quarta-feira, outubro 12, 2011

Blogantologia(s) II - (96): Não sei qual é mais feio, se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo...


Lourinhã, Praia da Areia Branca > 9 de Outubro de 2011 > O meu último passeio, antes de "ir à faca"... As efémeras impressões da minha pata esquerda na areia.

Fotos (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. 

Dedicatória:

Em homenagem aos nossos médicos,
que passaram pelo TO da Guiné, em geral;
e muito em particular ao meu camarada de armas,
mais tarde cirurgião, ortopedista,
Dr. Francisco Silva,
que me operou em 12/10/2011,
ao meu joanete (LG)


Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete,
se a minha alma,
se o mundo…

Fui fazer um raio X
ao tórax
e à pata,
esquerda.
É tão feio o esqueleto,
assim descarnado.
Uma merda,
dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto,
inteiriço,
que seja apenas uma perna ou uma pata,
até mesmo só a pata da perna esquerda,
la zampa della gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota cardada,
civil e militar,
e já levou muita pisadela nos calos.

É uma merda, o esqueleto
visto ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
gosto de te ver, esqueleto meu!
O ortopedista não concorda:
Afinal, a pata,
é onde ele põe a mão
e ganha o pão.

P’ra mim,
desculpem-me a franqueza
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas de armas, medalhados,
é feio o esqueleto,
o tórax,
o metatarso,
assim radiografado.

Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.
Sem a camiseta Lacoste dos teus verdes 20 anos.

É peremptório o relatório,
médico:
Tenho o metatarso deformado,
o dedo grande do pé todo torto,
dois dedos encavalitados,
um joanete,
um trambolho.
Hallux abductus valgos,
no latinório hipocrático.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias,
da tropa,
da Guiné,
eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.

Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
É feia a alma,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc,
curandeiro,
balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais dos náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…
- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.


Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o
medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
mais torto que o meu metatarso,
mais lúgubre que a minha alma.

Tem um cancro,
generalizado,
local,
regional,
global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta terrestre ao mais fundo do fundo.
Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação.
- Não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia-,
diz-me o cirurgião do mundo…

Explicou-me,
em traços largos,
na capa de uma revista cor de rosa
do tempo da belle époque,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul, quanto mais rosa.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso,
da pata,
do joanete,
da alma…


Resta-me,
impávido e sereníssimo,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé
no dia 12 de Outubro de 2011,
no bloco operatório do Hospital Amadora-Sintra.
- Depois das férias,
meu camarada,
vamos começar por tratar desse joanetinho.…

… E eu tenho a secreta esperança
de que, se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!

sexta-feira, agosto 26, 2011

Blogantologia(s) II - (95): Na festa dos mortos, o olvido dos combatentes...

Na festa dos mortos, o olvido dos combatentes…
por Luís Graça

O cemitério enche-se de flores,
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras.

É a festa dos mortos,
mas também a celebração da vida,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,
o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
familiares, parentes, amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém, quando
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais: recusam-se a marcar a passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.

É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram) injustamente, antes de nós...

Quem vive mais longe (Porto, Lisboa...),
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
Terra de antigos rendeiros, camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos
e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,
tipificada nas figuras do brasileiro e do francês do século passado...

No meio do pequeno cemitério da freguesia
há ostensivamente uma capela,
a da família da ilustre casa
que foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona
e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
donos dos seus corpos e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo revivalista, neogótico,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim,
Memento homo,
quia pulvis es,
et in pulverem reverteris.
Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim dos frades absolutistas
e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz:
Lembra-te, ó homem,
que és pó
e em pó te hás-de tornar...

Mesmo na morte,
os homens tentam,
patética e inutilmente,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância,
que mantinham em vida...
É por isso que eu gosto da designação, irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul,
no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelho e a abetarda,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o general e o soldado,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
o herói e o cobarde,
o amigo e o inimigo...

Passei por lá,
pelos cemitérios de Paredes de Viadores e de Paços de Gaiolo,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas,
menos de duas...
Tirei fotografias aos grandes,
vistosos
e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara aos parentes dos mortos...
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena
(e aqui e acolá alegre, viva, franca, saudável) cavaqueira.
Percebi que a homenagem aos nossos mortos
é também (e sobretudo ?)
um pretexto
para os vivos se mostrarem uns aos outros...
E para dizerem alto e bom som
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
com os seus Mercedes de matrícula K,
com as análises em dia,
e o certificado de robustez física, 
passado pela alta autoridade de saúde,
com o corpo e todas as miudezas
dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos, sãos, e recomendam-se...
Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar que têm decência
e recato
e memória
e saudade...
E que sabem chorar, sinceramente, os seus mortos.
Muito simplesmente são ou parecem ser
gente feliz,
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos.
Ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo, o Dia de Finados.

No sul, da Reconquista, de onde eu venho,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, mouro, judeu, franco, africano,
também há o culto antiquíssimo, pagão,
dos mortos...
Mas aqui, no norte, o cristianismo
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão 
gregária, 
simbólica, 
normalizadora...

Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês.
O dia das alminhas (que ternura de termo!),
como diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações,
esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa.

Não sei, contudo, qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros
que morrem em combate...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império, ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria, conceito burguês.
Pode ser-se herói e herói da Pátria
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos...
Pode ter-se morrido pela Pátria e mesmo assim
esse sacrifício ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(morre-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos)
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...

Para onde irão as almas dos combatentes ?
Quase sempre, muitas vezes,
em toda a parte,
para o limbo,
o purgatório do olvido,
que é esquecimento mas também adormecimento.
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho, já extinto,
de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta...
Como estas duas campas, rasas, de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos, no ultramar português,
Joaquim Araújo, Francisco Soares…
por alguém, por alguma coisa
A que eles chamavam Pátria…
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos

De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do Ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do Ultramar,
uma espécie de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Por que o fim daquela guerra
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração.
E é bom que os jovens de hoje saibam isso,
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatro de operações,
que Portugal mantinha em África...

Hoje há pudor em falar desta guerra,
de baixa intensidade
mas que consumia vidas e cabedais.
Da guerra e dos seus mortos,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
estropiados,
tresloucados,
dos seus mortos-vivos,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios Geba, Corubal, Mansoa,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine,
na Guiné,
ou nos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos 
já esqueceram...

Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, que estamos vivos,
em relação a eles que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, acidente ou doença);
e se calhar deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam,
nem nos assombram,
nem nos incomodam,
nem nos apavoram
nem nos interpelam ou questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos,
na festa dos mortos
os que morreram de morte matada
no campo de batalha,
na África remota, distante, dos séculos passados
não têm uma menção especial,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),
uma atenção especial,
um arranjo floral,
nem sequer umas simples flores de plástico...
Mas será que deveriam tê-lo ?


Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.
2 de Novembro de 2008. Revisto em 23 de Agosto de 2011
______________

quinta-feira, agosto 18, 2011

Três poemas do meu poemário de Agosto: Para a Alice, em dia de anos com capicua

1.O mar, amor, em Agosto

Praia de Paimogo.
Estas pedras estão aqui
Há milhões de anos.
E eu não sei dizer-te
Por que é que estas pedras estão aqui
Há milhões de anos.

Uma enseada, uma cratera, um lago.
A Praia de Paimogo foi talhada
A ferro e fogo.

Mas se eu fosse deus,
Todo poderoso senhor
Ou até vulcão,
Tê-la-ia desenhado,
Com muita ternura,
Sob a forma de coração.
Só para ti, meu amor.

Estas pedras estão aqui
Muito antes dos dinossauros
Evoluírem e dominarem
O planeta azul.
Que afinal não era assim tão azul
Quanto o pintavam.

Visto da janela do teu quarto,
Em Candoz,
O vale era o mundo
E era verde,
Tal como em A Cidade e as Serras,
Do Eça de Queiroz.
Muito antes do mar,
E do pôr do sol sobre o mar,
Muito antes de saberes
Onde ficava a praia da minha infância.

Nem vale.
Nem pombas.
Nem praia.
Na Praia do Vale de Pombas,
À maré cheia, à praia-mar,
Há apenas um fio de água doce
Que mantém os cordões umbilicais
Do infinitamente pequeno da vida
Ligados ao infinitamente grande
Dos corpos celestiais.

Vale de Pombas:
Aqui caiu uma chuva de meteoritos.
Um dia hei-de lá levar-te.

Praia de Vale de Frades.
Mas que sei eu de cronogeologia
Para te dizer que estas pedras estão aqui
Há tantos milhões de anos ?!
Sei apenas que, de acordo
Com toda a teoria das probabilidades,
Estas pedras vão ficar aqui,
Muito depois da minha morte,
Muito depois da extinção da minha espécie.

Praia da Peralta.
O melhor do mês de Agosto
É enterrar a cabeça na areia
E escutar.
O mar.
A voz rouca do mar.
Que chegou até aqui,
Muito antes de mim e de ti,
E que vai ficar aqui
Muito depois de mim e de ti.

Não há farol
Na Peralta,
Para eu poder avisar a malta.
Enquanto o teu país arde
Ou o que resta dele.
Na Peralta passam navios ao largo.
Como manadas de elefantes.

Na Peralta,
Na malhada grande,
Eu poderia ter sido feliz
Entre apanhadores de lapas e de ouriços.
Mesmo sabendo
Que estas pedras estão aqui
Muito antes de mim,
Há milhões de anos.
Mesmo não tendo
Todas as respostas
A todos os porquês.

Porto Dinheiro
Um espesso nevoeiro
Cobre as falésias
Em Agosto.
Até aqui chegavam
As galés romanas.
E os barcos dos piratas.
Não sei se o sítio tem padroeiro
Ou orago.
Nem sei se por aqui passava
O teu caminho de Santiago.

Porto Dinheiro.
Aqui deito contas à vida.
Aqui conto as marcas
Do tempo.
Aqui lanço a âncora.
Aqui fui carpinteiro de naus.
Aqui, Plínio, o Velho,
Poderia ter fundado a paleontologia.
Mas, não:
Morreu em 69 a observar
A erupção do Vesúvio.

Praia do Valmitão.
Podia ter sido ilha de corsário
Ou baía de tubarão.
A ter bandeira,
Só a preta,
Com caveira.

No Porto das Barcas
Não há ciência,
Apenas sapiência,
Que é a mais antiga das virtudes.

Porto das Barcas:
Um navio fantasmagórico
Entra pela terra adentro.

Daqui avistamos as Berlengas.
E a Nau Catrineta
Que já nada tem para nos contar.

Praia do Caniçal:
Podia trepar
Pela minha árvore genealógica
Até ao paleolítico superior.
Pelo leito dos rios
Que sobem, secos,
Até às grandes fossas marinhas.

Praia da Areia Branca:
Não te conseguiram amar
Sem te possuir e violar.
Livro Sexto, de Sophia.

Praia do Areal:
Há uma seta
Que indica o sul.
O sol.
A zona dos chapéus.
O espaço rigorosamente vigiado
Dos amantes.
O risco de cancro da pele.
A rota da seda.
A sede.
Os amores de verão.
A morte.
Saio noutra estação.

Praia de Vale de Frades.
À volta de um prato de sardinhas,
A vida pode não ter
Metafísica nenhuma
E mesmo assim ser
Pura,
Emoção pura,
E simples,
Prazer simples.

Mandei pôr mais um prato
Na mesa, sem toalha,
Virada para o Mar do Serro.
Não me esqueci do pão,
Das sardinhas, das batatas,
Dos pimentos, da salada e do vinho...
Esperava por ti,
Que eras a oficiante da vida.
No Porto das Barcas
Não há ciência,
Apenas sapiência,
Que é a mais antiga das virtudes.

Volto à Peralta
Para partilhar contigo
A magia do sol posto
No Atlântico norte.
O amor em Agosto.

2. Deixa que os que gostam de ti, te apapariquem

Aforismos de Agosto
(a pensar em ti)

Agosto é vento,
É areia,
É sal,
Contra as pálpebras dos marinheiros
Que morreram nos teus sonhos.
Nunca deixes morrer os sonhos.
Os teus sonhos.
Nem os marinheiros de olhos azuis
E cabelos louros ao vento
Que subiam os mastros dos navios
Do teu museu do mar, imaginário.

Tu que vieste com o vento norte,
Ganhas novo fôlego e alento
E outra leveza
Ao perfazeres os dez mil passos
Diários, matinais, no areal.
Para que o corpo não crie raízes.
E a gente possa desfrutar a beleza
Da enseada de Paimogo.

O melhor de Agosto
São as esplanadas
Das pequenas terras de Portugal,
À beira mar.
Tão cheias de nadas,
Tão saloias,
Tão pimbas,
Tão belas.
Conheci-te numa delas.

Agosto são os escorpiões tatuados
Nos corpos
Das petites filles portugaises
Que voltam à terra dos avós.
Agosto são as alegrias e as vertigens
Do regresso.
Porque voltamos sempre às origens.

Os únicos que têm de vencer
São os surfistas.
Vencer a onda,
O vento,
A areia,
O sal.
Não temos que destruir para vencer.

Agosto é também
O puro desejo da mãe
Pelo filho incestuoso.
Lânguidas mamãs,
De mamas flácidas.
São focas estiradas ao sol.
São focas.
São fofas.
Como é bom ser mamã,
E foca
E fofa
E babada.

O melhor de Agosto
É teres o dia todo
Por tua conta,
O dia, a semana, o mês.
Os dias úteis do mês.

Mas o melhor de Agosto é o teu dia.
Dezoito.
E estamos cá todos,
A apaparicar-te...
Deixa que os que gostam de ti,
Te apapariquem.

Lourinhã,
Rua da Misericórdia,
18 de Agosto de 2008.

3.Teu (e)terno namorado

Um dia vou ter pena de morrer,
Só por ti
E pelo azul da luz de Lisboa
Nas manhãs perfeitas de domingo.

Um dia vou ter pena de partir,
Não pelo que não vivi,
Mas só por que não namorei contigo
Nas horas e nas desoras
Dos dias em que o azul não era tão azul,
Nem os domingos tão domingos,
Tão perfeitos,
Como tu querias….

Ficarás na dúvida
Se eu afinal sempre era o teu príncipe
Desencantado,
E tu a minha chita,
Selvagem e pouco borralheira,
Em busca do azul perfeito dos domingos
À beira Tejo.

Fora eu transparente como o céu de Lisboa
Lúcido e translúcido,
Tão certo e previsível como o Domingo
Que é o Dia, perfeito, do Senhor,
E talvez tu nunca tivesses escutado
Os meus passos na rua estreita do teu bairro,
Nem sequer lido a letra do meu fado,
Ou estranhado a primeira e única carta
Que te escrevi.
De Amor.


segunda-feira, agosto 01, 2011

Textos diversos (1): À laia de despedida de uma garça...

À laia de despedida de uma garça…

Amigos/as, companheiros/as da ENSP/UNL
(email que circulou pelos “internos”):

Deixem-me dizer-vos uma palavrinha
Antes que o dia acabe
E passe o verão do nosso contentamento descontente…
Segunda feira começa o Agosto,
O nosso querido mês de Agosto,
Seguramente o mês
Em que os portugueses ficam mais próximos
Do puro estado de felicidade…
Os portugueses de dentro e os de fora…
Pois, na próxima segunda feira,
Já seremos menos
Nesta casa
Onde se estuda e se trabalha,
Do piso zero ao piso dois…
Pelo menos, a Graça G...
Já não estará no gabinete de informática,
No 2º piso, nº 3A 27,
Para, sempre solícita e gentil,
Responder aos nossos SOS
De utentes atrapalhados
Com as partidas das máquinas
De quem somos cada vez mais tecnicodependentes…
Pois é, a nossa querida Graça,
Gentil garça,
Vai nos deixar
Pela simples razão de que a empresa
Que gere o nosso back office informático
Vai dispensá-la.

Posso não entender, mas não também discuto,
As razões dos gestores
Que todos os dias decidem
Da vida das pessoas que trabalham nas suas empresas.
Dir-me-ão que a Graça
Deixou de caber no algoritmo da empresa
Que a contratou
Para trabalhar na ENSP/UNL.
As nossas vidas são simples,
As contas é que são complicadas,
E os contos ainda mais…
Pelo menos, é o que ouvimos dizer todos os dias:
- A economia, seu estúpido!
Pois seja, mas não é ela que nos vai matar os sonhos
Nem as nossas gentis garças
Que se atravessam, em voo raso,
Na nossa autoestrada da vida…

Já lá vai quase uma década
Que eu vi a jovem e tímida garça
A entrar por esta escola adentro
E a competir, taco a taco,
Com os machos informáticos de barba rija…
Tinha estudado nas Caldas da Rainha
E era de Torres Vedras.
Logo minha vizinha,
Logo estremenha, como eu.
E depois habituei-me a vê-la,
No meu querido mês de Agosto,
Na minha não menos querida Praia da Areia Branca,
Já com os rebentos pela mão…
Sim, porque entretanto
Também foi mãe
Nestes anos que passaram,
Assim tão de repente.

Eu sei que a garça Graça
É uma mulher lutadora
E leva daqui um portfólio,
Como se diz agora,
De competências,
Não só técnicas mas também humanas e relacionais,
Que a vão ajudar
A rapidamente voltar ao mercado de trabalho.
Mas, perdoem-me a franqueza,
Eu vou ter saudades da nossa garça Graça,
Da sua voz aguda, e do seu sorriso,
E daquele seu jeito de,
Mesmo debaixo de stresse,
Me dizer, com a maior gentileza do mundo:
- Professor, deixe aí o seu portátil,
Que a gente já resolve o problema…


O único consolo que me resta,
Enquanto faço o luto pela sua perda,
Valioso recurso humano desta escola,
É que eu vou já encontrá-la
Segunda feira, na Praia da Areia Branca,
E vou convidá-la para tomar uma bica,
E, como diria um bom alentejano,
Tabaquear o caso, com ela…
Ou por outros palavras,
Dar a língua,
Pôr a conversa em dia,
Puxar umas fumaças (ela, não eu que sou ex…),
Recordar as pequenas histórias
Com que a gente tece, colectivamente,
A malha da grande História…
Mesmo sem direito a retrato institucional,
A Graça faz parte da nossa pequena grande história,
Desta casa, desta escola, de todos nós,
Alunos, professores e demais trabalhadores,
Porque, qual garça, gentil,
Um dia atravessou a Avenida Padre Cruz,
E pousou no Gabinete de Informática,
Da ENSP/UNL,
2º piso, nº 3 A 27…

E porque as nossas organizações
Devem ter um rosto,
E porque o melhor delas somos nós,
A acreditar nos livros do gurus da gestão,
As equipas e os trabalhadores de equipa,
E os seus líderes,
Então eu atrevo-me
A falar em nome de muitos mais,
Mesmo sem legitimidade institucional para o fazer,
Para simplesmente lhe dizer:
-Obrigado, garça Graça…
Vamos sentir a tua falta.
Mas também sabemos que tens asas
E força para voar!
Força e perícia!
E nos teus novos voos por novos céus,
Não te esqueças de nós,
Que gostamos sempre que os amigos nos visitem
E voltem
… à nossa ENSP/UNL,
Av Padre Cruz,
sem número de polícia…
Muita saúde e longa vida,
Porque tu mereces tudo!

Luís Graça
luis.graca@ensp.unl.

quinta-feira, julho 28, 2011

Vamos cantar as janeiras (3): Escola Nacional de Saúde Pública, 2010

Viva a Escola Nacional,
Nossa, de Saúde Pública,
Ao pé dela não falem mal,
Qu’ é senhora muito púdica!


Houve até um Pai Natal
Que pensou em embrulhá-la,
Em mau diploma legal
E simplesmente… fechá-la!


Se alguém cá ouve asneiras,
Que se queixe às tutelas,
E, na falta de maneiras,
Que se mude p’ra Bruxelas.


A haver promiscuidade
Entre ciência e poder,
Escolham sempre a liberdade,
E mais o ser que o ter.


Entre ódios e amores,
Vamos cumprindo a missão
De fazer mestres e doutores
Em linhas de produção.


Jingle bell, jingle bell,
Dizem que a crise é global,
Não há tinta nem papel,
Só suporte digital.


Muitas renas, poucas prendas,
Traz à Nova este Natal… mau,
Que ao menos, ó Reitor Rendas,
Não nos falte o bacalhau.


Já foi mais fiel, o amigo,
À mesa dos portugueses,
Estando agora em perigo,
Nas mãos dos noruegueses.


Quem vê caras não vê c’roas,
Diz o nosso economista,
E sem guita não há broas,
Nem saúde que resista.


Vem aí novo director,
Mesmo sem voto democrático,
Boas festas, p’ró senhor,
Quer seja ou não catedrático.


Que cuide bem desta casa,
E de quem nela labuta,
Com sorte e um golpe de asa,
Vamos ganhar a nova luta.


É o melhor que a Escola tem,
Os seus recursos humanos,
Não se queixam a ninguém,
E melhoram com os anos.


Constantino, se não importa,
Uma palavra lhe é devida,
De Alma Ata a Harry Porter,
É toda uma história de vida.


Apreço e gratidão
Ficam bem à nossa mesa,
Com ou sem Natal cristão,
Não aumentam a despesa.

O velho sanitarismo
São os croquetes e as retretes,
Com o sakellaridismo,
É gestão da diabetes.


É estratégia, é parceria,
Mais doenças do milénio,
Não digam que é poesia,
Mas pensamento de génio.


É uma outra gramática,
Policy e governance,
Teoria mais pragmática,
Inovação e nuance.

Co´o intelectual orgânico,
Do novo sanitarismo,
Dissemos não ao pânico,
E abaixo o pessimismo!


Não é líder de cruzeiro,
Nem sequer é general,
Mas é de todos o primeiro,
A ver o novo e o genial.


Sai aqui no apeadeiro
Da Avenida Padre Cruz,
Um abraço, companheiro,
Exemplo e fonte de luz.

E p’ro povo em geral,
Fornecedores e clientes,
Boas Festas, Feliz Natal,
E os corações sempre quentes!


Luís Graça, 16 de Dezembro de 2010

Vamos cantar as janeiras (2): Escola Nacional de Saúde Pública, 2007

ENSP, Natal de 2007

Vozes: Margarida + Pedro + coro da ENSP
Viola: Pedro
Tema musical: Satisfaction


Refrão


O Natal, todos os dias,
É um bom tema de gestão
Não queremos mordomias,
Mas tão só satisfação.


Há uma estátua, frente ao IN…SA,
De um ilustre profe….ssor,
Que nunca usaria pin…ça
P’ra falar com o senhor rei…tor.

Ricardo Jorge, avozi…nho,
Vem cá baixo, à nossa ter…ra,
Aconselhar juizi…nho
Ao que da saúde faz gue…rra.

Tenho de ser diploma…ta.,
Catedrático e director,
Se um diz esfola, outro ma…ta,
Ai, Jesus, Nosso Senhor.

Ainda mais podero…so
É um tal senhor Bolo…nha,
Com o seu quê de mafio…oso,
Diz que o ensino é uma vergo...nha.

Doutor Prista, o É Cê Tê Esse,
Já não posso mais com as Fu…ques
Se a Escola envelhe…ce,
Tire-lhe os tiques e os truques.

Por mor da mobilida…de,
Viaja em cima o discen…te,
No comboio da liberda…de
Fica em baixo o do…cente.

Meu Pai Natal é astu…to,
Não me vai abrir a co…va,
Traz com ele novo estatu…to
P’ra Univerdade Nova.

Refrão

O Natal, todos os dias,
É um bom tema de gestão
Não queremos mordomias,
Mas tão só satisfação.

L.G.

Vamos cantar as janeiras (1): Escola Nacional de Saúde Pública, 2008

Natal de 2008, na ENSP/UNL


No Natal de dois mil e oito,
Muitos votos e poucas prendas,
Diz aflito e nada afoito
O pobre do Reitor Rendas.


Novo estatuto vem no sapato
Da nossa querida escolinha:
- Pai Natal, aqui há gato…
Vamos passar muita fominha?


Lá se vai o belo tacho,
Desta escola director:
- De escalão é que eu não baixo,
Serei sempre professor.


Já fiz o meu TêPêCê,
Senhor Professor Bolonha,
Nesta Escola, como vê,
Muito estudo, pouca ronha.


Neste mar de tubarões,
Não sejas peixe miúdo,
Só em cardume, aos milhões,
Podes vencer o Graúdo.


De vós que em breve vos ides
Para a reforma dourada,
Cito o Doutor Sakellarides
E Hígia (*), a sua amada.

No aforismo hipocrático,
Vida curta e longa arte,
Não condiz com catedrático,
Que entra, sai e… logo parte.


Tudo por mor do povo,
Natal é festa... e também
Saudar o Ano… Novo -
Dizem eles! – que aí vêm.


Sendo uma casa com história,
E uma Escola Nacional.
O ano vai ser de glória,
Para a saúde em Portugal.


Venha o novo director,
Com ou sem bênção geral,
Que o Ano seja o melhor,
Boas Festas, pessoal.

Lisboa, ENSP/UNL, 19 de Dezembro de 2008


LG


______________
 
(*) Hígia, deusa grega da saúde, irmã de Panaceia, a deusa da medicina (a arte), ambas filhas de Asclépio, o semi-deus, pai mitológica da medicina ocidental



http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos2.html

sexta-feira, julho 01, 2011

Bogantologia(s) II - (94): Homenagem ao Prof Constantino Sakellarides

1. Homenagem, poético-sentimental, ao Prof Catedrático Jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL), Constantino Thedor Sakellarides, também conhecido pelo nickname SAK, ao quilómetro 70 da sua autoestrada da vida, por parte de todos os companheiros e companheiras da saúde pública, aqui sentados/as à volta desta mesa, como ele gosta…


Companheiro: palavra que vem etimologicamente, do  latim cum + pane (aquele que come o mesmo pão à mesma mesa)….


É grego, de ascendência,
Moçambicano profundo,
Portuga por excelência,
Grande cidadão do mundo.

É nativo de Aquário,
Nascido em 1 de Fevereiro,
Tem fama de visionário,
Mas não de… facebookeiro.

É SAK, lutador também,
Detesta o assim-assim,
Faz jus ao nome que tem,
Constantinus, em latim.

Theodor, que é dom de Deus,
Foi por paixão, não por sina,
Que, em vez do reino dos céus,
Escolheu a medicina.

Com o seu quê de bizantino,
Tem fama de sedutor,
É o Doutor Constantino,
Mestre, guru, professor.

Do Maputo a Copenhaga,
Ou de Houston a Granada,
Sua vida é uma saga,
E a Higia a sua amada.

É um homem com memória,
E sentido de gratidão,
Que até da pequena história,
Faz a magistral lição.

Só não andou embarcado,
Em velhas Naus Catrinetas,
De três ninfas pai babado,
Avô de netos e netas.

Se o SAK é estrangeirado,
Por trabalhar que nem um negro,
Quem o diz está enganado,
SAK é tão tuga como grego.

Ao SAK pouco lhe importa,
A guerra que lhe é movida,
De Alma Ata a Harry Porter,
SAK é história …(de)vida.

Chamam-lhe o ideólogo
Do novo sanitarismo,
Da saúde, o politólogo,
Viva o SAK’llaridismo!

Não é gestor de cruzeiro,
Mas foi director-geral,
De todos é sempre o primeiro,
A ver o novo e o genial.

Não é roubo, não é saque,
Tem valor acrescentado,
A amizade do nosso SAK,
Prof agora jubilado.

Ao quilómetro setenta,
Da autoestrada da vida,
O SAK ainda aguenta
O calor da despedida.

Continuamos a conversar
Sentados à volta da mesa:
Que o contrato a celebrar,
É co’ a vida, de certeza!

Sais aqui, no apeadeiro
Da Avenida Padre Cruz…
Xicoração, companheiro,
Exemplo e fonte de luz!


Jantar de homenagem,
Lisboa, Bairro Alto,
Restaurante La Paparrucha
1 de Julho de 2011


2. Deixa-me acrescentar aqui, Constantino, um excerto de um recensão do teu último livro, “Novo contrato social da saúde: incluir as pessoas” (Lisboa: Diário de Bordo, 2010).

Foi feita para um dos meus módulos, por um nosso  (meu/teu) aluno do programa de doutoramento. Ele vai perdoar-me (e tu também) se eu, abusivamente e sem autorização prévia, transcrever e ler aqui publicamente o que ele disse a respeito de ti, autor do livro:

“Sakellarides reforma-se agora, com 70 anos de idade. Tive o privilégio de assistir às últimas aulas que leccionou sobre políticas de saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública, onde expôs, no modo eloquentemente brilhante que o caracteriza, as ideias que expressa neste livro. Confirmei as convicções que já possuía: Sakellarides é um dos maiores politólogos da saúde portugueses (e internacionais) de sempre, uma das pessoas com maior influência na estruturação do pensamento em saúde e um Homem com dedicação à causa pública como não tem rival. A sua última obra escrita, aqui em análise, é o testemunho vivo disso mesmo”.

Deixa-me dizer-te o nome do aluno: Domingos Malta. Quando ele chegar ao quilómetro 70 da sua autoestrada da vida, vai seguramente lembrar-se, como tu, dos mestres que teve e que o marcaram, e entre eles figura um senhor chamado Constantino Sakellarides.

Podem, meu caro SAK, tirar-te, tirar-nos tudo, mas são estas pequenas recompensas imateriais, dadas pelos nossos alunos, que nos reconciliam com a vida de professor, suas grandezas e misérias, suas alegrias e tristezas… Acho que é bom sentir que afinal o pedagogo (do grego, paidagōgós) é mais, muito mais – etimológica e metaforicamente falando - do que o escravo que leva a criancinha, pela mão, à escola


LG (em nome de todos/as os/as presentes e dos/das que não puderam vir, que tiveram – e continuam a ter - o privilégio de te conhecer, trabalhar contigo ou simplesmente privar contigo).

quinta-feira, abril 28, 2011

Blogantologia(s) II - (93): Elegia para um paisano





Elegia para um paisano (*)

por Luís Graça [ foto acima, no "oásis de paz" de Contuboel, Centro de Instrução Militar, Junho de 1969]

(À memória de A…, meu camarada
da CCAÇ 12, Guiné, 1969/71…
e dos demais camaradas, desconhecidos
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos,
por homicídio, por suicídio, por acidente)



Disseram-me que tinhas morrido,
Meu infortunado camarada,
Já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
Do século passado,
Não posso precisar.
Morrido, lerpado,
Para usar o nosso vocabulário,
Bruto e feio.
Lerpado, assim, sem mais nada,
Sem uma palavra,
Sem uma despedida,
Sem uma oração,
Talvez até sem um ui nem um ai,
Sem um grito.
Sem aviso prévio,
Nem sequer um cheque-mate!
Morrido, de morte matada!
Morrido, como um cão.
De um tiro na nuca.
Como os cães que abatemos,
Um noite, em Bambadinca,
A Noite das Facas Longas,
Lembras-te?!

Disseram-me que tinhas sido encontrado,
Longe da nossa Guiné,
Dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
Longe da tua Sinchã Mamadjai,
E da morança da tua bela Fatumatá,
De mama firme,
Que se escapulia para a tua morança,
Nas noites, de lua cheia,
Em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
Do Mato Cão,
Dos Nhabijões,
Da Missão do Sono,
Da Ponte do Udunduma,
Da orla da bolanha,
Do poilão,
Do bagabaga…
Onde ?
Longe dos teus verdes anos,
Longe do arco-íris do teu céu de menino.
Perto do teu Tejo,
Numa valeta da rua
Da tua cidade…
Ou de qualquer subúrbio triste e cinzento
De cidade nenhuma.

Que morte tão crua,
A ser verdade,
Oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
Que alguém leu no jornal.
A notícia de uma morte
Em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
Tenhas simplesmente desaparecido,
Emigrado,
Sido sequestrado,
Mudado de código postal
Ou até de identidade,
Sempre era menos mal.
E poupavas-me o teu elogio fúnebre,
Que é a pior das missões
Que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me
(Mas eu não quis crer)
Que tinhas sido morto,
Sem honra nem glória,
Depois de cumprido o teu dever
Para com a Pátria
Que te foi madastra,
Cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
No mar da Palha da tua infância!
Já muito depois
Dos últimos guerreiros do império,
Terem feito o espólio de todas as guerras
E o relatório da sua errância
Desde Quinhentos.

No século passado, meu amigo!...
No século passado, meu irmão!...
Lembro-me do velho Uíge,
Da velha Companhia Colonial
De Navegação,
Nos ter devolvido a terra,
À nossa cidade e capital,
Nas praias de Alcântara,
No cais da saudade,
No cais de pedra
Donde partíramos,
Quase às escondidas,
Vindos do comboio nocturno e soturno
De Santa Margarida.

Não sei quem te esperava
Nesse dia 22 de Março de 1971,
Mas seguramente os mesmos entes queridos
Que me esperavam a mim,
A todos nós,
Que ali, no cais, passávamos à condição
De paisanos.
Vestidas as calças à boca de sino,
E as camisas às florinhas,
Regressávamos ao doce lar,
Com as bugigangas compradas no Taufik Saad
ou na Casa Gouveia,
E à rotina das nossas vidas,
Insignificantes.
E a uma outra guerra,
A da lufa lufa do quotidiano.
Tu tinhas um lar,
Todos tínhamos um lar,
Uma família, alguns um emprego,
Muitos uma namorada ou noiva à sua espera…

Mas eu o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ?
Tiveste filhos ?
Não tiveste tempo de ser bom filho,
Nem bom pai,
Muito muito menos avô…

Nunca mais voltei a rever-te,
Em todos estes anos,
Em que tantas coisas aconteceram,
Para o pior e o melhor,
Na nossa Pátria,
Uma palavra, repara,
Que saiu do léxico dos tugas,
E já não se usa mais…

A imagem mais forte, não a última,
Que retenho de ti,
É a do menino e moço
Que saiu, fardado, garboso,
Da casa de seu pai e sua mãe…
É a do puto reguila,
Quiçá rebelde,
Temperamental,
Belicoso mas generoso,
Da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
O desenrascanço,
Que a vida era dura para os homens
Da CCAÇ 12,
Brancos e pretos.

Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love
!)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,
Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

Foi esse fado que te matou,
Essa maldita, tóxica, adrenalina,
Que trouxeste do Geba e do Corubal.
E que te impedia de parar para pensar,
Simplesmente parar,
Simplesmente pensar,
Simplesmente viver,
Simplesmente respirar
À tona de água.


Meu irmão.
Meu camarada.
Meu amigo.
Foi o sobressalto da vida.
Foi a vida em sobressalto.
Foi a vida em saldo.
Foi a alma em dor.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra.
Na guerra dos paisanos.
Foi isso, foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!

Sexta-feira Santa, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 22/4/2011

Originalmente publicado no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné: Vd.poste de 23 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8157 Blogpoesia (146): Elegia para um paisano (Luís Graça)

  

quarta-feira, abril 06, 2011

Blogantologia(s) II - (92): Como era difícil a ternura em 1978

Para a minha Joaninha,
Que continua a ser a minha Joaninha,
E para a mãe da Joaninha,
Que continua a ser a minha… Chita!


Chita, como era difícil a ternura,  em 1978!
A festa, o 25 de Abril,  tinha acabado há muito.
Arrumados o palco,
As cadeiras, 
Os bonecos, 
As palavras de ordem,
Regressávamos a casa e ao trabalho.
Em 1977 o país, pobre de pedir, 
Batia à porta do FMI.
Em 5 de Abril de 1978,
Pelas nove da manhã,
Eu tinha-te deixado à porta do elevador,
No 3º piso do Hospital de Santa Maria.
Feio, 
Lúgubre, 
Medonho, 
Estado-novista.
Estavas grávida.
Gravidíssima.
Não escondias algum cansaço e ansiedade.
Nada do que tinhas planeado, batera certo.
A sala de maternidade do Hospital Egas Moniz,
De quarentena,
Por causa de uma  infecção qualquer.
O parto sem dor, em não sei quantas lições,
Era para esquecer.
A minha presença,  a teu lado,
Um direito que tínhamos conquistado há pouco,
Gorava-se…
A maternidade agora era um fábrica de parir.
Demos um beijo, apressado,
Enquanto a enfermeira te levava para dentro do bunker.

Às duas da manhã do dia 6 tu dormias, pensava eu.
No 6º piso do hospital.
Ou foi o que me disseram ao telefone, à meia noite.
Alguém, sonolento, do outro lado da linha.
Em casa, na Travessa do Possolo,
Eu disfarçava as insónias,
Por entre um bagaço e dois cigarros.
(Ainda se fumava, naquela época!).
Tinha regressado das aulas à noite, no ISCTE.
Não devo ter estado muito atento
Ao que disse o professor.
Por entre a janela da sala de aulas, podia vislumbrar
O mastodonte do edifício do hospital
E lá dentro, naquele imenso formigueiro,
Uma mulher desesperada para dar à luz…
E sentia-me vagamente culpado
Por não poder (ou não querer ?) ser
Totalmente solidário contigo
Que estavas ou ias estar em sofrimento nessa noite,
Para de madrugada pores no mundo um filho,
O teu filho, o nosso filho…
De repente dei conta
Que não estava a escrever ou a dizer
O meu filho,
Não estava ainda a assumir o meu papel de pai,
A parentalidade, como agora se diz…

Afinal, era a ti que essa criança
Estava ligada pelo cordão umbilical,
Era a ti que ela ficaria vinculada para sempre,
E as dores só podiam ser tuas…
Nunca, em época alguma, um homem podia
Sentir nas entranhas, 
Avaliar, 
Conhecer por experiência própria
As dores do parto,  
O anátema bíblico
Do “Parirás com dor!”…
De repente tive um momento de fraqueza,
De dúvida,
De angústia.
Será que vou ser um bom pai ?
Um bom marido ?
Ou o melhor pai ?
Ou o melhor marido ?

Do trabalho, no Terreiro do Paço,
Às 13h15  telefonei  para o hospital…
E não queria acreditar.
Não havia ainda telemóveis,
Em 1978,
No século passado…
Não podia sequer falar contigo.
Por isso, não acreditei.
Pensei que devia haver confusão,
Troca de nomes,
Bagunça à portuguesa,
E até quiçá troca de crianças.
Eu sei lá, o que me terá passado pela cabeça.
Pedi a uma colega de trabalho,
Que me confirmasse.
Olga, de seu nome. Minha amiga.
E ela transmitiu-me o recado:
A parturiente Maria Alice Ferreira Carneiro,
De 32 dois anos,
Casada,
Residente em Lisboa,
Na Travessa do Possolo,
Tinha dado à luz
Uma robusta, perfeita e linda criança,
Do sexo feminino,
Com 3,850 quilos de peso
E  50 centímetros de altura,
De olhos de amêndoa,
Achinesados,
Por volta das 10 e meia da manhã.
Mãe e bebé estavam bem…
E logo confirmei, à tarde,
Que tu e a nossa Joaninha estavam bem.

… Claro que nessa noite,
Sozinho em casa,
Fui festejar com os amigos 
Que convidei.
Os amigos da turma, o Jorge, a Joana...
Coisas de homem, de pai babado,
De macho orgulhoso.
Comemos a tua reserva de bolinhos,
Feitos por ti, com tanto amor,
Para oferecer às visitas.
Sei que nunca me perdoaste esse gesto perdulário!
Mas, acredita, 
Esse crime de lesa-património familiar
Foi por uma boa causa,
Na altura, pela melhor causa do mundo,
Por  ti e pela nossa Joaninha!

Alfragide, 6 de Abril de 2011, trinta e três anos depois…