n. 1952), sobre o Barro Alto, o Chiado, Alfama (1998), a Lisboa saloia, mourisca, judaica, cristã, cristã velha e cristã nova, exótica, pitoresca, labiríntica, que sempre seduziu o olhar do outro, o estrangeiro, desde os francos, os cruzados, o Bráulio no Séc. XVI ou o Byron no Séc. XIX.

6. Afinal, o único núcleo temático desta mostra (decepcionante, nalguns casos; provocadora, irritante, estimulante, noutros) que se pode qualificar de fotojornalismo propriamente dito é o do 25 de Abril de 1974. Portugal desperta a curiosidade (romântica ? voyeurista ? interesseira ?) dos fotógrafos e de alguns revolucionários profissionais, sem esquecer os perdedores do Chile de Allende, da França do Maio de 68, da contestação à guerra do Vietname…

Guy de Querrec (n. 1941), Jean Gaumy (n. 1948) e Gilles Peress (n. 1946) são os três fotógrafos da Agência que estão de serviço ao Portugal do PREC de 1974/75.

A fotografia que melhor retrata os anos sombrios de 1976, tão sombrios como os de hoje, tão sombrios como o day-after de todas a s euforias, de todas as orgias sociais, de todos os orgasmos colectivos, em todas as épocas e sociedades, ainda é a de Koudalka, a do homem, maneta, que sai do mar, enquanto uma criancinha berra ao colo da mãe que teima em levá-la ao banho.

O Portugal futuro, parafraseando o Ruy Belo, em confronto com o do passado, que acabava de ser liquidado… Confronto ? Nem isso, há um Portugal que sai de cena, o maneta, e outro que entra… Medo de entrar na água ? Mais do que medo, direi que é pânico. O pânico de ter lidar com o futuro, as suas oportunidades e ameaças.

7. Thomas Hoepker conheceu o Portugal dos anos 60. Um certo Portugal, o da minha adolescência. Trás-Os-Montes que eu só conheci mais tarde. Quem viajava nessa época ? Por que estradas ? A salto, para França, por terras de Espanha. Há uma revolução silenciosa em marcha, que nenhum fotojornalista da Magnum captou. Mas também se viajava de comboio, pela calada da noite, até ao barco que nos esperava no cais de Alcãntara ou da Tocha Conde de Óbidos. Destino: o Ultramar, Angola, a jóia da coroa, depois da perda dos brasis, das índias. Mas também a Guiné ou Moçambique.

Em 1964, é ainda o que resta do Portugal rural, pobrezinho, mas feliz q.b., - pobrete mas alegrete - tão bem retratado na fotos do casamento popular ou do latifundiário, à mesa, sozinho, como um cão. Ou ainda do fascismo soft, serôdio, tão podre que irá cair da cadeira com o seu velho criador, uns anos depois. Ainda em 1964, os padres (católicos, não há outros) entronizavam as criancinhas nos ritos e ritmos patrioteiros da Mocidade Portuguesa. Que a Pátria (n)os chamava: “Para Angola, rapidamente e em força!”…

Cartier-Bresson e Inge Morath tinham fotografado os portugas de 1955, o Portugal ronceiro e engravatado do salazarismo, recauchutado e recuperado pela NATO, três anos antes do furacão chamado General Sem Medo:”Obviamente, demito-o”.

Os fotógrafos da Magnum tinham mais que fazer do que documentar o simulacro de eleições livres para a presidência da república das bananas. A estética do realismo social fixa, enquadra, recorta, emoldura, aquilo que era o Portugal very typical do Secretariado Nacional da Propaganda (mais tarde, Informação), ainda e sempre pela batuta do António Ferro. A Nazaré, o Toinho, de pé descalço, a Maria das sete saias… É ainda e sempre esta pobreza envergonhada dos pobres envergonhados que um dia ainda ousaram sonhar ser donos do mundo.

Paralelamente à exposição, um vídeo (uma reportagem que passou na RTP há alguns anos) sobre os documentários (quatro dezenas) que foram feitos por estrangeiros sobre o PREC (o período que vai do 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975). Vários dos jornalistas e realizadores são entrevistados: Robert Kramer, Thomas Harlan… Já o tinha visto na altura. Mas gostei de o rever.

Registo a a intervenção do cineasta Thomas Harlan, que filmou o processo de ocupação da Torre Bela, e que vem falar em suicídio das forças armadas portuguesas. Nunca se tinha visto isso. Uns meses antes, no Chile, um exército de estrutura prussiana, esmaga Allende e subjuga o seu próprio povo. Esse suicídio, a ter acontecido, aconteceu ou começou a ser preparado, lenta mas inexoravelmente, na Guiné. No meu tempo, 1961/71...

Esse suicídio (colectivo, institucional), a ter acontecido, aconteceu ou começou a ser preparado, lá em baixo, na Guiné. Mas a Magnum nunca esteve lá, com os seus fotógrafos, nessa obscura Guiné, província portuguesa, antes colónia, hoje República... da Guiné-Bissau.... Não estava na Guiné para testemunhar o princípio do alegado suicídio das Forças Armadas Portuguesas. Só Deus pode estar em todo o lado... Mas nessa época também Ele devia andar muito distraído.

_________

(1) Há uma outra versão, publicada originalmente em 24 de Julho de 2005
Socio(b)logia - XVII: Espelho Meu... ou os portugas vistos pelos fotógrafos da Magnum (Luís Graça)

sexta-feira, novembro 23, 2007

(Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos

Peniche > Junho de 2006 > José António Boia Paradela, com o filho Jorge.

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.


Prefácio ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). Ábio de Lápara é o o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ilhavo, onde nasceu em 1937. Arquietcto, é o sócio-gerente da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda.


É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio da Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo:
- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
- We are born to loose everything, everytime and nothing at all.
- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.
- Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…

O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; a Avó materna, a mãe Rosa… Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: O Mestre Zé, marinheiro; o Manuel da América; o Sacerdote Manuel, cego; o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias; o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhado pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, o entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:
- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!

Luís Graça

segunda-feira, novembro 12, 2007

Blogantologia(s) II - (60) Obsessivamente o mar...

Lisboa > Rua de São Bento > Grafito > 12 de Novembro de 2007 > "Vida de Cão"...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados



Obsessivamente o mar
da tua infância.
E as criaturas que o povoavam:

A Sereia
e a sua melopeia,
o seu canto de cigana,
fatal,
a sua rede,
onde afogava os seus pobres amantes,
depois de os arpoar com o seu tridente,
como se fossem lagostas suadas
nas mãos da chefe de cozinha;

A Baleia Azul, com a sua enorme bocarra,
que te transportava no ventre,
qual submarino,
até os mais recônditos e inóspitos lugares
do centro da terra em fogo;

O monstro, o terrível Adamastor,
que aterrorizava os teus pobres patrícios e parentes,
os Maçaricos de antanho,
marinheiros e pescadores,
agrilhoados ao cavername das caravelas;

A feiticeira Atlântida,
a cidade de som e luz,
que sempre fascinou os pobres povos ribeirinhos;

O Pirata de Perna de Pau e Cara de Mau,
que desembarcava na costa,
incendiava, estripava, matava, violava…
Ou comes A sopa
ou Eu chamo o Pirata de Perna de Pau…
;

A Passarola Voadora
que te catapultava para o Novo Mundo,
para os paraísos tropicais,
os canibais,
os praias de palmeirais e de corais,
os macacos e os leões;

O Búzio Gigante,
que podia ser o teu ursinho de peluche,
mimado,
e que era também o teu carrocel marinho,
alucinante
e alucinado;

E por fim o Moínho do Tio Xico Marteleira
que te fazia mover as ondas
e regulava as marés…
e os teus sonhos de criança
e os teus pesadelos
nas noites de invernia.

Ah!, como o mundo era perfeito
Na tua infância.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Blogantologia(s) II - (59): Hoje é dia mundial de qualquer coisa...

Lisboa > Belém > Sinal de proibição...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Hoje é dia mundial de qualquer coisa,
mesmo que o mundo não tenha grande coisa
para comemorar…

Hoje, por acaso,
é Dia Mundial dos Museus,
dia 18 de Maio.
De todos os museus,
sem excepção,
incluindo os museus dos horrores,
das figuras de cera,
dos holocaustos,
das espécies extintas,
dos instrumentos de tortura,
da guerra,
da paz,
dos escravos e dos senhores,
do cinema e dos seus imortais
das alterações climáticas,
da electricidade,
da escravatura,
da psiquiatria,
dos insectos sociais,
do campo e da cidade,
das doenças sexualmente transmissíveis,
dos males de amor,
das guerras coloniais,
dos leopardos e das hienas,
de Sade & Masoch,
de Deus & do Diabo.
E até dos museus dos museus
e dos seus directores,
dos seus vícios públicos e privados,
dos seus mecenas,
e das fundações
do bem e do mal
que aparecem em títulos de caixa alta
no jornal…

Adoro museus,
adoro o espectáculo do mundo musealizado,
das cabeças pensantes mumificadas,
e sobretudo nunca perco uma borla
no Dia Mundial dos Museus.

Quantos dias mundiais de qualquer coisa há no ano ?
Não sei, talvez 365 dias,
ou 366 nos anos bissextos.
Ou até mais,
porque há dias que já dobram
ou se desdobram
em efemérides…
Sei que hoje é Dia Mundial dos Museus,
de todos os museus.
Incluindo o Museu da Vergonha,
da Coragem e do Medo,
do Etnocídio,
da Intifada,
do Gulag,
do Vale dos Caídos,
dos degolados,
dos Fuzilados contra a Grande Muralha
da China,
da Florence Nigthingale,
the lady with the lamp,
do Fado e da Guitarra,
e dos Furacões Tropicais
que devastam a má consciência ecológica
da Casa Branca.

Mas hoje também é,
por ironia ou coincidência,
e para insulto à nossa inteligência
o Dia das Raças Indígenas da América,
mumificadas,
escalpelizadas.
pregadas na parede por alfinetes.

Li isso algures
num sítio que tem ressonâncias bíblicas,
escatológicas
e messiânicas,
A última arca de Noé.
Podia ser o último comboio.
O último avião.
O último barco.
O último aviso à circum-navegação.
A última chance.

Fico a saber que há meses do ano
mais ecológicos do que outros…
Por exemplo, o princípio do ano
não é muito amigável para o ambiente,
pelo menos no Brasil
(cujo Estado, dizem, não manda na Amazónia
nem nas favelas,
nem nos bandos armados
que ditam a lei e a ordem…).
E depois há que distinguir entre
dias locais,
regionais,
nacionais,
internacionais
e mundiais…
E será que já há Dias Globais de Qualquer Coisa ?
Não sei, confesso a minha global ignorância…

Em Fevereiro, dois, é o Dia Mundial das Zonas Úmidas
(com ou sem H,
o que para a Floresta é irrelevante)

Em Março, já os dias são mais compridos e generosos:
temos o Dia Nacional do Turismo (2),
o Dia Internacional da Mulher (8),
o Dia Internacional das Florestas (21),
o Dia Mundial da Água (22)…
Mas também o Dia do Meteorologista
ou Manda-chuva,
como dizemos no Velho Continente (23).
Enfim, temos até um Dia do Cacau (26),
não do dinheiro, mas do verdadeiro cacau
que fez alguns milionários e milhões de pobres.
O Dia do Cacau, no Brasil,
celebra-se na véspera
do Dia Mundial da Juventude (27).

Em Abril, tomem por favor boa nota do sete,
na vossa agenda-planning de executivos,
porque é Dia Mundial da Saúde.
E um semana depois
o Dia da Conservação do Solo (15),
bem como do pobre Índio (19)
e do paupérrimo ou depauperado Planeta Terra (22),
finalizando a maratona das comemorações
no Dia da Educação (28),
tão pouco ou nada ambiental…

Não sei explicar se o Índio
é o que está em vias de extinção
ou o Índio, escalpelizado, morto e enterrado,
depois da chegada ao Novo Mundo
do idiota que acreditava ter chegado à Índia
e que hoje tem nome de praças
e estatuária pomposa
por tudo o que são cidades hispânicas.

Fica bem um dia do Dia do Sol
em Maio, três,
que no hemisfério norte era o Maio Florido,
mas é uma ternura terem pensado
no Dia do Engenheiro Cartógrafo (6)
e guardado o 10 para o Dia do Guia Turístico,
o simpático, sorridente e super-herói
guia turístico.
Eu sou fã dos guias turísticos
que nos tratam como crianças crescidas,
idiotas,
em férias,
nos seus exóticos países,
em alegres e despreocupadas excursões,
às vezes escoltadas por gorilas da cidade….

Segue-se a treze do Dia do Zootecnista,
que eu não sei exactamente o que faz,
mas que presumo ter a ver com zootecnia,
com engenharia da reprodução animal,
com manipulação,
com engorda…
E a 29 o Dia do Estatístico
ex-aequo com o Geógrafo
e, por fim , a 30, o Dia do Geólogo.
O 18, já vimos, é o Dia Mundial dos Museus
e lá na Terra de Vera Cruz
o Dia das Raças Indígenas da América...
E eu a pensar que o conceito de raça era racista
e não existia mais,
abolido por ser politicamente incorrecto…
Afinal, há um dia das raças,
caucasianas,
semitas,
asiáticas,
americanas,
africanas…
Por fim, a 31, a fechar o Maio,
o Dia Mundial do Combate ao Fumo,
passivo, assertivo, activo, proactivo…

O Junho é, por excelência,
o mês mais ecológico do calendário.
Senão vejamos:
De 3 a 8 é a Semana Mundial do Meio Ambiente;
a 5, o Dia da Ecologia/ Dia Mundial do Meio Ambiente,
a 8, o Dia Mundial do Oceano (não sei qual deles),
a 17, o Dia Mundial para o combate da Desertização
e da Seca
sem esquecer (por muito que nos custe)
o Dia Nacional do Combate às Drogas (26)…


Em Julho as corporações ainda não foram de férias,
depois de celebrarem
a 11 o Dia Mundial da População
e a 17 a Protecção das Florestas…
A 12 é o Dia do Engenheiro Florestal
e, a 13, Dia do Engenheiro Sanitarista.
Enfim, não convém esquecer
o dia do pobre do agricultor,
a 28.

No mês de Agosto,
está-se a banhos,
no Hemisfério Norte
mas, pelo menos no Brasil,
ninguém se esqueça
do Advogado, a 11,
enquanto o 14 é dedicado ao Combate à Poluição
e o 17 à defesa, presumo, do Património Histórico
Não fica mal, a 21, falar da Habitação
e da sua crise,
e dos flavelados,
e dos flagelados,
ou das vítimas da economia do quarto mundo,
que é a do crime,
seguida a 27 pelo Dia da Limpeza Urbana
a 28 o Dia da Avicultura
e, por fim, a 29 o Dia Nacional do Combate ao Fumo.

O Septembro (ou Setembro, sem pê)
é um mês bem preenchido,
em matéria ambiental.
Escrevam isso na agenda:
Dia do Biólogo (3),
Dia da Amazónia (5),
Dia Mundial da Alfabetização (8),
Dia Internacional da Preservação da Camada de Ozônio (16)
(ou Ozono, para o lusófono de Lisboa)
e a, 21, Dia da Árvore.
(espero que com força, não com forca).
Por fim, temos de 21 a 27
a Semana Nacional da Fauna
com destaque para o Dia de Defesa da Fauna (22),
que vai decorrer paralelamente
ao Dia do Técnico Agropecuário.

Em Outubro não sei como vamos arranjar tempo
para celebrar
o Dia da Natureza que é simultaneamente
o Dia Mundial dos Animais (a 4),
dando início à Semana de Proteçção aos Animais (4-10)
sendo o 5 dedicado ao Dia das Aves,
incluindo as Aves do Paraíso,
vaidosas,
multicolores,
canoras…
A 12, temos o Dia do Agrónomo
mas também o Dia do Mar ,
seguido, a 14, Dia Internacional
para a Redução dos Desastres Naturais…
É uma agenda pesada
que inclui a 16
o Dia Mundial da Alimentação
a par do Dia da Ciência e da Tecnologia,
o Dia Mundial da Erradicação da Pobreza (a 17)
e, já agora, Dia das Nações Unidas – ONU ( a 24).

Chegamos a Novembro,
e damos conta de que o ano passou
depressa e mal
e que ainda falta comemorar
o Dia Nacional da Ciência e da Cultura (5),
o Dia Mundial do Urbanismo (8)
o Dia do Urbanismo (9)
o Dia do Rio (23)
e, por fim, a 30, Dia da Reforma Agrária/ Dia do estatuto da Terra,
ou da terra a quem a trabalha…

Em plena euforia do consumismo natalício,
temos em Dezembro
o Dia Nacional do Pau Brasil, a 7,
o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
assinada em 1948,
e diariamente atropelada,
acoplado ao Dia Internacional dos Povos Indígenas, a 10,
mais o Dia do Arquitecto/ Dia do Engenheiro, a 11,
que um e outro estão condenados a entenderem-se…

Passadas e repassadas as festas natalícias,
resta-me o Dia Mundial da Biodiversidade,
a 29.
Em 31 de Dezembro comenta o idiota do poeta:
- E eu a pensar
que havia um dia mundial da poesia
e que a poesia
também se festejava
ou comemorava
ou até se comia
ou muito simplesmente se dizia…


Lisboa, 18 cde Maio de 2007

quarta-feira, outubro 10, 2007

Blogantologia(s) II - (58): Tratamento VIC (Very Important Client)

Eu, blogador, me confesso:
sei agora até que ponto sou um tecnicodependente.
Em boa verdade,
sou um pobre tecnicodependente.
Estive dois dias sem computador
e, imaginem!,
fiquei doente,
foi como se eu tivesse partido as pernas,
o mundo tivesse desabado,
a vida perdido o seu sentido.

Eis a estória,
em síntese:
A placa gráfica do meu PC,
de topo de gama
(talvez a peça mais cara do meu brinquedo!),
bifou,
e o resto da máquina recusou-se a trabalhar.
O material é assim.
Neste mundo é o material que tem razão.
Aliás, o material tem sempre razão,
dizem os engenheiros.
Mas, eu, tecnicodependente,
é que não estive nada pelos ajustes.
Tive um ataque de nervos,
digno de um verdadeiro primata,
de um macho babuíno,
de um egocêntrico e miserável mandril.

Triste episódio este,
ridícula situação a minha,
reacção pueril...
Um homem já não é mais mais o que era,
sobretudo depois de regressar vivo,
mas não incólume,
não impunemente,
da guerra (colonial).
É duro, mas tenho de confessá-lo.

À parte este registo intimista,
deixem-me dizer-vos
que felizmente valeu-me,
nesta triste ocasião,
a pronta assistência do meu fornecedor
e sobretudo a amizade do João.
O meu PC estava dentro da garantia
e eu tive um tratamento VIC
(leia-se: very important client).
Por sorte, havia duas placas gráficas
do mesmo modelo e marca em armazém.
Mas por azar nenhuma delas funcionava.
Dizem-me que é um erro de produção num lote inteiro,
um erro de série.
Eu digo que é falha grave
uma falha que escapou ao controlo de qualidade
por parte do fabricante...
Enfim, à terceira tentativa lá se optou
por um novo modelo de placa gráfica,
de outra marca,
mas igualmente made in China.

Podiam ter-me dito:
o seu PC vai para arranjar
e, quando estiver pronto,
a gente telefona-lhe.
Mas não, deram-me um tratamento VIC,
trataram-me como cliente muito importante,
ou simplesmente como cliente,
ou tão apenas como pessoa...

Tenho pena de não poder publicitar aqui os seus nomes,
o da empresa
e a dos seus colaboradores
que me atenderam e resolveram o meu problema.
Em boa verdade,
era naquele momento
o meu pequeno problema existencial.
Mas a minha vontade
era mesmo elegê-los os portugas da semana.

Devo dizer-vos que é gente do melhor.
E bem precisava este país de multiplicar o seu número
por cem.
Juntando mais 10 AutoEuropas
tínhamos muitos dos nossos problemas colectivos resolvidos.
Para já, tudo somado,
eram mais uns 150 mil postos de trabalho
com um significativo peso no nosso PIBezito,
graças ao seu considerável VAB
(leia-se: valor acrescentado bruto).

Já que estou aqui hoje,
e para mais em maré de confidências,
direi que o que é bom no tratamento VIC,
é tu sentires mais do que cliente,
é sentires-te gente,
pessoa, de carne e osso.
Eu gostei de sentir-me gente esta manhã,
mesmo tendo perdido uma manhã da minha vida
à espera que resolvessem
o meu pequeno grande problema,
que o nosso problema é sempre
o maior problema do mundo.

Sentir-se gente é uma coisa
que começa a faltar neste país.
Uma pessoa sentir-se gente,
alivia as dores,
do corpo e da alma
faz bem à nossa auto-estima,
diz o meu psicólogo
que passou a substituir o meu confessor
do tempo em que eu era menino e moço
e tinha fé,
esperança
e caridade.

Quanto ao problema técnico
que causou a minha infelicidade durante dois dias,
ele é apenas um dos muitos efeitos perversos
da globalização.
Graças à mão de obra quase escrava da China,
a globalização operou este espantoso milagre
do embaratecimento do material electrónico,
incluindo os PC
e os respectivos periféricos.
Lembro-me do primeiro PC que comprei
há mais de um dúzia de anos...
Era um oito seis e troca o passo!
Custou-me os olhos da cara.
Hoje nem para peça de museu o queriam em lado nenhum.
Já foi para o lixo,
nem sequer para o ecoponto
(Shame on you!)
depois de anos passados no limbo do sótão
das velharias.

Deixem dizer-vos que me separei dele,
sem uma ponta de emoção:
estava velho, obsoleto, ultrapassado.
Foi para o sótão, foi para o lixo, e pronto!.
Foi tratado afinal como se tratam hoje
os velhos neste país.
Já o mesmo não aconteceu
à minha velha máquina de escrever:
esqueci o nome da marca e do modelo,
mas ainda hoje a recordo
com a ternura dos meus 17 verdes anos...
E que saudades do martelar seco das suas pequenas teclas!

De qualquer modo,
protesto contra todas as formas de tecnicodependência,
seja a do carro,
do telemóvel,
da máquina fotográfica,
da escova de dentes,
do micro-ondas,
do multibanco
ou do PC.
Um dia o mundo desaba mesmo
e a gente não sabe sequer escrever a giz
no quadro de ardósia da nossa velha escolinha,
plantar umas pencas,
enterrar um morto,
cuidar de um vivo,
fugir a sete pés dos nossos predadores,
da peste, da fome e da guerra,
fazer um filho e pô-lo a medrar
nesta vida e neste mundo.

É um cenário aterrador
mas perfeitamente verosímil.
A regressão
(económica,
social,
tecnológica,
política,
cultural,
moral,
humana...)
tem-se passado em muitos países à nossa volta,
nas nossas barbas,
da antiga Jugoslávia ao Iraque.
Perdi o contacto com as minhas amigas jugoslavas,
croatas e sérvias,
todas elas médicas.
Uma amizade que fiz em Valência
em 1991.
Estava eu para partir para Zagrebe,
para frequentar um curso de verão,
o primeiro curso europeu
sobre promoção da saúde,
quando eclodiu a guerra civil nos Balcãs.
Acabei por ficar o tórrido mês de Agosto
em Valência,
traduzindo de espanhol para inglês as más notícias
que nos chegavam da Jugoslávia.
Ironicamente,
em Valência ainda se faziam sentir,
na memória dos mais velhos,
as marcas cruéis e recalcadas
da guerra civil espanhola
de 1936/39.

Passados estes anos todos,
perdi-lhes o rasto,
às minhas amigas jugoslavas,
uma delas sérvia casada com um bósnio...
E sobretudo tenho pudor em perguntar por aí
se elas ainda estão vivas,
se estão bem,
se não foram violadas,
fuziladas,
enterradas numa vala comum...
E se as encontrassse não saberia como perguntar-lhes,
olhos nos olhos,
se elas tinham conseguido voltar à vida
depois do pesadelo
que foi o desmembramento do seu país
e, em muitos casos, das suas vidas,
das suas famíliasd,
das suas rotinas,
das suas memórias,
da sua identidade...

Rezo, ao menos,
para que elas tenham voltado a sorrir
e a ter esperança.
Mesmo sem computador, e-mail, webpage ou blogue.
Mesmo já sem saber rezar
como quando era menino e moço.
Pensar nas desgraças piores que as nossas
sempre alivia um pouco.
É safado dizê-lo ou pensá-lo,
mas alivia.


Originalmente publlicado em: Luía Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-fora-nada > 8 de Janeiro de 2004 > Socio(b)logia - IV: A tecnicodependência

Revisto em 10 de Outubro de 2007:
a pensar no sr. Carlos Pinto,
chefe de oficina da Santogal,
a RTM, de Alfragide,
que me tratou como um VIC,
que me tratou como gente,
quando, desalentado, lá deixei o meu carro,
empanado...
Como é importante, para todos,
as empresas e os seus clientes,
a economia e o país,
terem pessoas como o João
(hoje posso acrescentar, da Databox)
ou o Carlos Pinto, da Santogal,
que nos sabem transmitir confiança,
diagnosticando o nosso problema
e mostrando que afinal
ele é importante
e que tem solução,
mas que, apesar de tudo,
nem tu nem o teu problema
são os mais importantes do mundo.

Blogantologia(s) II - (57): Cais de partida(s)

Cais de partida(s)

Sempre detestei os cais
de partida,
as estações ferrovárias,
os terminais de autocarro,
onde há gente vulgar
com lágrima fácil ao canto do olho
e pombos debicando restos de comida.

São sombrios e tristes os ares
das gares
como é sombrio e triste qualquer lugar
onde se parte
e reparte
e há sempre alguém que fica
com a melhor parte.

Campo Grande,
Rossio,
Santa Apolónia,
Sete Rios
Cais de Alcântara…
Quem parte está a mais
e não conta na cidade
e só quem parte
leva saudade.

Eu sei que tudo isto é à nossa escala,
liliputiana,
e que noutros sítios
há uma verdadeira tragédia humana
a correr, sem testemunhas.
Que Lisboa não é, ainda,
uma megacidade da quarta economia do crime,
nem pertence a um narco-Estado.

Mas o drama da angolana,
com a sua pequena mala,
que quer ir para Freixo de Espada à Cinta
à procura do velho pai
que não conhece,
não pode deixar-me indiferente.
Nem o caso do nordestino brasileiro
que em Sete Rios julga ter entrada no paraíso.
Nem tão pouco do romeno
que reboca o meu carro
e que me contou a história, fantástica,
da avó e dos seus filhos,
fugidos dos nazis
e alimentando-se, meses e meses a fio,
nos Cárpatos,
do leite da única vaca que escapou à orgia da cruz suástica…

Resta-me a grande nostalgia dos comboios
que nunca tive,
nem em brinquedos,
e que nunca sabotei,
porque nunca fiz parte da resistência,
e onde que nunca viajei
pela simples razão
de nem sequer passarem à minha porta.

Menino e moço me levaram da casa de meus pais
para longes terras, Bernardim,
e talvez por isso
me seja hoje mais fácil chegar do que partir.

sábado, outubro 06, 2007

Blogantologia(s) II - (56): Irish people

Lourinhã > O forte de Paimogo, recém-restaurado, visto de longe, da Praia da Areia Branca. Uma silenciosa vigia contra, no passado, os corsários, os invasores e os contrabandistas e, nos dias de hoje, contra os especuladores imobiliários, o cimento armado, o alcatrão, os campos de golfe...

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Irish people


Para os dubliners Richard Wynne e Robert Anderson

Davam grandes passeios
pela praia
os irlandeses
ruivos
de cabelos brancos
e reformas douradas.

Descobrindo o sul
o sal
o sol
o solstício do verão
num país onde o sul
o sal
o sol
o solstício do verão
se vendem a preço de saldo.

A OTA aqui tão perto
diz o outdoor publicitário
e logo mais abaixo o deserto
e ao fundo o azul do Montejunto
e em frente o Novo Mundo
e a norte o manto protector
de Nossa Senhora de Fátima
garante o promotor
imobiliário.

Ah!, Dublin e os meus gentis amigos dubliners
fechando as portas ao vento
em Dezembro
no pub do James Joyce.

Davam grandes passeios
no outono da vida
os irlandeses,
bem casados,
ruivos,
maravilhados,
realizados,
de cabelos brancos,
ao vento.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Blogantologia(s) II - (55): À espera... de esperar

Lourinhã > Casal Charrua >> Anos 20 do Séc. XX > Os camponeses e os seus burros na festa do São João, 24 de Junho, no cruzamento para a Praia da Areia Branca, na estrada Lourinhã-Peniche... (A partir de uma velha fotografia afixada no Café do Manuel Marques, Banheiro... Com a devida vénia, ao dono da fotografia e ao fotógrafo desconhecidos).

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


À espera… de esperar


Que a mulher te seja fiel
E o carro fiável
E que nunca te falte nada,
São os votos eu que te desejo
A ti que andas na autoestrada
Da vida e da morte.
A ti que persegues o norte
A estrela polar
O mar
E que tens pressa de caminhar.
Boa viagem para todos os viajantes,
Qualquer que seja o seu modo de locomoção:
Almocreve
Condutor
Caminheiro
Pássaro errante
Turista
Meretriz
Pastor
Coveiro
Bombeiro
Guru
Asclepíade
Peregrino de Fátima
Terapeuta
Recolector-caçador
Vagabundo
Camionista
Demiurgo
Vendedor de sonhos
Beduíno
Barqueiro de Caronte
Nómada
Ninfa
Big brother
Conquistador
Soldado
EX-guerriheiro
Grafiteiro
Salvador de almas
Poeta
Globetrotter…

Passam milhares de carros
Na autoestrada
A alta velocidade
Ao quilómetro 10 ponto 6
Da A-8
E eu à espera do clique do motor
Da assistência das Estradas do Atlântico
Do rebocador da ACP
Da irracional fé na ciência e tecnologia
Dos teutónicos
Da infectível confiança na democracia
Do autocarro do amor
Da boleia da sorte
Da solidariedade dos meus contemporâneos
Da alvorada do milénio
Da aurora boreal
Do furacão que me arranque as palas dos olhos
E o limpa-parabrisas da cegueira.

À espera de esperar!
Desesperadamente…

sábado, setembro 29, 2007

Blogantologia(s) II - (54): Nós, os pedopapagaios




Alcobaça > Exterior do mosteiro > 22 de Setembro de 2007

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Nós, os pedopapagaios

O alijar a carga ao mar,
em tempo de porcela,
o invectivar os deuses que mandam a borrasca
ou o praguejar contra o patrão do barco
que se livrou desta
porque ficou em terra...
isso é muito teu,
é muito nosso.
Do teu/nosso lado de marinheiro
das setes partidas
que acredita no destino,
na vaga de mar,
no golpe de asa,
no sopro de vento,
no jogo da sorte e do azar,
no capricho dos deuses,
no fatum,
no fado.

Má sorte, má fortuna!...
E os erros meus ?
Essa parte omite-se....
Não somos anglo-saxónicos,
não somos germânicos,
não somos nórdicos,
somos latinos,
somos mediterrânicos,
católicos,
apostólicos,
romanos.
É sempre o mesmo idiota comentário
do tuga,
masoquista,
que adora autoflajelar-se,
em público,
e nomeadamente quando a plateia é estrangeira
e ainda mais idiota,
porque é turista em férias.

Podemos invejá-los.
Há povos invejosos.
Os portugueses estão a ficá-lo:
invejam os vizinhos
e os vizinhos dos vizinhos,
o seu sucesso,
o seu ranking no seio das nações,
os seus índices de desenvolvimento...
Por boas e más razões.

Não seremos únicos no pecado da inveja.
Mas o certo é que a Alemanha
e em geral os países de cultura protestante,
luterana ou calvinista,
exercem, sempre exerceram, um certo fascínio
nalgumas elites ibéricas que lutam,
desde o Século das Luzes,
contra o lastro escolástico,
sebenteiro,
fidalgote,
retórico,
gongórico,
gongorizante,
barroco,
inquisitorial,
fradesco,
cristão velho,
feudalizante,
jesuítico,
da nossa cultura.

Os tipos seriam, por oposição a nós,
metódicos,
organizados,
racionais,
frios,
competentes,
empenhados,
compulsivos em relação à eficiência, à eficácia e à qualidade,
dotados de racionalidade económica,
virados para o cálculo,
a acumulação,
o investimento,
a realização
a ética do trabalho...

Quando vamos a Alemanha,
tudo parece girar sobre rodas,
por isso os gajos são (ou têm sido)
a locomotiva da economia da Europa.
Será assim ?
Outros perguntam:
Por que razão o Zé Portuga
não há-de ter também essas qualidades
que são próprias dos vencedores,
sem perder os traços únicos
que fazem dele isso mesmo,
o Zé,
o Portuga ?
Ah!, o paradoxo português,
Ah!, as idiossincrasias do tuga,
Ah!, a sardinha assada comida com a broa de milho,
mais o caralho das Caldas,
e o galo de Barcelos!...

Não sei qual é a poção mágica
(à parte a pool genética
e as mil e uma combinações
como a economia,
a cultura,
a história,
a ecologia,
a psicologia dos líderes,
a sociologia das elites, etc.)
a misturar no caldeirão...

mas devo acrescentar que a educação,
só por si,
não chega...
Precisamos de uma nova alquimia.
E quando falo em educação
refiro-me às actividades de ensino e formação p.d.
(propriamente ditas):
a escola (no sentido lato) continua a ser,
em larga media,
uma redoma de vidro
(ao menos que fosse um torre de marfim,
sempre seria algo de mais robusto),
uma actividade-meio,
e não uma actividade-fim
que serve para alimentar o sistema...

Nós,
espécie híbrida de pedagogos-papagaios,
pedopapagaios,
adoramos ensinar,
formar,
papaguear,
blá-blá...
Todo o português tem um pouco essa costela
e essas penas de pavão
ou de pedopapagaio,
sabendo de tudo um pouco.
Trapalhão mas sabichão.
E no entanto
somos maus a aprender a aprender...
com os simples,
os mais desastrados,
os irresponsáveis,
os loucos,
os marginais,
os desviantes,
as vítimas,
os doentes,
os fracos,
os perdedores,
os minoritários,
os minotauros,
os deuses,
os diabos,
os estrangeiros,
os estrangeirados...

Já nos pusemos do outro lado da barricada ?
Já nos sentámos no lugar do morto ?
Já nos deitámos na mesa do bloco operatório ?
Já nos pendurámos na corda do pelourinho ?
Já subimos ao mastro real ?
Já tentámos compreender por é que
os operários
e as operárias deste país
têm, às vezes, atitudes e comportamentos
que são claramente de risco,
do género
está-se-mesmo-a-ver-que-vai-dar-merda...

Um pouco mais de humildade,
de imaginação,
de ternura,
de saber ver e ouvir os outros,
de saber pôr a falar os outros,
não te ficará mal,
a ti, pedopapagaio.

Às vezes receio que a educação
e a formação neste país
sirvam apenas para justificar a nossa existência
de pedopapagaios,
sem que com isto eu esteja a querer minimizar
a prestimável classe dos pedagogos
(de que faço parte)
nem, muito menos, os inocentes, pobres e alegres
papagaios,
que estão em vias de extinção.

Talvez o nosso erro esteja justamente aí:
ensinamos para as pessoas,
não ensinamos com e através das pessoas
e sobretudo não aprendemos com elas.
E isso só será possível se
conseguirmos pôr,
definitivamente,
em cima da mesa,
a questão das vantagens da participação organizacional
(na escola,
na empresa,
na administração,
nos sindicatos,
nas associações)...
Essas vantagens são de longe superiores
aos seus custos.
Sem participação
não há educação que nos valhe.
A razão é simples:
a educação é uma co-actividade.
Tal como a saúde.
Tal como a cidadania.
Tal como o amor.
Tal como a amizade.

Outubro de 2003

segunda-feira, setembro 24, 2007

Blogantologia(s) II - (53): Rua da Conceição, nº 100, ou o poema do marinheiro sem mar

Região Autónoma da Madeira > Funchal > Baía do Funchal > 16 de Maio de 2007 > Réplica da caravela Boa Esperança.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Rua da Conceição nº 100: marinheiro sem mar

Português sem título nobiliárquico,
explorado
e oprimido,
suprimido,
reprimido,
duplamente comprimido,
retornado,
e agora prec[arizado],
quer dizer periférico e dependente,
pobrete e alegrete,
muito pouco enfático,
depois de perder o império colonial,
o último.
Sem os três DDD dos dedos da mão.
Que Abril já é Novembro.
Sem os cravos.
Sem os escravos.
Com o FMI à perna.

Advinha fácil, terna,
para um marinheiro
sem bote nem mar
mas os novos senhores da praça do comércio
ainda gostam do travo a sal,
maresia, canela, azebre,
bolor, patine e sangue
que a grande aventura dos avoengos,
burgueses,
lhes deixou na boca.

Pelo menos estas imagens e estes cheiros
são flores de estilo,
metáforas,
que ainda salpicam os seus discursos
gongoricamente socializantes.

Tuga,
chamavam-te os negros da guiné em crioulo
como quem chama filho da puta,
hoje demandas outras paragens,
vais por terra porque já não tens porto
nem naus
nem caravelas,
vai para o raio que te parta,
vai para a puta que te pariu.

Seis milhas marítimas são um lago
para as crianças brincarem
e já não há rei
nem roque
para poderes clamar aqui d’el-rei,
para não perderes o norte,
para apelares à real justiça
ou tão só para poderes morrer,
com cama,
comida
e roupa lavada
e ainda com a extrema-unção,
no real hospital
de todos os santos.

Mas não estás só
nem órfão,
que a europa, dizem, está contigo.
De qualquer modo
não perdeu o gosto pela história,
trágico-marítimas,
pelas anedotas
salpicadas de sangue, suor e lágrimas,
a par das picantes,
além das de escárnio & maldizer.

Agora, por exemplo,
falas no tigre de são bento
que era de papel
e tinha um amigo em belém,
rodeado de quarenta piratas de perna de pau
que haviam trocado a cruz e a espada
pelo garfo e a faca do gambrinus.

Português, enfim,
de seu nome,
filho de gente ilustre,
ilustrérrima,
cuja origem se perde na noite dos tempos
ou nas manhãs de nevoeiro.
Com alguns sarracenos, judeus e pretos
pelo meio,
a dar cabo da árvore genealógica,
a estripar a estirpe,
a sangrar a pureza do sangue.

bip
bipolar
bifurcação
bis bisar bisca bilhete bissexto
banco
banco português
banco intercontinental português
plural pluricontinental pluracial
rua da conceição 100
onde trabalho para a administração fiscal

baixa pombalina
15 de fevereiro de 1977.

Recordações
do império colonial
que eu não consegui defender
até à última gota do meu sangue...~
I'm sorry.
Em que repartição da pátria
é que poderei apresentar
as minhas desculpas ?

Mas onde é que acaba, afinal,
o passado
e começa o futuro,
ponto de interrogação
e fim de citação.

Um poeta sem mensagem.

Lisboa, Fev 77. Revisto em Set 07.

domingo, setembro 23, 2007

Blogantologia(s) II (52): Era uma vez uma princesa... ou a globalização explicada pelo avô aos netinhos

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 1 de Setembro de 2007.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Há uma outra versão originalmente publicada em 26 Janeiro 2004 > Humor com humor se paga - XX: A globalização explicada às criancinhas: 'Quando passam rábanos é que é comprá-los'


Era uma vez uma princesa...


Era uma vez uma princesinha,
inglesa, muito bonita mas infeliz
no casamento com o príncipe,
que afinal não era encantado.

Um dia, a princesinha deixou de chorar
e arranjou um namorado egípcio,
muito rico,
que tinha a mania que era playboy.

Aconteceu que ambos tiveram um grave acidente,
do qual resultaria a sua (deles) morte,
num túnel por baixo de um boulevard parisiense,
num carro fabricado na Alemanha
com motor montado por operários checos ex-comunistas,
conduzido por um belga que bebia whisky (escocês) em demasia
e que, como belga, tanto podia ser valão como flamengo.

Este último pormenor da história só interessa à polícia,
incluindo os serviços secretos de sua majestade,
a raínha dos great britons,
que é a bruxa má desta história.

E todos, a princesa e o candidato a princípe,
mais o motorista belga
e os guarda-costas da princesa,
eram perseguidos por paparazzi italianos,
em potentes motos japonesas de grande cilindrada,
empunhando máquinas fotográficas japonesas
com teleobjectivas de infravermelhos made in China,
sob licença.

A princesinha,moribunda,
ainda foi assistida por uma equipa de emergência médica,canadiana,
num grande hospital árabe de Paris,
tendo-lhe sido ministrados medicamentos
de uma multinacional farmacêutica,
dessas sem pátria, com fábricas no Brasil.

A tecnologia de reanimação
também era de uma outra multinacional
que trabalhava no programa espacial da NASA
(os senhores que mandam foguetões para a Lua e para Marte)
e que acabava de fazer uma OPA hostil
para ficar com a parte de leão do mercado da indústria da doença
(Se vocês não sabem o que é uma OPA hostil,
perguntem lá em casa aos paizinhos
ou à stoura da vossa escolinha).

E eu, que sou portuga,
estou-vos a contar esta história
num blogue que existe na Internet,
usando tecnologia desenvolvida por um senhor chamado Bill Gates
e que vive na América dos cow-boys
e que é podre de rico por causa da terceira vaga
que ele cavalga como nenhum outro surfista do Hawai.

Vocês, muito provavelmente,
estão a ler esta mensagem num computador
que é um clone da IBM
e que usa chips feitos em Taiwan,
e num monitor sul-coreano,
TFT de 17 polegadas,
montado por pobres trabalhadores do Bangladesh
numa fábrica de Singapura,
transportado em camiões TIR de uma empresa chinesa,
de Honk-Kong,
conduzidos por indianos,
e que depois foram roubados (os camiões)
por piratas malaios e indonésios,
e descarregados por pescadores sicilianos
que trabalhavam para a máfia chamada Cosa Nostra.

E de repente estamos numa minúscula ilha das Caraíbas
onde o material (computador, monitores e demais periféricos)
está a ser empacotado
por campesinos mexicanos clandestinos,
à beira de entrarem para o grande sonho americano,
para depois ser transportado num porta-contentores russo,
de pavilhão de conveniênia, panamiano,
desembarcado em Roterdão,
e finalmente vendido por judeus holandeses,
que escaparam ao holocausto nazi,
e que até meados do Séc XVII viviam em Portugal,
prósperos, felizes e contentes.

Com eles desembarcaram,
mais mortos que vivos,
os novos escravos negros
que fogem do inferno
das Costas de Marfim e das Libérias,
das Serras Leoas e das Guinés.
Apanhados pela polícia da Eurolândia,
foram recambiados para as terras de fome, de miséria e de morte
onde nasceram.

Pois é, meus meninos,
isto é que é a globalização.
Convenhamos
que as histórias das princesas encantadas,
dos tempos dos nossos avós,
que se chamavam afonsinhos,
eram muito mais bonitas do que esta,
que é triste e sórdida e imoral.

Já não me lembro do nome da princesa
nem da bruxa má,
mas para o caso tanto faz.
Em boa verdade,
também não sei o verdadeiro nome dos chinos
que montaram o meu computador
e sem o qual eu nunca poderia comunicar com vocês
que são umas encantadoras cibercriancinhas biónicas.

Se puderem, escrevam um e-card
com musiquinha e animação.
Estamos a precisar de levantar o/a nosso/a moral
(desconheço o género da palavra,
e não tenho aqui à mão
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
que passou a ser o meu livro de cabeceira
e que eu uso em vez do xanax para dormir).

E ainda a propósito,
queria aqui referir um adágio popular,
que existe lá na terra dos tugas, e que diz:
"Quando passam rábanos
é que é comprá-los".

Não encontrei até à data
mais feliz e sintética definição
para essa coisa da globalização.
Há uma profunda mas tranquila sabedoria neste adágio
que só pode ser de origem moura
porque os rábanos são cultivados pelos saloios
da Estremadura lusitana
e estes descendem dos mouros,
como eu,
os quais foram escravizados pelos feros francos cristãos
da Reconquista.

Meus meninos, acabou a escolinha.
Podem ir para o recreio.

domingo, setembro 16, 2007

Blogantologia(s) II - (51): A morte do pássaro de areia




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 (Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), com um Alfa Bravo (abraço) (1)

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
O tchador.
A burkha.
A mulher dengosa.
A expulsão do paraíso.
A língua veperina.
O caduceu do Asclépio.
Febre hemorrágica.
Sida.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
A língua azul dos camelos.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.
A gripe das gaivotas-ratazanas.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
A febre da carraça.
Malária, paludismo, sezonismo.
A doença de Creutzfeldt-Jakob
O mal de viver.
Os vectores das doenças emergentes.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.
As setas pragas do Egipto.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. Burn-out. Desidratação.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.
Ou um náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que eram verdes.
Diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.
Já.
Ou encontravas.
Diz ele.
Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha
nem ração de combate.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.
Simplesmente morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira.

-diz ele.
In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,
o napalm,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela.
- Quem vem lá ?
Cala-se o dari (2) no Cantanhez.
E as gazelas na orla das bolanhas da zona leste.
Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Chimpanzé

Blogantologia(s) II - (50): O desejo é um pudim instantâneo

Lourinhã >Praias > Vale de Frades > 15 de Setmbro de 2007 > Baixa-mar

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


O desejo é um pudim instantâneo

Quando eu era puto
Sempre me ensinaram
O terrível poder do Desejo,
Com D grande:
- Diz três desejos e cala-te! -
Intimava o Brutamontes.
- Quero ser rei,
Ter um exército invencível
E destruir todos os meus inimigos!

Confessava eu, baixinho,
Aterrorizado,
No recreio da escola.

Cresci e perdi definitivamente a ilusão
De que poderia ser Deus.
Omnipotente.
Omnisciente.
Omnipresente.
Nem sequer rei ou até general.
Em contrapartida, aprendi a conhecer (mal)
Os quatro cavaleiros do Apocalipse humano:
A estupidez,
A arrogância,
A ganância,
A intolerância.

Quanto ao desejo,
com d pequeno,
Pu-lo no congelador,
Em caixinhas da tupperware:
Saúde, paz, dinheiro,
Amizade, amor,
Felicidade…
Em doses generosas, fraternais.
Tudo pronto para ser exportado
Por terra, por mar ou by air.
Tudo pronto a ser usado
Num próximo ensejo.

Mas o desejo
Tem um prazo de validade.
Deve agitar-se,
Primeiro,
Antes de usar-se.
Nunca deve ser congelado
Nem revalidado.

Hoje o desejo é um pudim instantâneo
Que se compra no hipermercado
E está sujeito a IVA
E a controlo da qualidade.
Vem em dose individual
E o seu modo de admimnistração é cutâneo.

Confesso que sou um produtor artesanal
De desejos.
Que não estou acreditado.
Que a minha produção é para autoconsumo.
E que às vezes tenho maus desejos
E maus pensamentos.
Como quando era puto
E queria ser rei
E ter um exército invencível
E matar o Brutamontes.


Praia da Areia Branca,
15 de Setembro de 2007.
No fim do verão.
Esplanada do Café do Manel Banheiro.
A meu lado, há uma reunião pantagruélica
Dos sócios honorários
Da Confraria... da Feijoada de Búzio.

sexta-feira, setembro 14, 2007

Blogantologia(s) II - (49): Roma, amor

Candoz > 27 de Agosto de 2007

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Roma, amor

Roma, amor,
Aos quarenta e dois anos
Da era de Cristo.

Conheci-te entre o Paimogo e o Vale da Aosta
A caminho dos mares do sul.
Eram quatro e vinte da tarde.
Era praia-mar.
Eras tu.

E não era o sol, o sul,
Nem o cio, o rio quente
Que atravessava o teu corpo
Nem os fogos fátuos do verão adolescente.

Roma e amor
Antónimos são.
Amor leia-se Roma ao contrário.

Visto do Monte Branco,
Sereníssimo,
O planeta era habitável
Sem o Abominável Homem das Neves
Trancado no sótão da nossa infância
Mais a Branca de Neve e os Sete Anões.

Em Vila Real de Santo António
Comíamos chocos en su tinta
E o vinho branco seco
De Entre Douro e Minho
Fez-me, não sei porquê,
Lembrar o Rio Pó
E o amor que não fizemos em Verona
(Pobre Romeu e Julieta!).

E era verde Veneza
Como verde era o teu rio, o Douro,
E o milho, verde milho
Onde namorei uma rapariguinha.

Talvez não soubéssemos quando
Mas desde sempre, digo-te,
Te amei
Ou deveria amar-te
Se acaso te conhecesse antes
Da era de Cristo
Do ano de quarenta e dois
Em Roma
(ou algures, na Serra do Soajo,
Na Amarela, na Peneda ou no Gerês).

Em Roma,
(Ou foi na Toscânia,
Às portas de Florença?)
Bebi do teu leite,
Bebi do teu vinho.

E entre Bordéus e Paris
Não saías da autoestrada
Do meu pensamento.

Em Roma, amor,
Aos 42 anos,
Ao quilómetro 42 da tua, nossa, vida!

Luís Graça
18 de Agosto de 1987.

terça-feira, setembro 11, 2007

Blogantologia(s) II - (48): Em Agosto, o mar, a noite, o amor

Lourinhã > Praia de Paimogo > 4 de Setembro de 2007 > Algas na maré-baixa.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Em Agosto, o mar, a noite, o amor


Em Agosto, o mar, meu amor,
As algas crescendo no teu cabelo,
As ilhas secretas do teu corpo,
O sal, o sol, queimando os teus seios,
Um poema de Neruda
Que fica por dizer.

Em Agosto, a noite, meu amor,
Les enfants qui s’aiment
S’ embrassent debout
Contre les portes de la nuit…

O teu Jacques Prévert,
O cheiro a palha de centeio do teu vestido,
O cigarro que fumamos juntos,
Em silêncio.

Em Agosto, o amor, meu amor,
É beber o vinho verde pelos teus lábios,
É passear pela maresia dentro,
De mãos dadas,
É jogar às escondidas no milheiral,
É enfim ouvir uma Joana dizer
Papá, mamã.

Lourinhã, 18/8/1979

domingo, setembro 09, 2007

Blogantologia(s) II - (47): SOS, Mare Nostrum




Lourinhã > Praia da Peralta > 8 de Setembro de 2007

Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


SOS, Mare Nostrum

Poderei não suportar
O dia em que o mar
Se retirar da minha praia.

Poderei adoecer
Ou até mesmo morrer
Se me tirarem o mar
Da minha rua.
E o pôr do sol
Sobre a linha do horizonte da minha janela.
E o cheiro a maresia
No meu almofariz de cheiros.
E as neblinas matinais
Lavando os meus olhos.

Não sei se conseguiria fazer o luto
Do Mar Morto.

Emigrarei para o hemisfério sul
Quando me tirarem o mar do Norte,
O mar do Serro,
O Mare Nostrum,
As Berlengas ao fundo,
O vento nos canaviais
Na Praia do Zimbral.

Posso gostar das tuas montanhas
E das tuas albufeiras
E das tuas florestas de carvalhos,
Da gente rude e franca do Norte,
Mas preciso de regressar ao Sul,
De vez em quando,
Para respirar como as baleias.

Um exército de lapas
Move-se de rocha em rocha
Como sinal premonitório
Da transmigração do mar.


Praia da Peralta,
8 de Setembro de 2007

sábado, agosto 18, 2007

Blogantologia(s) II - (46): Agosto na baixa-mar

Lourinhã > Praia de Paimogo (1) > Os antigos viveiros de lagosta, em ruínas, e a descoberto na baixa-mar, 17 de Agosto de 2007.

Lourinhã > Praia de Paimogo > Baixa-mar, 17 de Agosto de 2007.

Lourinhã > Praia de Paimogo > O Forte de Paimogo, ao fundo, visto da Pria de Vale de Frades, 17 de Agosto de 2007.


Lourinhã > Praia de Paimogo > 17 de Agosto de 2007 > Pescadores, com a Praia da Areia Branca ao fundo.


Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Agosto na baixa-mar (2)

Em Agosto
Voltarás a ser catraia.
A ser a primeira
A chegar à praia.
E a deixar as tuas peugadas
Impressas na areia,
Limpa e enxuta,
Da manhã.

Em Agosto,
Para, olha e escuta
O esplendor da luz nas arcadas
Das praças da cidade
Vazia.

Agosto,
Na baixa-mar,
Será sempre o teu dia,
O dia seguinte ao acto da criação
Do mundo.
E terá sempre um lugar:
Vale de Frades
Ou a implosão das falésias
E da maresia.

Em Agosto,
Submergirás até ao fundo
E será através dos subterrâneos do mar
Que chegares até aqui.
Até mim.

Agosto,
Na baixa-mar,
Será um imenso oceanário,
A festa de todos os signos,
Do Leão ao Aquário.
Agosto, o mês do verbo amar.

Lourinhã, 18 de Agosto de 2007.

__________

Nota do editor:

(1) Vd. post de 28 de Setembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (7): Paimogo da Minha Infância

(2) Vd. posts de:

9 de Novembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (15): O amor em Agosto

21 de Abril de 2007 > Blogantologia(s) II - (38): Apetece-me dizer-te que te amo

segunda-feira, agosto 13, 2007

Blogantologia(s) II - (44): Infeliz o surdo (e o huno), porque dele não será o Reino de Neptuno

Lourinhã > Praia de Vale de Frades > Rocha com vestígios de árvores fossilizadas.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados

Infeliz o surdo (e o huno), porque dele não será o Reino de Neptuno

Estou surdo
E não poderei ouvir-te
Em Agosto.
Nem ouvir o que mais gosto em Agosto,
O mar,
A décima sinfonia do mar.
Ou só poderei captar
Meio som
Com meio ouvido.

Estou surdo
E por mais absurdo
Que isso te pareça
Só poderei entender
As palavras sibilinas
Que me escreveste no teu último mail.

Aqui estou, especado,
Na areia,
Emparedado
Entre o Beethoven a fazer o pino
E o desejo e a ameaça de Sibila.
Enquanto espero o otorrino
À porta do consultório
E o sol que tarda
Nesta tarde do mês de Agosto.

Infelizes os surdos
E os curdos
(que não têm mar nem pátria)
E os duros de ouvido,
Porque deles não será o Reino de Neptuno!

Sinto-me infeliz
No pico do verão,
Meio surdo,
Meio huno,
Meio curdo,
À espera do sol
E do seu espectáculo de strip-tease.

Aqui especado,
Parado,
Enterrado na areia,
À espera de qualquer coisa,
De acontecer qualquer coisa,
À espera da queda dos últimos restos
Do sacro império dos romanos,
Uma prancha de surf,
Um tubarão assassino,
Uma aeronave publicitária,
Um ataque de pânico,
Um falso alarme de tsunami,
Um crash na Bolsa de Nova Iorque,
Um suicídio colectivo,
Um pedaço da arrábida fóssil,
Um duro osso de roer de dinossauro,
Uma boa chuva de meteoritos made in China

À espera dos bárbaros,
À espera dos hunos,
À espera do otorrino,
À espera de ti,
À espera do sol
Que teima em tardar,
À espera da recuperação dos meus cinco sentidos.
À espera do som e da fúria
Da próxima praia-mar,
Em noite de lua cheia
Prenha de augúrios, fantasmas e medos.

Só não conquistaram o sol,
Os romanos,
Nem os oceanos.
O Atlântico.
O sol que tarda em Agosto.
Nem havia nesse tempo
O direito a férias pagas,
Subsídio de invalidez por surdez profissional,
Nem muito menos o prémio por nascimento
E funeral.

Estou surdo,
Ou se não estou surdo foi por um triz,
Estou surdo
E a fazer o luto
Pela morte do Estado-Providência
Que me pagava o otorrino
E as gotas para o nariz.

Aqui é o meu futuro,
Diz o novo huno,
O imigra que agora vende Bolas de Berlim
Em praias rigorosamente concessionadas
E vigiadas pela ASAE.
Sem dó
Nem piedade.
Viva o fascismo sanitário,
Proclama o outdoor
Da nova polícia das retretes
E dos croquetes.

Estou surdo.
Falta-me ficar cego e mudo.
Para ser cego, surdo e mudo,
Como a figura da deusa Justiça.

sábado, agosto 11, 2007

Blogantologia(s) II - (43): A Friendly World

Lourinhã > 5 de Agosto de 2007 > Baixa-mar, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades, com o forte de Paimogo ao fundo. A Alice e uma amiga do Porto, a Laura.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados

Para o João Graça que está em Natal, Brasil, e para os seus novos amigos brasileiros, o Igor e a família Santos, que tão generosa e calorosamente o acolheram por um mês.


A friendly world,
por Luís Graça

Se todos os pescadores
De todo o mundo,
Ao longo de todas as costas,
De todas as linhas do horizonte,
De todas as praias,
De todos os mares,
De todos os bancos de pesca,
De todos os icebergs,
De todas as fossas submarinas
E plataformas continentais,
De todas as ilhas,
De todas as pontes,
De todos os cabos e promontórios,
De todos os lagos e albufeiras,
De todos os rios,
De todas as rias,
De todos os cais…

Se todos os pescadores
Se dessem as mãos,
As canas de pesca,
Os fios,
Os anzóis,
As redes, os covos,
O mapa das marés,
Os barcos, as canoas,
A bússola, o radar,
O GPS,
O sextante, o sonar,
O peixe pescado,
O peixe por haver,
Fresco,
Cru,
Seco,
Frito,
Cozido,
Guisado,
Assado,
Grelhado,
Fumado,
Salgado,
Congelado…

Talvez pudéssemos reencontrar
Elos perdidos da cadeia da vida…

Talvez o mundo fosse mais
Pequeno,
Aconchegado,
Caloroso,
Maneirinho,
Habitável…

Talvez o mundo fosse mais
Amigável.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Blogantologia(s) II - (42): Jogava-se à bola, domingo à tarde, na minha aldeia

Lourinhã > 2006 > Uma velha janela da minha rua...

Lourinhã > A avó paterna, Alvarina de Sousa Henriques... Morreu, de tuberculose, em 1922, qaundo o meu pai tinha dois anos... A mãe tinha vindo de Ribamar e pertencia à grande família dos Maçaricos...
Cabo Verde > ILha de S. Vicente > Mindelo > 1º Cabo Henriques, nº 188/41,expedicionário., 1941-43. Para defender a Pátria contra tudo e contra todos:os aliados, as potências do eixo...

Lourinhã > 2 de Fevereiro de 1946 > Os meus pais, no dia do casamento...

Alfragide > Junho de 2007 > Os meus amorosos velhotes (aqui fotografados pelo neto)...

Lourinhã > Jardim da Nossa Senhora dos Anjos > Setembro de 1947 > O artista quando criança, aos 8 meses...

Lourinhã > c. 1950 > Eu e a mana Graciete (n. 1948)... Dezoito meses de diferença...

Lourinhã > Finais dos anos 40 > Jogava-se à bola no largo do convento...

Lourinhã > Nadrupe > c. 1947 > O tio Silvano...

Guiné > Zona Leste > Bambadinca > 1970 > O artista quando jovem, aos 23 anos...

Guiné > Zona Leste > Bambadinca > Cuor > Finete > 1969 > Eu e os meus queridos nharros... O puto Umaru, de pé, de cachimbo, já morreu, em Portugal, há dois ou três anos...

Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.
Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.
Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os filhos aos pais,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas azuis,
A sacola a tiracolo,
O recreio,
O leite em pó da Caritas americana,
O jogo dos cinco cantinhos,
O berlinde,
O abafa,
As caricas,
O bife ao domingo,
O polvo na maré-baixa,
O bacalhau com grão às sextas-feiras
Na Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão, a Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
As rixas,
As travessuras,
O pião,
O supremo heroísmo
De alguém que morreu para te salvar,
Deus, Nosso Senhor,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda
Como os anjos bolachudos do altar-mor
Da igreja matriz.

Quando era menino e moço,
E feliz,
E acreditava nos contos de fada,
Havia as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
Tão morto como qualquer mortal,
As opas roxas como no tempo da Santa Inquisição,
As matracas que nos enchiam de terror divino,
A bolsa lacrimal dos anjinhos,
As lágrimas das nossas mães,
O sagrado e o pagão,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
A feira,
O carrocel,
As labaredas do inferno,
As fogueiras de Santo António,
As bichas de rabear,
O calvário e as suas trezes estações,
A rua da misericórdia,
A rua grande,
A rua do castelo,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Marinheiros aventureiros,
Soldados fortes e valentes,
Ou simples cavadores de enxada,
Como os seus pais e os seus avós
Tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo,
Nem se chorava por eles.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes,
Os camponeses e os seus burros
E demais animais de estimação,
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas, os peros e os abrunhos,
O melão e a melancia,
O pão de trigo do moleiro
Cozido no forno a lenha.
Bebiam vinho pelo garrafão
E comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
Feitas de trapos,
Berrantes, multicolores.
Eu era petiz
E eles vendiam saúde e morriam cedo,
Contrariando o provérbio que diz
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dá tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda
E que tresandava a iscas com elas,
A vinho tinto carrascão
E a serradura…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede,
Uma sapatada contra o destino.
Menino com vocação circense,
Menino-jogral,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Escrevia eu no quadro preto.

Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(vã promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Em Janeiro,
Os carros de pão,
As promessas de amor,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’ Adelina
Da rua do clube,
Contra o mau olhado,
O sarampo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A pneumionia,
A pleuresia,
A tísica,
O lobisomem,
A bruxa de São Bartolomeu,
O santo que pisava um diabo negro a seus pés…
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.

Não se livrou o sacristão,
Que se matou num poço,
Por maldição,
Depois de roubar a nota de vinte paus
Ao diabo de Samert’lameu.

E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado
Pouco ou nada heróico de patriotas,
Quixotescos, quiméricos,
Vagamente republicanos, jacobinos e anticlericais,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar,
Os ditadores ibéricos.
Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona,
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
Nem o correio azul
Nem a Internet
Nem a Wikipédia
E o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
A tragédia,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conheci um carteiro,
O ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E mais tarde meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha,
A filha do Visconde lá da terra!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?

E ao alto, acima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morrera para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,
Escrevia eu, a giz,
Na ardósia,
Repetindo-o
Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.

A melancolia de domingo de tarde…
Havia a bola,
O hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E sticks de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
Ou de sandálias de sola de pneu
No largo do coreto da minha aldeia.
Ou descalço, com bola de trapos.
Quando havia ainda o coreto,
Frente à escola,
E a senhora professora Dona Helena
Te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.
Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra, lascada,
Que te vem de fora,
A cento e tal à hora,
Arremessada
Por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
O capital e o trabalho,
A família e a pátria,
E se calhar até Deus,
E que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe.

Quando ainda havia o coreto
E a banda filarmónica
Cabia lá toda,
Jogava-se à bola
Domingo à tarde
Na vila da minha aldeia de gente liliputiana.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As rixas.
As cenas de pugilato
E vara pau.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe
Que era bufo e da União Nacional
E tinha uma amázia lá terra.
E o louco.
E o beato.
E o sacristão que era bimbo.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O director escolar.
O provedor da Misericórdia.
Os pensionistas, os porcionistas e os indigentes.
Os ricos, os remediados e os pobres.
Os sãos e os doentes.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.

Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
E chegava.
E os funcionários do grémio da lavoura
Que recebiam ao fim do mês,
Mais os da Câmara e das Finanças.
A pequena burguesia pelintra,
Manga de alpaca,
Mais os comerciantes e os proprietários,
Que animavam o Clube 24 de Julho.

Havia três médicos,
E chegavam para todo o concelho,
Que a gente só os chamava
No estertor e no pavor da morte.
A eles e aos padres.
Havia dois boticas.
E chegavam.
Havia os cortejos de oferendas
Para se construir um hospital novo
Para a velha Misericórdia.
Havia a escola, primária, do Conde de Ferreira,
Construída no tempo da Regeneração,
Com o remanescente da herança
Do maior benemérito do Liberalismo.
Havia o carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa
E pôr a conversa em dia.
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Coisas que me contavam
Do meu tio-avô Fofa
Que tinha fama de malandro e de beato,
Uma figura seca e mística,
Arrancada às tábuas do Greco.

Enfim, havia a vida privada,
Exposta na via pública
Domingo à tarde.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
As tentações do Capuchinho Vermelho.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
Os ciganos acampados no Rossio.
As cheias do Rio Grande.
E a barraca onde só iam os homens feitos,
Mal enjeitados e com barba de três dias.
E as virtuosas e púdicas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam,
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
No lendário Bairro Alto
Da formosa Lisboa
Ande fui, pela primeira vez,
Na camioneta do João Henriques,
Aos oito anos.
Lisboa, onde se ia de camioneta uma vez na vida.
Ou duas: primeiro no passeio anual da catequese
E depois, graças às sortes,
Para tomar o vapor das Índias e das Guinés.

Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o esplendor do cinismo dos grandes
E a ostentação da caridade dos ricos!
Que dar aos pobres
Era emprestar a Deus!

E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca
Mas tinha uma mauser distribuída,
Para ser usada em caso de guerra civil
(Ou de invasão dos marcianos!)
E que morreu virgem
E chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que eu imagino às vezes belo e garboso,
E outras vezes cabrão,
E que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia um na minha rua
Para abastecimento geral de água potável.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.
E à cabeça da procissão
Ia o pobre e o notável...

Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Imponente,
Valente
De sabre em riste
Contra os grevistas,
Os filhos e as mulheres dos grevistas...
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro,
A CUF,
O Alfredo da Silva
E outros capitães de indústria,
Ou a Marinha Grande,
As fábricas
E os operários em construção.
Os trolhas,
Os mineiros,
Os garimpeiros,
Os almocreves...
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
Ali tão perto,
As Berlengas e as sirenes no nevoeiro,
As sirenes do medo e da coragem,
E o Álvaro Cunhal,
Foragido,
Grande herói da classe operária,
E inimigo mortal
Da Igreja do Cerejeira
E da Nação de Salazar.

Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do Joãozinho:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.

De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
E de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Nasci na Ilha de São Vicente
Onde nunca fui.
Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante,
Fundeado ao largo .
Lembro-me do álbum de fotografias do meu pai,
Expedicionário.
Lembro-me das linhas com que se cozia e descozia
O Império.
Enfim, havia o Império, do Minho a Timor
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.

O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
Expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
Contra tudo e contra todos:
O amigos, os aliados,
As potências do eixo, os bolcheviques,
A Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos,
À tarde,
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das Beiras,
Dos Alentejos.
Fugindo da fome, da praça da jorna
E dos cavalos da GNR.

Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.
E um dia parti a cabeça,
À saída do futebol
E do alvoroço do povo.
Sei que me puseram um pano branco
À volta,
Como se punham aos jogadores
De cabeça partida, perdida.
Foi a minha coroa de glória,
A única que terei tido em toda a vida.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…E
também nunca gostei do alvoroço do povo,
Dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Nem do domingo à tarde.

Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes,
Na maré vazia,
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas da memória.
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós…

Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi, não.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.
Ou pela irremediável tendência
Que tem os poetas
Para a dissimulação
Dos sentimentos na parte mais ocidental
Do cérebro.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinées.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.


Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde,
Num quadro com gente atarracada
A comer pevides e tremoços
No Jardim das Delícias.
Ao fundo, o Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Pelas dores do parto da Maria,
Chamar a partêra.
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco
Na casa do Tio Silvano.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A palha de trigo a arder.
O odor a carne chamuscada.
A agonia do porco.
O sangue.
O sarrabulho.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os primeiros beijos roubados na palha do trigo.
O peixe a secar ao sol no telheiro.
O pilau
Que o menino exibia para criada.
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos,
Os filhos dos pescadores de Peniche,
À Terra da Loba,
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No soltício do inverno.
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro.
As galinhas.
A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.


O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.

Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo,
Que veio à terra para te salvar,
Mas o teu sangue,
De tipo universal, positivo.
Tomávamos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.
E eram os primos mais velhos,
Como o Zé Fernando, o Frasco do Veneno,
Ou a prima Santa Teresinha
Que nos sugeriam a existência
Dos demónios do sexo.
- Nunca vás para padre que te cortam a pilinha!

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa
E do choro abafado do Ricardo,
E dos cabelos desgrenhados da tia Ema.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai,
Infinitamente misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou, meu rapaz!)
Tinha uma explicação para tudo,
Para o bem e para o mal,
Para a vida e para a morte,
Para a riqueza e a pobreza,
Para o feio e para o belo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite,
Na minha rua,
Na rua do cemitério,
Junto à Igreja do Castelo.
Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
Aos serões,
As meninas-catequistas da rua do clube,
Que eram costureiras,
Como todas as meninas do coro da igreja matriz.
E meteram-me na camioneta dos Capristanos
Com destino ao seminário menor de Santarém.
Eu e o meu baú,
Desamparado,
Terrivelmente sozinho
Ante os dilemas da fé,
Da vocação,
Do destino,
Da vida,
Da carne,
Do pecado,
Da morte,
Da ressurreição eterna,
Dos jesuíticos corredores
E das medievas muralhas da cidade.
Lá atrás, a oeste, ficava o mar,
O rugido do mar,
O cheiro a algas, a maresia,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
Os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
Os ciganos acampados no Rossio,
As águas límpidas Rio Grande,
O Montejunto ao longe,
A Atalaia e o Montoito,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E a amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
E a malta da tua escola.
E a prima Santa Teresinha
Que brincava com as hóstias e as pilinhas,
Nas missinhas
Que fazia no sótão do Tio Fofa.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.


Texto e fotos: © Luís Graça (2004-2007)