quarta-feira, setembro 28, 2005

Blogantologia(s) II - (5): War is over, baby

Publicado originalmente, no Blogue-Fora. Nada, em 11 Janeiro 2004 >
Blogantologia(s) - VI: O adeus às armas


Revisto e actualizado nesta data.

War is over, baby

A guerra acabou e depois
os avós contarão aos netos
tintim por tintim
como foi a última batalha de Bagdade
que não chegou a haver
mas que rimava com liberdade.

Ou não contarão e arrumarão as botas.
Que os netos têm jogos mais divertidos
no último modelo da sua playstation
e já não mais têm pachorra
para aturar os cotas.

De qualquer modo foi,
disse o repórter português,
a primeira das batalhas da história
transmitidas em directo.
Uma batalha anunciada
logo com princípio meio e fim,
como no jogo do xadrez.
Uma história das arábias
onde sobraram as espadas de deus
e dos homens faltaram as palavras sábias.

Lembras-te, baby,
tínhamos comprado pipocas
como no cinema do nosso bairro
de classe média arruinada.
Sentámo-nos no chão
entre camelos e beduínos
à espera da queda do Saddam.

Lembro-me como se fosse hoje,
estavas meio pedrada
e nós éramos coleccionadores de quedas,
a última fora a do muro de Berlim
em mil nove oitenta e nove.
Regámos com vodka e coca-cola
o começo do reich dos mil anos.

Depois os soldados regressarão a casa.
E casarão. E terão filhos que vão à escola.
Ou talvez não.
Os soldados proletários
mercenários voluntários patriotas.
Os bisnetos dos escravos
das plantações de algodão do sul.
Os filhos dos imigras
de várias raças credos e nações
do grande melting pot americano.
Na fotografia tinham um ar de idiotas
usavam grandes jeans
e chapéus à texano.

Eles guardarão a espingarda
e o capacete. No sótão.
E o canhão sem recuo no jardim em Miami.
E o clarim em Nova Orleães.
E o cartão do Tio Sam:
I wanto you for U.S. Army!

Alguns morrerão.
Talvez de solidão. Ou de tédio.
Ou de falta de fé em Deus.
Ou na Humanidade.
Ou em Deus e na Humanidade ao mesmo tempo.
Ou de stresse pós-traumático de guerra
como dizem hoje os psis.

Cacimbados, dirias tu,
meu tuga, meu guinéu
que no tempo da guerra colonial
estava por inventar a palavra stresse.

Morrerrão simplesmente de solidão
como as carcassas dos tanques
nos jardins suspensos da Babilónia.
Não importa ou que importa
se um dia todos temos de morrer
de uma merda qualquer
de peste sida ébola
gripe das aves
insolação raiva insónia
desidratação
bê-esse-é pneumonia atípica
cancro gás mostarda
trombose ou aperto da aorta.

O repórter de serviço diz
na Têvê do Berlusconi
que esta foi a última campanha de caça
ao leão da Mesopotâmia.
Ou da Abissínia tanto faz
que o Berlusconi caga na geografia
agora com as auto-estradas da globalização.
Estranho: eu imaginava-o extinto
na época dos últimos glaciares. ao leão.

Ah! se eu não fosse um sem-abrigo
se eu não fosse um desertor da guerra colonial
se eu fosse poeta proactivo
um repórter reformado da guerra fria
com pensão cama e roupa lavada
um gajo decente com sensibilidade social
e uns restos de tesão
nos tomates
eu escreveria um grafito
no meu epitáfio no meu bunker:
- Maomé meu profeta meu irmão
Estive em Badgade. Não vi nada.
Não rezei na tua mesquita azul.
Não rezei por ti nem por mim nem por nós.
Apenas tive pena do teu povo do islão
curdos xiitas sunitas árabes
e todos os outros filhos bastardos de Abraão.

Mais te direi por e-mail
que morri com um estilhaço de granada.
A meu lado um capitão dos marines
afogou-se num poço de petróleo
coberto com a bandeira dos States.
Era um caixa de óculos como o O’Neil
poeta portuga obscuro
que nem para contínuo serviu
do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Mas hão-de morrer mais.
Conta até mil e lê o jornal.
É a astróloga do ano que tudo viu
na sua bola de cristal.
Italianos dos carabineiros
espanhóis da secreta
espiões do efbiai
judeus errantes da diáspora
portugas de goa damão e diu
mexicanos do pancho villa.

Tudo por causa de um homem-bomba
que foi visto visto a sobrevoar
a Estátua da Liberdade Agrilhoada.

Mas agora és tu, private Jessica Lynch,
baby-doll em camuflado
a nova namoradinha
dos tele-espectadores globais.
Ou por breves instantes foste
a heroína. a heroinazinha.
Que a fama e a glória são
deusas avaras e cruéis.

Quiçá na próxima guerra te verei
ao serviço da bandeira da CNN
ou doutro xogum qualquer dos mass media
embeded com os bravos da mítica 7ª cavalaria.

No país do show business
das fábricas de sonhos e de fadas
e em que o sucesso é a medida de todas as coisas
está tudo a condizer.
Tu estás a condizer, minha jóia,
o Carlos Fino está a condizer.
Mais o pobre ministro da propaganda
de seu nome Mohamed Saeed al-Sahaf
que resistiu com um microfone na mão.
A GNR dos portugas em Nassíria está a condizer.
No tempo em que éramos todos telegénicos
Até o Bush, my friend George , caraças!,
por deus e pelo diabo ladeado
segurava um perú de plástico
no dia de Acção de Graças.

Tu, my darling, minha querida
ouvi dizer que és filha
de um condutor de camião.
Uma heroína do povo sem pedigree
escriturária amanuense
anjo da guarda
carinha larocas de teen-ager
de uma qualquer terra saloia estado-unidense.
Ferida em combate por engano
sorry que numa lady americana
não se bate,
diz o puro sangue árabe.

Baleada mas logo resgatada
que um camarada morto ou ferido
nunca se deixa atrás
das linhas do fogo inimigo.
Muito menos já se vê
num hospital de retaguarda do eixo do mal,
diz o Pentágono.

Li nos jornais que acumulo no WC
que já te ofereceram um milhão
(de dólares, entenda-se).
Queriam fazer um filme
com a história da tua vida
de heroína por equívoco.
Tu que só tens 19 anos. Não mais.
E já tanto (ou tão pouco) para contar.

Perdi-te o rasto, meu amor,
nas voltas que o mundo dá.
A guerra acabou.
O problema agora é de polícia
e do homem-bomba
ou da mulher do tchador
Adeus, querida,
adeus às armas,
adeus, Iraque,
adeus, Guiné..

E depois ?
Bem depois é amanhã
não há azar.
E amanhã há mais,
cantemos o hino.
A vida pode parar,
a vida pode esperar,
a vida pode até perder-se.
O espectáculo é que não, my God!
O espectáculo esse continua,
tem de continuar.

Só vou ter saudades é do Carlos Fino.

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