terça-feira, dezembro 20, 2005

Blogantologia(s) II - (23): As intermitências do amor

Na bicha das cinco da tarde
No pára arranca
Do trabalho para casa
Pára não pára
Arranca não arranca
A vida
A vida tão cara
Tão complicada às vezes
À tarde
Uma mulher só na cidade
Formiguinha
No grande formigueiro humano
Ouves o sax do velho Luís Morais (1)
Evocando as cores e os sons
Das impossíveis ilhas tropicais
Às cinco da tarde
Na RDP África
Lura essa voz magnífica (2)
E amor ca tem
O amor que não chega
Por e-mail
Rato toupeira
Nas autoestratadas
Das linhas de montagem
Onde pára arranca a vida
Ah! que pena
Já não se escrevem mais cartas de amor
Diz o locutor de serviço
Com selo e lacre
E envelope fechado
E carimbo do correio
Para certificar a data-hora
Dos nossos desencontros
Aqui e agora
Ou de alguém que se foi embora.
Tiram-te a pele o tutano
De permeio
E não há coração que aguente
O pára arranca da bicha
Do trabalho para casa
Um homem e uma mulher sós na cidade
Na mesa a toalha barata
Aos quadrados
A sopa fria
E os amores de verão
E no outono a depressão
E se há inferno é no inverno
A solidão
A caixa do correio cheia
Por causa dessa coisa do spam
Desesperando por esperar
Um toque um e-mail um sinal
A cama os lençóis desfeitos
À tarde demasiado tarde para amar
No Monte Abraão (3)
Um homem e uma mulher
No pára arranca da vida
Na segunda circular da cidade sitiada
A paixão de quarentena
O corpo exangue
A doença endémica do amor
Proibido amar
Diz o semáforo
Multicolor
E não é amor é dor
Diz a morna
Que o B.Leza faria cem anos (4)
Se ele ainda hoje fosse vivo
Lá no Mindelo piquinino
Às cinco da tarde a casa vazia
Os filhos que partiram
Mas deixaram cá as fotos
De quando eram bebés
E ternurentos
E eram filhos de sua mãe
Ah! as intermitências da liberdade vigiada
O guarda-mor da saúde
Mantendo tenso o cordão sanitário
Que estrangula a vida
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer enterrai-o
A pele esticada o tutano chupado
A merda de vida
Que o aumento da esperança de vida te traz
Sobre os carris dos quilómetros
Do teu têgêvê do futuro
As contas por pagar
A carreira amorosa congelada
Os cheques que vencem
Antes de a paixão esfriar e morrer
Ao virar da última rua do quarteirão
E o Ribeiro Sanches (5)
Físico-mor do reino no exílio
A dizer-te que não há cura
Para os males de amor
E se a paixão é doença
Não sei o que fazes aqui
Parada na estúpida estrada
Que te leva do trabalho para casa
A casa vazia
A sopa fria no prato
O trabalho sem pica
A vida sem sal
Cada meco a falar sozinho
No Comboio do Cacém
No autocarro da Carris
Na CRIL na CREL (6)
No carro comprado a prestações
Os amigos de Alex cada um para seu canto
E o baile dos anos sessenta
Que ficou para as calendas gregas
As flores no cabelo
O Make Love Not War
A agenda sobrecarregada
E a tua velha senhora no fim da estação da vida
Em casa à tua espera
O comboio que regressa à tua África perdida
Os erros meus as doces ilusões
Terríveis as decepções
Os amanhãs que não cantam
O mundo que a gente queria mudar de repente
Assim com um toque de varinha mágica
A crise de valores
A profusão de cores
E a muamba que já não é mesma muamba
De manhã ao acordar
Para mais um dia
Para afivelar a máscara
E desempenhar os papéis
Que esperam de nós os outros
Les autres c’est l’enfer (7)
Não te adianta chorar sobre o leite derramado
Ou dizer que fizeste tudo errado
O homem o curso os filhos o país de retorno
O século ao dobrar do milénio
Por que é esta é a tua estória
E o teu tempo e o teu espaço
E até pode ter um final feliz
A tua telenovela das cinco
No pára arranca da vida
Só depende do autor ou da autora
Do guião
E do tempo de reflexão
Que antecede a acção
Deixa o carro na garagem
Compra um passe social
Vai a pé ou de metro
Atira a matar
Direito ao coração
Que diz que não aguenta
Mais uma paixão aos cinquenta
E tal
Querida amiga afinal
Fomos feitos para amar
E não há volta a dar-lhe
Se há uma antídoto para a morte
É o amor escreve o Saramago
E eu acho que ele tem razão
Mas o meu livro de culinária existencial
Diz para lhe acrescentares
Uma pitada de humor quê bê
Ao amor
Se conseguires rir-te do amor
Estás salva.
Carpe diem (8)
Compra um bom vinho tinto
E põe um cêdê
Ouve a tua Mariza Monte
Ou grita à janela
Do Monte
Abraão
Porque gritar faz bem
Gritar à janela a plenos pulmões
Liberta a tua energia negativa
Esses miasmas esses iões
Senta-te depois no sofá
Desliga a televisão
E põe a máscara da tua serenidade
Dá tempo de antena a ti própria
Que a vida não se delega
Ou então pinta um grafito
Nas muralhas da cidade
Vi há dias um
- Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só pode ser de um adolescente
Apaixonado doente
No teu caso, eu sugeria uma pequena emenda
- Amor ? Amor ?... Sou eu!
E ninguém morre louco de amores intermitentes
No píncaro do verão
No pára arranca
Do trabalho para casa
E da casa para o trabalho
Dizem que a vida é bela
E que somos nós que damos cabo dela

Luís Graça
__________

(1) Músico, saxofonista-clarinetista do Mindelo, Cabo Verde, desaparecido em 2002
(2) Cantora portuguesda, de ascendência cabo-verdiana. Canta em crioulo.
(3) Zona habitacional de Queluz, concelho de Sintra, arredores de Lisboa
(4) O maior compositor de mornas, nascido no Mindelo, Cabo Verde
(5) O maior médico português do Séc. XVIII, um 'homem das Luzes'
(6) CREL= Cintura Rodoviária Externa de Lisboa; CRIL= Cintura Rodoviária Interna de Lisboa.
(7) "O inferno são os outros" (conhecida frase do francês Jean-Paul Sartre, na sua peça de teatro Huis-clos)
(8) Expressão latina: goza dos dias


Querida M(a):

Não sabíamos o que te dizer
Com princípio meio e fim
A pretexto dos teus anos
Ou do último mês do ano de 2005.
Mas se fosse um recado
A deixar no gravador do telefone
Seria uma coisa assim.

Para alguma coisa, afinal, hão-de servir os amigos
Que não gostam de ver os seus amigos tristes.
Um grande beijoca destes teus amigos de Alex.
A happy, healthy new year!
Vamos fazer figas para que assim seja.
E sobretudo fazer para que assim seja.
Vais ver que a dor vai passar.
E que a primavera há-de chegar.

Luís & Alice,
Alfragide, 15 de Dezembro de 2005

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné

Originalmete publicado em Luís Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-Fora-nada, postdt de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite!
Excertos do Diário de um Tuga
. L.G.

Bambadinca,13.2.1971

Esquecer a Guiné

Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe (1).

As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.

Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Da Noite das Facas Longas
.

Esquecer a Guiné... por uma noite!
A matilha de bulldogs (ou cães grandes) (2)
Gozando as delícias do sistema
No ar condicionado de Bissau.
O pobre do Pastilhas (3)
Que, à hora do lusco-fusco,
Se torna um animal acossado pelo medo,
Rondando os abrigos subterrâneos.

Os olhos de gazela morta
Dos putos
Que andam à cata de comida
Nos bidões do lixo da tropa.

A bela futa-fula (4)
Fugida do harém
Do cornudo comandante de milícias.
Os milhões de unidades de penicilina
Que um gajo paga
Em troca do corpo quente de uma bajuda (5)
Que fode com um batalhão inteiro.

Os páras (6)
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impates,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres.

A histeria do Major Eléctrico (7):
"Ah, se isto fosse uma fábrica,
Seus sacanas!...
Eu despedia-vos a todos,
Cambada de malandros!"...
(Referia-se ao meu grupo de nharros
Que abriam trincheiras
No perímetro do aquartelamento de Bambadinca.
De tronco nu.
Com cinquenta graus ao sol
E 100% de humidade!...
Para o filho da puta
Poder dormir descansado,
À noite, na cama,
Num colchão de espuma,
Sem o pesadelo de um turra
A entrar-lhe pelo quarto adentro,
Armado de Kalashnikov!).

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas(8).
Que um gajo tem que chegar
Com uns trocos a casa
Para poder casar.

O terror das crianças balantas (9),
Nascidas no mato (10),
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das Gê-Eme-Cês
Do tempo da guerra da Coreia (11).

O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher (12).
É a Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.

E o médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados (13)
E aspirina
Para os pretos.

Mais as lâminas de aço dos rockets (14),
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.

O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm nos cardápios
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa, à Estrela,
É coisa boa,
Apanhas o Eléctrico 28,
Dos Prazeres à Graça,
Dos prazeres de graça,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial, ou oficiosa,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Chico-esperto, portuga,
Vítima da hepatite!

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos,
Já feitos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.

Mas aos catorze anos
Tu já sabias desta guerra;
Aos dezasseis, que não havia escapatória;
E, aos dezoito,
Que já estavas apanhado na rede
Como um cão...
Tudo somado vais fazer
Trinta e três meses (!)
De vida militar
(Vinte e dois na Guiné!),
Se é que chegas são e salvo
Ao próximo mês de Março
De mil novecentos
E setenta e um.
E que até lá chega finalmente,
O teu salvador,
O teu periquito (15),
O desgraçado que te vem render
E arriar a bandeira das quinas.

Esquece a Guiné, meu tuga.
A guerra.
A aprendizagem da morte.
A inocência
Que se perde para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem,
Ao nosso lado.
E a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
Os restos dos cadáveres humanos.
Num dólmen camuflado.

Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão frondoso
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Oito de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Por defeito de fabrico,
Disse o relator do relatório.

Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioteiros,
Estúpiuda verborreia,
E a bandeira verde-rubra
Dos tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.

Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva.

Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses (16) batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte...

O capim.
O capim alto.
A seara da savana arbustiva.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue
Na mata.
Os panfletos de acção psicológica
Que não chegaram ao seu destinatário.
Espalhados pelo pânico de uma emboscada.
Um velho recorte de jornal,
Encontrado num acampamento do IN,
Com a fotografia de Che Guevara
Na Guiné em 1965.
A propaganda revolucionária.
Multiplicar as Guinés e os Vietnames.

Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador (17),
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão (18)
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro.

Esquecer a Guiné... por umas horas!
O jogo da roleta russa de ir e voltar,
De Bambandica ao Xime.
Numa lata de uma autometralhadora Daimler.
Só tu e o condutor.
Desenfiados.
Mais o Tchombé,
A mascote da companhia, o puto.
Sem escolta nem picagem.
Sem conhecimento de ninguém.
Só para ires beber uma cerveja.
Só para matares o tédio.
Só para desafiares o medo.
Ou para exorcizares os teus fantasmas.
Por pura estupidez.
Ou por simples bravata.

Esquecer a Guiné...
O Básico (19)
Que tem alucinações
E vê elefantes à noite
Junto ao arame farpado.
A história que te contaram,
Do tipo de Guileje (20)
Que deu em doido,
A pescar peixes dentro de uma tina.
O proxeneta do Vermelhinha (21)
Que comprou uma bajuda
E pô-la a render.
As alfaces que crescem, viçosas,
No antigo cemitério (22) de Bambadinca.

O furriel felupe (23), caçador de cabeças.
O Uloma, com as trinta e tal cabeças, dizia-se,
Conservadas em frascos de álcool.
O negócio que o nosso barbeiro e fotógrafo fez
Com a horrível foto de uma cabeça,
Cortada à catana.
A cabeça de um pobre camponês
Que lavrava a sua lala.
No sítio errado, à hora errada.

A derradeira salada de atum, cebola e tomate
E o derradeiro copo de vinho verde
Que se partilha com um camarada e um amigo.
Um homem que vai morrer.
À hora marcada.
Dentro de três ou quatro horas.
Em vinte e seis de Novembro
De mil novecentos e setenta.

Qualquer um de nós,
Que está aqui à volta da mesa,
Pode vir a morrer
Na próxima hora.
Na próxima operação.
Por que há sempre uma hora
Para morrer.
De um tiro no coração,
De um roquetada,
De um fino estilhaço
De uma mina antipessoal,
Da explosão de uma granada de morteiro...

O jovem capitão de artilharia,
Vinte e quatro anos,
Acabado de sair da Academia Militar,
Que se recusa a sair com os seus homens
Para a Ponta do Inglês (24),
[Depois do desastre
De 26 de Novembro de 1970] (25).
O filho da puta do segundo comandante
Que lhe manda dizer, alto e som:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
Nem que seja a reboque de uma GMC!"...

Meu Deus,
Que pedaço de inferno foi este
Que me coube em vida, na terra ?

__________

Notas (L.G. / Lisboa. 25 de Abril de 2005):

(1) Sinchã Jobel, Zona de intervenção do Comandante-Chefe, a norte do Rio Geba, sob controlo da guerrilha (ou IN, abreviatura de inimigo)
(2) Designação depreciativa do pessoal militar afecto ao Comandante-Chefe, em Bissau.
(3) Referência à figura do enfermeiro militar.
(4) Uma das etnias da Guiné, aparentada com os fulas. Em geral, as mulheres futa-fulas eram de uma grande beleza.
(5) Rapariga, mulher solteira (por oposição a mulher grande, casada).
(6) Diminuitivo de tropas paraquedistas
(7) Alcunha de um célebre major, segundo comandante do Batalhão sedeado em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70) (se a memória me não falha).
(8) Garrafa de cerveja de litro. A sua forma cónica na parte superior sugeria uma granada de RPG (bazuca).
(9) Uma das principais etnias da Guiné de onde eram recrutados muitos dos combatentes do PAIGC.
(10) Em linguagem de caserna, mato significava território fora do controlo das NT (nossas tropas). Também possou a quer dizer "muito", "bué"...
(11) Viaturas de transporte militar, de fabrico norte-americano (General Motors Company), de grande potência e de elevado consumo de combustível.
(12) Enfermeira paraquedista.
(13) Vítimas do stresse de guerra. Também conhecidos por "cacimbados" "apanhados do clima". O termo stresse ainda não fazia parte, na época, do nosso vocabulário (e muito menos a expressão stresse pós-traumático de guerra).
(14) Granadas-foguetes. Os RPG (rocket-propelled grenades), de fabrico russo ou chinês, eram uma das armas mais timídas pelas NT, em situações de combate como as emboscadas.
(15) Alusão à farda, novinha em folha, dos novatos que nos vinham render (A generalidade dos quadros da CCAÇ 12 eram de origem metropolitana e de rendição individual).
(16) Fogo de artilharia lançado a partir dos aquartelamentos das NT (ou unidades de quadrícula). Em geral os obuses eram de calibre 105 mm (de 140 mm, os de maior alcance).
(17) O picador tinha a difícil tarefa de detectar minas (antipessoais ou anticarro) nos trilhos e nos caminhos utilizados pelas NT. Não havia detectores de minas com sensores electrónicos. Apenas um pau com um prego de ferro aguçado na extremidade. Os picadores, tal como os guias, pertenciam, em geral, às milícias africanas. A sua taxa de mortalidade era altíssima.
(18) Muito (manga) dinheiro (patacão).
(19) Soldado afecto apenas às actividades de apoio logístico (por ex., cozinha, faxina), por oposição ao operacional (soldado-atirador).
(20) Tristemente famoso aquartelamento no sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, que acabaria por ser evacuado e abandonado pelas NT, tal como Gadamael, em meados de 1973. Já no meu tempo estes dois nomes eram míticos, a par de Madina do Boé, entretanto abandonada.
(21) Soldado que era especialista em jogar à vermelhinha (jogo de azar, com três cartas).
(22) Alusão a uma vala comum do cemitério do posto administrativo de Bambadinca onde terá havido muitas execuções sumárias, de balantas, beafadas e outros, no início da guerra (1963/64, segundo relatos dos mais velhos dos meus insuspeitos soldados fulas).
(23) Felupe, uma das muitas etnias da Guiné, da zona de Constava-se, no meu tempo, que os felupes ainda praticavam a necrofagia, uma forma de canibalismo ritual. Este tristemente famoso furriel (Uloma, de seu nome, se a memória me não falha) pertencia à 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(24) Local sito na confluência dos Rios Geba e Corubal, na região do Xime.
(25) Referência ao Capitão da CART 2714 (unidade de quadrícula do Xime, envolvida na trágica Op Abencerragem Candente).

sábado, dezembro 03, 2005

Blogantologia(s) II - (21): O deve-e-o-haver de 2004

Máscara do Mali.

Fonte: Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 21 de Novembro de 2004 (Um dos melhores museus de etnologia da Europa, aqui tão perto!).

Foto: © Luís Graça (2004).


Post originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > Blogantologia(s) - XXII: Saldo(s) para o ano de 2005


A todos os homens e mulheres (i) que cabem na minha lista de e-mails ou (ii) que a transbordam ou (iii) que circulam, a desoras e sem rumo, na blogosfera, (iv) quer façam ou não o favor de serem meus amigos: deixem-me desejar-vos o melhor da vida para o Novo Ano que, dizem, aí vem!!!

L.G.


Car@s amig@s planetári@s:

Eis-nos chegad@s
Ao fim do ano de dois mil e quatro,
E digo fim
Porque é já inverno
E faz frio
E porque acabei de arrancar
A última folha amarelada do calendário.
E digo fim para não praguejar
E para não ir parar com os quatro costados
Ao inferno.

Dizemos fim do ano
Por mera convenção ou conveniência.
Ou se calhar,
Por tristeza ou desfastio,
Cansaço, saturação, impaciência.
Depressão, dirá muita boa gente.
Ou só por que nos deu na real veneta;
Em suma, dizemos fim
Sem qualquer razão aparente.

Na prática não chegámos ao fim,
Não chegámos a parte nenhuma,
A pé, de carro, de barco ou de dromedário,
À boleia, a nado ou até de parapente,
Que o chegar é sempre a um algum sítio,
Lugar, porto, ilha, montanha de bruma,
País, continente, planeta,
Ou pico do Evereste.
E chegar ao fim
É sempre sinónimo de festa.

Não arribámos a nenhum porto
Ou outro ponto imaginário
Do globo terrestre;
Não fomos pioneiros,
Não descobrimos a misteriosa citânia
Da nossa proto-história lusitana
Nem sequer a porta do risonho futuro
Que há-de vir;
É tudo treta,
Não fomos os primeiros
Nem sequer os últimos
A cortar a meta;
Não fomos notícia,
Nem mesmo em Alcácer Quibir;
Não estávamos entre os anónimos mineiros
Soterrados na China e na Ucrânia;
Não houve festa, nem luto, nem bomba atómica,
Não houve alvoroço, nem foguetes,
Nem estátua equestre,
Nem sequer a banda trágico-cómica
Dos bombeiros voluntários
Do Emir Kusturica.
À nossa espera
Ou no nosso enterro.

Vendo bem,
Não fizemos nada de heróico,
Não salvámos a humanidade,
Não fizemos a guerra,
Não lutámos contra os canhões,
Não assinámos a paz,
Nem sequer levámos a carta a Garcia.
Enfim, não ganhámos nenhum prémio,
Nem sequer o Nobel, nem a lotaria,
Muito menos o Euromilhões;
Em resumo, dizem-nos que,
No ano da graça do senhor
De dois e mil e quatro,
Tu e eu, nós todos,
Nada temos de concreto
Para celebrar.

Mas chegados ao fim do ano,
É costume fazer-se o balanço,
Se não da viagem,
Pelo menos do deve-e-haver
Das nossas vidas,
Da carga preciosa que transportamos connosco,
Que é a vida e o dever de a viver.
Que é o fogo da vida
E a obrigação de o alimentarmos,
O pequeno milagre
Ou o simples facto
De estarmos vivos,
De ainda estarmos vivos
E de estarmos juntos.

Façamos, pois, o balanço,
Meus amigos,
O deve-e-haver deste ano
De dois mil e quatro,
Que se calhar foi um annus horribilis
Como os anteriores,
Para a maior parte dos homens e mulheres,
Noss@s vizinh@s planetári@s.
Que a vinte e três de dezembro,
O horóscopo da humanidade
Não está em condições de prever
Terramotos, catástrofes, pestes, tsunamis,
O cortejo dos horrores
Que costumam acompanhar os cavaleiros do Apocalipse.

Façamos o balanço das nossas vidas
Como pessoas, como grupos,
Como instituições, como países.
Siga-se, nesta matéria, a tradição,
Que a tradição ainda manda,
E com isso não vai grande mal ao mundo
(Se querem saber a minha opinião).

Como sempre, houve coisas boas
E coisas más
Ao longo do ano que agora finda.
Releguemos as más para os historiadores.
Ou para o nosso confessor, psiquiatra ou confidente.
Ou para o diário secreto de Narciso.
Em boa verdade, as coisas más vão ao fundo,
Não flutuam como os corpos,
São, por definição, para esquecer.
- Dorme, que foi um sonho mau!,
Diziam-te em criança.
Criança sem juízo,
Sem dente do siso.

Abramos, pois, os nossos corações
Para falar ou dar testemunho
Das coisas boas que nos aconteceram.
Que a hora é de desafivelar as máscaras
Dos actores que também somos.
Maus, canastrões,
Mas que importa, se o palco é tudo!

Falemos dos acontecimentos
De que fomos protagonistas.
Pequenos, sem dúvida,
À nossa escala, à escala humana,
Mas importantes,
Para nós, a nossa família, os nossos amigos,
As empresas ou organizações onde trabalhamos,
As pessoas que confiaram em nós,
Que apostaram e acreditaram em nós.

Falemos das situações de que fomos
Actores de verdade, actores de facto.
Independentemente do nosso papel,
E do tamanho do nosso papel.
Ou do número de graus de liberdade
A que temos direito
Ou que fazem parte do nosso contrato.
Que o importante foi ser actor
E não mero figurante.

Falemos dos projectos
De que fomos gestores
Ou simples trabalhadores
De equipa.
Falemos dos conhecimentos novos
Que tivemos o privilégio
De produzir, obter ou divulgar
Através do nosso trabalho, estudo ou formação.
Dos livros que lemos ou escrevemos
Ou que comprámos para ler mais tarde,
”Quando formos velhinh@s
E tivermos todo o tempo do mundo”
(Oh, doce ilusão!).

Não nos esqueçamos de evocar
As pessoas fantásticas que conhecemos.
Mas também os filmes de última hora
Que perdemos no trânsito da vida.
Ou as estórias que não ouvimos ou não lemos,
Por falta de paciência ou de audiência
Ou de simples lugar de estacionamento
No hall congestionado do planeta azul.

Falemos das oportunidades que tivemos
De fazer coisas novas,
Inovadoras, ou simplesmente úteis,
Para nós, para os outros, para o nosso país.
E que não desperdiçámos.
Ajudando o mundo a tornar-se
Mais amigável
Ou, pelo menos, mais habitável.

Falemos das pequenas coisas boas
Que nos aconteceram,
Não por mero acaso,
Mas porque as merecemos,
(Sem falsa modéstia!),
Porque lutámos por elas,
Porque outros nos ajudaram a conseguí-las
Porque juntos conseguimo-las.

Falemos ainda do nosso crescimento interior:
Se estamos mais sábios, mais atentos,
Mais conscientes da água que corre nos nossos rios
Ou do HIV/SIDA que nos está matando,
É porque crescemos por dentro.

Mas sejamos capazes também de falar
Das brincadeiras ou partidas
(Não das sacanices!)
Que fizemos uns aos outros.
Que o brincar não é proibido,
Ou não deveria sê-lo,
Que o brincar devia mesmo ser obrigatório
Na escolinha da vida
E nos locais de trabalho
Onde, já crescidos, a ganhamos.

Falemos dos e-mails que trocámos
E que encheram as nossas caixas de correio.
Das anedotas que contámos.
Até das de mau gosto,
Xenófobas, racistas e sexistas.

Falemos do pão, do queijo e do vinho
Que partilhámos com alguém,
Ao fim da tarde,
Não importa onde,
No Alentejo, em Angola, ou no Minho,
Em qualquer parte onde
Temos um amigo, um parceiro, um compincha.
Que o companheiro (do latim cum + pane) é
Justamente aquele que compartilha connosco
O pão e o vinho à mesma mesa.

Sim, falemos das emoções
Que pusemos em cima da mesa.
Ou da ausência delas.
Da paz que conseguimos, em certas ocasiões,
Estabelecer connosco e com os outros.
Sim, falemos da paz:
Nada como um minuto de paz
Ao fim do dia, no fim do ano.
Um minuto, uma hora,
Mesmo se o fim do ano é uma treta
Do calendário gregoriano.

Falemos, por isso, e já agora
D@s velh@s amig@s que voltámos a encontrar.
Em viagem,
Num terminal de aeroporto,
Numa esquina de rua congestionada,
Num bar triste de uma cidade
Em que estávamos de passagem.

Falemos d@s nov@s amig@s que fizemos.
Sem esquecer @s querid@s amig@s
Que perdemos, assim sem mais nada,
Por razões de vida ou de morte,
Ou de que perdemos simplesmente o norte,
O telefone, o fax, o endereço, o e-mail, a morada.

É a pensar em vocês tod@s
Com quem trabalhei, interagi, vivi, falei,
Discuti, barafustei,
E, se calhar, até magoei e decepcionei,
Durante o ano de dois mil e quatro,
É a pensar em tod@s vós,
Que eu peço ao Pai Natal
(Que eu ainda acredito nele,
Seja isso idiota ou infantil,
Muito pouco ou nada racional!)
Para pôr no vosso sapatinho
Esta singela mensagem:
“Que a nossa amizade seja…
O saldo contabilístico, positivo,
Que transita para o ano de dois mil e cinco”.

Estou-vos obrigado,
A todos vós,
Pela parte de mérito que vos coube
Nas pequenas coisas boas
Que me aconteceram, nos aconteceram,
Em dois mil e quatro.
Resta-me pedir-vos, sensibilizado:
"A mim, desculpem-me lá qualquer coisinha!"...

L.G.

Lisboa, 23 de Dezembro de 2004

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Blogantologia(s) II - (20) : O país que via passar os comboios

Lisboa > Museu daElectricidade > 2006

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


O país que via passar os comboios


14:13h.
Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.

Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes.
Abro talvez uma excepção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros,
Quando havia o cavador, o boi, a charrua, o burro,
O camponês, o portuga camponês e burro,
A horta, a saída directa para os campos.
As hortas.
O termo apeadeiro faz-me lembrar os tempos
Em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios.
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Caneças, Colares, Sintra...
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.

Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
Que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Aos Fontes.
Mesmo que a minha professora de sociologia histórica,
Filomena Mónica, discípula do E.P. Thompson,
Só goste dos corticeiros
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel
Da Nokia ou da Siemens, tanto faz.
Que as novas tecnologias quando nascem (não) são para todos.

Ou talvez houvesse stresse
Mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, é tão velho como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
Os ferroviários também punham bombas nas linhas de caminhos de ferro.
Para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem.
Resistência ao ocupante nazi.
Será que hoje seriam caçados como terroristas internacionais ?

Não sou ferroviário nem resistente.
Nem anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos.
Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
Vim de boleia.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.
- Lisboa, Sociedade Anónima ?
- Não, Lisboa, Santa Apolónia,
Corrige o portuga por detrás do guiché.
- Mas eu não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
- Lisboa, SA!

Sou um mau utilizador do comboio.
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
- 2ª classe ?,
Pergunta o portuga que fala em nome da CP.
Como se me tirasse as medidas.
Ou espreitasse para a minha secreta conta bancária.
2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe. Gente de 2ª classe
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
E a tua gente de 3ª classe
Nos porões nauseabundos dos cargueiros
Que rumavam às Américas!).

- 2ª classe ou turística ?
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há turística e conforto
No alfa pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
Minha querida professora.
- Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP,
Já não há 2ª classe, garanto-lhe eu.

Em contrapartida, o outro gajo, o do guiché,
Ainda não fez o upagrade do seu software sociolinguístico.
É por isso é que a CP ainda tem a imagem negativa que tem
Junto do público.
- O senhor,desculpe, mas eu sou fã dos comboios
E tinha que lhe dizer isto.
Também vou para Lisboa, desço na Gare do Oriente...

Tenho tempo.
Nada como esperar um comboio numa estação de tipo Coimbra B
Para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Como uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo.
Que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
Que está afixada na parede da estação de Coimbra B.
Alguém mandou afixar.
Creio que em bronze (sou mau em metais):
- "Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
No dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
O Papa João Paulo II".

O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B, o que diria a corte papal!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores.
E os vindouros.
Mas lá fica a tabuleta.
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu,
a caminho do sul.
Para ninguém.
Quem lê neste país placas de bronze afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país?

Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
Desaparafusa a placa e leva-a para casa,
Para o museu ou para a loja.
Não acontece nada em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II.
Em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
Na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia.
Mas esta é a minha leitura.
Peço desculpa aos mais doutos blogadores do que eu.
Peço desculpa aos lentes de Coimbra.

Chega o Alfa.
Just in time,
Como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
Na ponta mais ocidental da Europa.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência
das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor.
Provinciana e ronceira, lá diria o Eça.
Acelera o Alfa.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros.
Isto faz bem à minha auto-estima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
Que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso
Da estação deprimente de Coimbra B.
- Quanto vai dar ?
- Chega aos 200 ou mais,
Diz-me um puto de brinco na orelha...

Não apostei.
Nem gosto de apostas.
Deixei de ser solidário.
- Umas cartas para passar o tempo ?
- Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.

Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória colectiva.
O caminho de Santiago.
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
- Chega à tabela.
Dezassete e seis na Estação do Oriente,
Diz-me o pica, orgulhoso.
- Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela
Ba nossa terra.
Fico sempre com inveja
Quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
- Já não te calha na rifa.
Agora são vinte e cinco cães a um osso.
- Vai desejar tomar alguma coisa ?,
Pergunta no futuro próximo o homem do chá, café, laranjada...
- Um Prozac, por favor.
- Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
- Sim ?
- Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último.
Estação de Atocha.
Madrid.
Não leu nos jornais ?
- Não, acabo de chegar doutro planeta.
- En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías...
- Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos.
- Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
Muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
Que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
Se dirigen luego a Chamartín
Y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha
Desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
Que va a Andalucía...
- Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
- Só faço a península ibérica.
Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela...
- E não tem medo do futuro dos comboios ?
- Não... Com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida
De qualquer jeito.
- Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.

Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto. Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
Que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café para te tirar o sono.
- Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, ainda menino e moço!?
- É a voz do sangue, o meu lado de marinheiro que nunca fui.

Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas, uma feixe de linhas e cheiro a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais.
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa.
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
- Política, meu estúpido!,
A primavera política do Marcelo Cetano.

Eras jovem
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris.
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor.
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
Para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
Os grandes de Espanha que estão no Prado...
- És doido, ou quê ?!
Com a pide à perna,
Mais os fascistas da guardia civil!

Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo.
O país que mexe.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
Quando estou no hotel.
Três estrelas, o hotel. Novo.
Bom serviço.
Mas faz frio à noite.
- Voyeurismo, pensa ela.
A rapariga do bar.

Oito páginas,
Entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatinha dengosa"...
Linguagem de código.
A semiótica da solidão.
Do sexo triste e solitário.
- Ligue para o meu telemóvel,
Qu a crise bate a todas as portas,
Sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.
- A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
- Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
- Não sei se cresceu bem...
Não sou de cá.

O Politécnico, o túnel de Viriato.
Os colóquios. Os debates. As ideias.
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O comércio.
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Cavaquistão.
- Ruas, estás de granito!,
Diz o grafito.
(Ruas é o presidente da Câmara)

Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:
- Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
- Só falta a Universidade,
Que mais de 10 mil universitários já cá temos.
- Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
Os malandros da Covilhã.

Outro lóbi beirão, o da Covilhã.
Registo o orgulho dos putos
Da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
Que realizam anualmente as suas jornadas de enfermagem.
Este ano, na sua 16ª edição.
O país mexe.
Viseu mexe.
O país profundo mexe.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
Vstidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. Passou o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
- O Alfa vai a 140, ó puto.
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
Lio do tabelau de bord.
- Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
- Porquê ?

Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras.
Modernização da linha.
Tenho um pensamento para com os trabalhadores anónimos
Que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? Africanos ? Imigras ? Clandestinos ?
- Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
- Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, o inferno na terra.
Mas aí são magrebinos.
- O novo proletariado do Século XXI.
- Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
- Dá o Benfica na SporTV.

E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
O branqueamento de dinheiro
Qe vai por essa nova Lisboa Oriental.
A luxuriante estação do Oriente.
Just in time.

17:06h.
Cheguei.
Balanço do cliente:
- Pensei que já fosse o TGV.
O TGV é que é.
- Não é o TGV,
Ms por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular.
Turística, claro.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal & Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
E o puto tinha razão:
Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo
Os 210.

Um dia ainda vou ter orgulho na CP
E na terra onde nasci
E onde nunca vi passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
Nem chegam a Viseu.
Um abraço aos viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem.
De Expresso, pelo IP3 acima.
Com regresso de comboio.
Se não matarem o comboio que pára em Coimbra B.
E não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha
Qando voltar a Coimbra B.
De Lisboa SA com amor.


(Revisto nesta data)
____________
(1) Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em post de 25 Março 2004 > Portugal sacro-profano - XVI: De Coimbra B a Lisboa SA

Blogantologia(s) II - (19): Quanto é bom voltar a ver-te voar

Originalmenete publicado no Blogue-Fora-Nada, em post de 16 de Junho de 2005 > Blogantologia(s) - XIII: Para ti

Para ti, A., em jeito de poemacção, de poemafeição, de poemamor, de poemagradecimento, de poemapoio ou tão só de poemassombração. Como quiseres, que em poesia não há relações lineares de causa-efeito.


Quanto é bom voltar a ver-te voar


gaivota deusa alada
cortas fundo o branco
da manhã
e até ao cabo mais ocidental
do meu corpo
quero-te e espero-te
a viajar
no último comboio da madrugada

até ao fim até ao sul
paro escuto e olho
os semáforos do nevoeiro no país verde-rubro
mas já a maré enche de azul
as praças da cidade
e tu amor sem arribar

porto seguro e encantatório
ilha secreta gruta radar
com uma palmeira à janela
e uma bandeira em cada promontório
dizem que és filha da liberdade
do rio e da foz do vulcão e da lava
e em dias de neblina também és oásis
aldeia palafita e ponto final
entre as arribas e a praia-mar

não olhei para o calendário
nas paredes da falésia
nem fixei o dia o mês o ano ou a era
mas hoje o teu voo é preclaro sinal
de primavera

ponho um cêdê do fado novo
paro escuto perscruto
o telefone os búzios a guitarra
mas tu amante sibila cartomante
sem aportar

frias são as estrias do poema
e hirto o sax-grito
do último navio na noite
mas a letra do fado me diz
que tu gaivota deusa alada
estás p’ra chegar.

quanto é bom voltar a ver-te
voar.

lisboa (1985-2005)

Blogantologia(s) II - (18): Em Dezembro

Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em post de 28 de Janeiro de 2005 > Blogarias V - Em Dezembro



em dezembro
não fazia frio
em dezembro
não fazia ainda neve
em dezembro era natal
e comiam-se rabanadas

em janeiro
cantavam-se as janeiras
e bebia-se o vinho novo

em dezembro
ainda não havia neve
pra cozer as pencas pró natal

não havia neve
à porta dos camponeses pobres do norte
nem as peugadas dos pés descalços
das criancinhas do augusto gil

batem leve levemente
como quem chama por mim...
ah onde está o tipicismo da miséria rural
que os escritores burgueses descobriram antes de nós
o camilo o eça o ramalho o aquilino

em dezembro
o pai natal já não descia pelo fumeiro
por entre os salpicões e os presuntos
vinha de peugeot pelas estradas de frança
e trazia tiparrillos pra malta fumar
à lareira

em dezembro
a maria do norte cortava erva pró gado
e cantava a plenos pulmões
uma canção do sul



candoz. natal de 1976

domingo, novembro 27, 2005

Blogantologia(s) II - (17): Com Brueghel, domingo à tarde

Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.

Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.

Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas,
A sacola às costas,
O bife ao domingo,
O bacalhau com grão às sextas-feiras,
A Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão,
A Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
O supremo heroísmo
De alguém que morre para te salvar,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda,
E tinha mamas grandes
E que viria a morrer, coitada,
De cancro da mama…

Havia as festas, as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
A bolsa lacrimal,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
O carrocel,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Fortes e valentes,
Como os seus pais e os seus avós
tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum.


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas e os abrunhos,
O pão cozido no forno a lenha.
Comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores.
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dava tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede.
Menino com vocação circense,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino.








O Tio Silvano

© Luís Graça (2005)


Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Os carros de pão,
As promessas,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’Adelina
Contra o mau olhado,
O samparo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A bruxa de São Bartolomeu,
Ou Samert’meu
O santo que pisava a seus pés
Um diabo negro como o carvão....
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.


E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado pouco ou nada heróico de patriotas,
Vagamente republicanos,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar.

Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona .
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
nem o correio azul
nem a Internet
e o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes.
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conhecia um carteiro,
o ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E, fora disso, meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?


E ao alto, a cima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morreu para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.



Lourinhã: finais dos anos 40.
Jogava-se à bola no largo do convento...
© Luís Graça (2005)











Havia a bola, o hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
No largo do coreto da minha aldeia.
E a senhora professora Dona Helena
Que te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.

Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra
Que te vem de fora,
Arremessada por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
Que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe


Jogava-se à bola
Domingo à tarde.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe.
E o louco.
E o beato.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O provedor da Misericórdia.
Os ricos, os remediados e os pobres.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.





















Quando eu era pequenino... mais a mana

© Luís Graça (2005)



Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
A escola do Conde de Ferreira,
O carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa,
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Havia a vida privada,
Exposta na via pública.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
E a barraca onde só iam os homens feitos.
E as virtuosas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
no lendário Bairro Alto
da formosa Lisboa
onde se ia de camioneta uma vez na vida.



Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca.
E que morreu virgem
e chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.





















1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os aliados, as potências do eixo...



Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro
Ou a Marinha Grande
E os operários em contrução.
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
E o Álvaro Cunhal,
foragido,
grande herói da classe operária,
e imnimigo mortal
da Nação.
Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do João:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.
De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
e de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante.
Lembro-me…
Enfim, havia o Império,
Do Minho a Timor,
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.


O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os amigos, os aliados, as potências do eixo,
a Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das beiras,
Dos alentejos.
Fugindo da fome
E dos cavalos da GNR.



Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…
E também nunca gostei do alvoroço do povo,
dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes
Na maré vazia
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas.
Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinés.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.

Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde.
O Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Chamar a partêra
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A agonia do porco.
O sangue.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As partidas que os grandes pregavam à pequenada,
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os beijos roubados na palha do trigo,
O peixe a secar ao sol no telheiro,
O pilau que o menino exibia para criada,
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos, no Inverno,
Os filhos dos pescadores de Peniche.
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro. As galinhas. A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.

O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.


Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo, mas o teu sangue.
Tomavámos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai, misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou )
Tinha uma explicação para tudo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite
Junto à Igreja do Castelo.





















Eu e os meus queridos nharros (1969)

© Luís Graça (2005)



Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
As meninas da rua do clube,
Aos serões
E meteram-me na camioneta do Claras
(Ou era dos Capristanos ?)
Com destino a Santarém.
Eu e o meu baú,
terrivelmente sozinho
ante os dilemas da fé,
da vida,
da carne
do pecado,
da morte,
da ressurreição eterna
Lá atrás ficava o mar,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem sete, oito, nove, dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.

Revisto em Julho de 2007. L. G.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Blogantologia(s) II - (16): Cá vamos andando

Publicado originalmente Blogue-Fora-Nada, em post de de 16 de Novemnbro de 2004 > Portugal sacro-profano - XXI: 'Ala malek' ou o tráfico do Cairo

Revisto nesta data

Cá vamos andando


Às vezes este país parece-se com o Cairo,
Com o caótico tráfico rodoviário do Cairo.
Sem código da estrada.
Sem regras.
Sem semáforos.
Sem polícia sinaleiro.
Uma perigosa montanha russa,
Um carrossel desengonçado.
Mas mesmo assim a coisa anda, flui,
E a gente sempre consegue chegar a alguma parte.
Pode não ser o sítio certo,
Mas sempre chega a alguma parte.
Ou pelo menos tem essa ilusão de óptica.
Que o importante é chegar, sobreviver, dizem-te.
- Cá vamos andando -, responde-te o Zé Portuga,
Quando lhe perguntas como está.
No Portugal sacro-profano,
A gente lá vai andando.
Ora bem, ora mal.
Conforme o tempo e os humores.
Conforme o caminho e as pedras.
Ou até os companheiros de viagem.

Às vezes a gente tropeça e cai,
Para logo se levantar
E prosseguir a marcha,
Ora lenta ora brusca.
Agora o pobre do país tenta,
A todo o custo,
Não perder a última carruagem
Do comboio chamado Europa.
Há quanto tempo?
Às vezes tenho a impressão
De que essa correria
Atrás do comboio da Europa
É um filme que dura há já muito,
Há anos, há séculos, quiçá desde sempre...
Um daqueles filmes, mudos,
Que a gente via no nosso cinema de bairro.
Quando havia cinema de bairro
E filmes mudos
E a Fénix da Europa renascia das cinzas
E eu vivia num país orgulhosamente só.
- Pobrezinhos mas orgulhosamente sós,
Meu menino! - dizia o padre e
A senhora professora.

Mas tal comparação é injusta e ofensiva
Para com os portugas,
Para com o Zé Portuga,
Que é, afinal,
O nosso único (ou último) herói nacional.
Na realidade, é a política deste país
Que se parece com o caótico trânsito cairota...
É a política, são os políticos,
Os seus dirigentes, a sua elite...
É a gestão da coisa pública,
Ou a falta dela,
O laxismo, o cansaço,
A falta de imaginação,
A perda de valores,
A ausência de liderança,
A opacidade das regras
Ou melhor, o seu vazio,
A ligeireza,
A falta de lata, de vergonha, de carácter...

Às vezes apetece-me gritar,
Ao homem do leme,
Ao motorista do táxi,
Ao condutor do carro de bois,
Ao simples peão,
A mim próprio:
- Ala malek!, mais depressa, homem,
Que se faz tarde,
E que ainda perdes
A última carruagem do último comboio!(1)

_________

(1) Ala malek, em árabe, quer dizer mais depressa.

É sempre bom, em qualquer esquina do mundo, ter meia dúzia de palavras do patois local na ponta da língua... Como, por exemplo, desenrascanço, em Lisboa. Ou esquema, em Luanda.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Blogantologia(s) II - (15): O amor em Agosto

Publicado originalmene no Blogue-fora-nada, post de 18 de Agosto de 2005 > Blogantologia(s) - XXIX: Viagens nas minhas praias imaginárias . Revisto nesta data.

O amor em Agosto

Praia de Paimogo.
Estas pedras estão aqui
Há milhões de anos.
E eu não sei dizer-te
Por que é que estas pedras
Estão aqui
Há milhões de anos.















Uma enseada, uma cratera, um lago.
A Praia de Paimogo foi talhada
A ferro e fogo.

Mas se eu fosse deus,
Todo poderoso senhor
Ou até vulcão,
Tê-la-ia desenhado,
Com muita ternura,
Sob a forma de coração.
Só para ti, meu amor.

Estas pedras estão aqui
Muito antes dos dinossauros
Evoluírem e dominarem
O planeta azul.
Que afinal não era assim tão azul
Quanto o pintavam.

Visto da janela do teu quarto,
Em Candoz,
O vale era o mundo
E era verde,
Tal como em A Cidade e as Serras,
Do Eça de Queiroz.
Muito antes do mar,
E do pôr do sol sobre o mar,
Muito antes de saberes
Onde ficava a praia da minha infância.















Nem vale.
Nem pombas.
Nem praia.
Na Praia do Vale de Pombas,
À maré cheia, à praia-mar,
Há apenas um fio de água doce
Que mantém os cordões umbilicais
Do infinitamente pequeno da vida
Ligados ao infinitamente grande
Dos corpos celestiais.

Vale de Pombas:
Aqui caiu uma chuva de meteoritos.
Um dia hei-de lá levar-te.

Praia de Vale de Frades.
Mas que sei eu de cronogeologia
Para te dizer que estas pedras estão aqui
Há tantos milhões de anos ?!
Sei apenas que, de acordo
Com toda a teoria das probabilidades,
Estas pedras vão ficar aqui,
Muito depois da minha morte,
Muito depois da extinção da minha espécie.














Praia da Peralta.
O melhor do mês de Agosto
É enterrar a cabeça na areia
E escutar.
O mar.
A voz rouca do mar.
Que chegou até aqui,
Muito antes de mim e de ti,
E que vai ficar aqui
Muito depois de mim e de ti.

Não há farol
Na Peralta,
Para eu poder avisar a malta.
Enquanto o teu país arde
Ou o que resta dele.
Na Peralta passam navios ao largo.
Como manadas de elefantes.



















Porto Dinheiro
Um espesso nevoeiro
Cobre as falésias
Em Agosto.
Até aqui chegavam
As galés romanas.
E os barcos dos piratas.
Não sei se o sítio tem padroeiro
Ou orago.
Nem sei se por aqui passava
O teu caminho de Santiago.

Praia de Vale de Frades.
À volta de um prato de sardinhas,
A vida pode não ter
Metafísica nenhuma
E mesmo assim ser
Pura,
Emoção pura,
E simples,
Prazer simples.

Mandei pôr mais um prato
Na mesa, sem toalha,
Virada para o Mar do Serro.
Não me esqueci do pão,
Das sardinhas, das batatas,
Dos pimentos, da salada e do vinho...
Esperava por ti,
Que eras a oficiante da vida.

















Na Peralta,
Na malhada grande,
Eu poderia ter sido feliz
Entre apanhadores de lapas e de ouriços.

Mesmo sabendo
Que estas pedras estão aqui
Muito antes de mim,
Há milhões de anos.
Mesmo não tendo
Todas as respostas
A todos os porquês.


No Porto das Barcas
Não há ciência,
Apenas sapiência,
Que é a mais antiga das virtudes.

Porto das Barcas:
Um navio fantasmagórico
Entra pela terra adentro.

Praia do Caniçal:
Podia trepar
Pela minha árvore genealógica
Até ao paleolítico superior.
Pelo leito dos rios
Que sobem, secos,
Até às grandes fossas marinhas.

Porto das Barcas.
Daqui avistamos as Berlengas.
E a Nau Catrineta
Que já nada tem para nos contar.

Porto Dinheiro.
Aqui deito contas à vida.
Aqui conto as marcas
Do tempo.
Aqui lanço a âncora.
Aqui fui carpinteiro de naus.
Aqui, Plínio, o Velho,
Poderia ter fundado a paleontologia.
Mas, não:
Morreu em 69 a observar
A erupção do Vesúvio.


Praia do Valmitão
Podia ter sido ilha de corsário
Ou baía de tubarão.
A ter bandeira,
Só a preta,
Com caveira.

Praia da Areia Branca:
Não te conseguiram amar
Sem te possuir e violar.
Livro Sexto, de Sophia.










Praia do Areal:
Há uma seta
Que indica o sul.
O sol.
A zona dos chapéus.
O espaço rigorosamente vigiado
Dos amantes.
O risco de cancro da pele.
A rota da seda.
A sede.
Os amores de verão.
A morte.
Saio noutra estação.

Volto à Peralta
Para partilhar contigo
A magia do sol posto
No Atlântico norte.
O amor em Agosto.















Fotos: Praias do concelho da Lourinhã

© Luís Graça (2004-2005). Direitos reservados.

Blogantologia(s) II - (14): Por mor da nossa saúde

Originalmente publicado no Blogue-fora-nada, post de 17 de Março de 2005 > Blogantologia(s) - XXIV: Bons augúrios para a governança da coisa pública

Revisto nesta data


Por mor da saúde de todos nós.
Por mor da boa governação da coisa pública.
Por mor do nosso futuro.
Por mor da nossa memória futura.
Por mor dos vindouros e dos perdedores.
Por mor dos historiadores
Que escreverão a história
Em nome dos vencedores.
Por mor dos que vierem depois
De eu fechar a porta.
Por mor dos guardiões da Torre do Tombo.
Por mor de quem de direito.
Por mor dos pagantes.
E dos não-pagantes.
Por mor dos actores e dos espectadores.
Por mor dos marginais-secantes.
Por mor do mercado e da bolsa de Lisboa
E da casa forte do Banco de Portugal.
Por mor do meu querido Portugal S.A.
Que não quer dizer Portugal Sociedade Anal.
Por mor dos loucos e dos menos loucos.
Por mor dos poetas
Que têm um pouco de gestores.
E dos gestores
Que têm um pouco de médicos.
Mas também dos médicos
Que têm um pouco de loucos.
Por mor dos economistas
Que gostariam de governar o mundo.
Este mundo e não o outro.
Sem esquecer os políticos
Que gostariam de mandar nos economistas,
Nos gestores, nos médicos e nos doentes.
Por mor daqueles dos políticos
Que falam em nome do povo.
E daqueles que gostariam de mandar no povo.
Por mor do povo de esquerda, de centro e de direita.
(Abaixo a unicidade nacional!).
Por mor dos da lista de espera
Que desesperam de esperar.
Por mor dos que vão morrer esta noite
Nos Hospitais S.A.
E nos Hospitais S.P.A.
E amanhã nos Hospitais E.P.E.
Por mor dos que foram hoje
Ao serviço de atendimento permanente
Do meu centro de saúde
E que deram com a porta na cara.
Por mor dos cirurgiões que afiam a faca
À espera dos da lista de espera.
Por mor dos doentes agudos.
E dos doentes crónicos.
E dos hipocondríacos.
E dos doentes da saúde.
E dos utentes da indústria da doença.
Por mor da saúde doente e das doenças saudáveis.
Por mor da saúde emprezarializada.
Por mor das vítimas da guerra, dos terramotos, dos tsunamis,
Da fome, da peste e do bispo da nossa terra,
De que Deus nos livre!
Por mor dos simples, dos utentes, dos pacientes, dos clientes,
Dos beneficiários, dos misericordiosos e das crianças.
Por mor das catorze obras de misericórida,
Sete espirituais e sete corporais.
Por mor dos meus (con)cidadãos, os remediados e os ricos.
Por mor dos pobres, dos tristes,
Dos descrentes, dos desempregados,
Dos velhos, dos sós, dos esquecidos
E dos desconsolados
Da minha rua, do meu bairro, da minha cidade, do meu país.
Sem esquecer os apátridas
E os que perderam a identidade.
Por mor daqueles de quem um dia se disse
Que eram os bem-aventurados
Porque deles seriam o reino dos céus, amen.

Por mor do meu fornecedor da revista cais
no semáforo da esquina da rua
Da alegria com a avenida da liberdade.
Por mor da minha médica de família
Que contava os dias
Que lhe faltavam para a reforma.
Por mor do médico do gabinete ao lado
Que se enganou no curso que queria tirar
E que está a atender os gajos da propaganda médica.
Por mor do boticário do meu bairro.
Por mor do meu barbeiro-sangrador.
Por mor de mim e de ti, meu amor.
Por mor do meu psicanalista, do meu psicoterapeuta,
Do meu confessor e do meu curandeiro.
Por mor do meu médico do trabalho
E do meu técnico de higiene e segurança do trabalho.
Por mor do ergonomista que está a desenhar
O meu sistema técnico e organizacional de trabalho.
Por mor dos habitantes da minha casa inteligente do futuro.
Por mor da minha cartomante preferida.
Por mor de ti, feiticeira.
Por mor dos mais distraídos.
Dos votantes.
Das debutantes.
Dos amantes.
Por mor do meu patrão
Para que Deus lhe conserve a saúde e a riqueza.
E lhe aumente o empreendedorismo
E a capacidade de inovação.
Por mor dos meus dinossauros de estimação.
Por mor dos médicos da noite.
Dos médicos na noite.
Da minha querida Médis.
Por mor dos mercadores de sonho
Que trazem com eles a peste onírica e bubónica.
Por mor do meu rico seguro contra todos os riscos.
Por mor do Estado,
Que se quer menos Estado e melhor Estado.
Por mor dos contínuos, porteiros e seguranças do Estado.
Mais os cobradores de impostos.
E os pagadores de promessas.
E os guarda-costas das figuras de Estado.
Por mor do Estado de todos nós,
Sem pompa nem circunstância.
Por mor da nossa jovem democracia.
Por mor dos gestores e administradores dos serviços de saúde.
Por mor dos que passam as noites e os dias a pensar
Na reforma do serviço nacional de saúde.
Por mor dos reformadores de sistemas.
De todos os reformadores.
E das vítimas das reformas.
Dos reformados e aposentados.
Dos humilhados e ofendidos.
Das viúvas e dos órfãos.
Por mor da nossa frágil saúde.
E dos vírus que hão-de vir.
E do mal gálico.
E do mal italiano.
E do mal espanhol.
E do mal americano.
E do mal chinês.
E do mal português.
E do Ribeiro Sanches
Que curava os males de amor
Na Rússia Imperial.
O amor em carne viva.
Por mor das doenças emergentes e re-emergentes
Que nos querem matar.
Por mor das galinhas
E da gripe dos comedores de galinhas.
Por mor do virus da gripe das aves do céu
Por mor dos codificadores
De grupos de dignósticos homogéneos de doença.
Por mor dos marcadores biológicos do Homo Sapiens Sapiens.
E sobretudo dos grandes arquitectos do genoma humano.
Por mor do meu antepassado troglodita
Que era recolector-caçador
E que quando almoçava nunca sabia
Onde e o quê iria jantar.
Por mor do meu Professor de economia
Que me lembra que não há almoços grátis.
Nem entradas grátis
No céu, no purgatório ou no inferno.
Qe se fazem, cá se pagam.
Por mor dos actuais e futuros ministros da saúde.
Por mor dos ministros do futuro.
Por mor da utopia do futuro sem ministros.
E até dos ministros sem futuro.
Por mor dos servidores do povo,
Para que nunca esqueçam que ministro
Vem do latim minus, pequeno.
Para que os deuses iluminem os nossos governantes
E os pescadores que andam perdidos no mar alto.
E os pecadores dos sete pecados mortais.
Por mor dos nossos governantes e dos seus governados.
Para que o canto e o voo dos pássaros lhes sejam favoráveis.
Por mor do Zé Portuga.
Do Zé Manel.
Do Zé, simplesmente.
E para que, eu, Blogador, me confesse
E nunca perca de vista
O essencial.
Por mor da minha terra, Portugal.
Por mor de todos nós,
Como se diz em terras de Entre Douro e Minho.
Por mor de nós e dos que hão-de vir atrás de nós.
Por mor da parca herança que lhes deixamos.

terça-feira, novembro 08, 2005

Blogantologia(s) II - (13): Descansa em paz, Iero Jau

Publicado originalmente no Blogue-fora-nada, post de 10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau


Descansa em paz, Iero Jau


A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.

Para mim, a guerra é
A aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
Para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
De matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
Os dias que faltam para a peluda.

Trinta e tal anos depois,
Venho dizer-te
As palavras que ninguém te disse
No teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Ieró Jau,
Meu herói!
Soldado atirador
Do 2º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
Que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12.
Companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
Os meus camaradas,
O meu bando de primatas sociais,
Territoriais, predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
De Herr Spínola, o prussiano,
Como eu lhe chamava,
Ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
São outros contos, outras estórias,
Outros ajustes de contas
Com as nossas doridas memórias.

Dscansa em paz,
Iéro Jau,
Debaixo do poilão secular
Na tua tabanca,
No chão fula,
Belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
Lá para os lados de Galomaro ? (1)

Desculpa-me ter esquecido
O nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
E o rosto das tuas mulheres,
Agora órfãos e viúvas,
Sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis.
Já não dão o milho painço nem o fundo,
Nem a mancarra
Nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra.
Voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
Poisados no alto da tua morança,
Cheirando a morte,
Pressagiando a desgraça

Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia (2).
Morreste em linha.
Aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
Próximo da Ponta do Inglês.

IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
Por comodidade,
Por lassidão,
Por economia de análise.

Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
De cidadão português.
Eras um fula preto, um fula forro,
Não creio que fosses futa-fula.
Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
Mais os teus camaradas,
Que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares, tiros de salva,
E a bandeira verde-rubra dos tugas
Por cima do teu caixão.
De pinho.
Do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
À maneira dos teus.

Portugal ? Ainda te lembras,
Os senhores que vieram do norte
E do lado mar.
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história. Nem de geopolítica.
No sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
Eu deveria saber o nome da tua aldeia,
No chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Ieró Jau.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
Talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
Mas faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
Confesso que chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
Teu irmão,
Pela mão.
E que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
Soldado-atirador
De 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
Para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
Da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
O que primeiro que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jau.
Chorei de raiva.

Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te djubi,
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os djubis à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe.
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo.

E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Ieró,
Morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
Na tua cara.
Acidente de serviço
No auge da batalha,
Quando avançavas em linha,
No assalto ao acampamento
Do IN,
Levando pela corda
O teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
Ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga (3),
Tão crente como tu,
Tão observador dos preceitos corânicos
Como tu, meu querido nharro.

E agora, Ieró,
Que foste poupado
À humilhação da derrota
E não viste o teu país
Sentar-se de pleno direito
À mesa do mundo...
Que farias tu com esta independência
Contra a qual lutaste
Sem querer,
Sem saber,
Sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
Que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
Esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
Não chegaste a aprender o alfabeto latino
E a juntar as letrinhas e ler,
Com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
Não de morte matada, como a tua,
Mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
Devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
Na parada de Bambadinca,
O poderoso régulo de Badora,
Tenente de milícias,
Que havia trocado o cavalo branco
Da gesta heróica do Futa Djalon,
Por uma prosaica motorizada japonesa
De 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado
E de uma harém de cinquenta mulheres,
Uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
Era filho dele,
O Umaru e mais soldados da CCAÇ 12.

Hoje os heróis do passado sucumbem
Sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
Tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
Às portas do templo da deusa Europa,
Em Ceuta e em Melilla,
Em Lisboa ou em Paris.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
Desde esse dia já distante
Em que a tecnologia da guerra
Ou a lotaria do ADN
Te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
Três meses depois de jurares bandeira
E te comprometeres, por tua honra,
A defenderes uma pátria que não era tua,
Até à última gota do teu sangue ?

E do Malan Mané não tenho notícias,
Se é isso que queres saber,
Mas duvido que ele tenha sobrevivido
Aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
À laia de despedida:
Não sei se um dia
Ainda terei coragem de voltar
À tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
Gostaria de perguntar pela tua aldeia,
E de procurar-te
E de ter tempo para conversar contigo,
Só tu e eu,
Debaixo do teu poilão.

Luís Graça
_______________

(1) Vd. carta da Guiné (1961), dos serviços cartográficos do exército.

(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(3) Vd. post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga