Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.
Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.
Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os netos aos avós…
Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas,
A sacola às costas,
O bife ao domingo,
O bacalhau com grão às sextas-feiras,
A Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão,
A Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
O supremo heroísmo
De alguém que morre para te salvar,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda,
E tinha mamas grandes
E que viria a morrer, coitada,
De cancro da mama…
Havia as festas, as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
A bolsa lacrimal,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
O carrocel,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Fortes e valentes,
Como os seus pais e os seus avós
tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum.
Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas e os abrunhos,
O pão cozido no forno a lenha.
Comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores.
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dava tudo.
O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede.
Menino com vocação circense,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino.

O Tio Silvano
© Luís Graça (2005)
Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.
Havia ainda o São Sebastião,
Os carros de pão,
As promessas,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’Adelina
Contra o mau olhado,
O samparo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A bruxa de São Bartolomeu,
Ou Samert’meu…
O santo que pisava a seus pés
Um diabo negro como o carvão....
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.
E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado pouco ou nada heróico de patriotas,
Vagamente republicanos,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar.
Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona .
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?
Naquele tempo não havia nem fax
nem o correio azul
nem a Internet
e o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes.
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…
Na minha terra, só conhecia um carteiro,
o ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E, fora disso, meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?
E ao alto, a cima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morreu para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,
Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.

Jogava-se à bola no largo do convento...
© Luís Graça (2005)
Havia a bola, o hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!
Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.
Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
No largo do coreto da minha aldeia.
E a senhora professora Dona Helena
Que te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.
Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra
Que te vem de fora,
Arremessada por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
Que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe
Jogava-se à bola
Domingo à tarde.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe.
E o louco.
E o beato.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O provedor da Misericórdia.
Os ricos, os remediados e os pobres.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.

Quando eu era pequenino... mais a mana
© Luís Graça (2005)
Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
A escola do Conde de Ferreira,
O carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa,
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Havia a vida privada,
Exposta na via pública.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
E a barraca onde só iam os homens feitos.
E as virtuosas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
no lendário Bairro Alto
da formosa Lisboa
onde se ia de camioneta uma vez na vida.
Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca.
E que morreu virgem
e chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.

1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os aliados, as potências do eixo...
Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro
Ou a Marinha Grande
E os operários em contrução.
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
E o Álvaro Cunhal,
foragido,
grande herói da classe operária,
e imnimigo mortal
da Nação.
Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do João:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.
De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
e de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.
Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante.
Lembro-me…
Enfim, havia o Império,
Do Minho a Timor,
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.
O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os amigos, os aliados, as potências do eixo,
a Igreja, Deus e o Diabo...
Um cão uivava aos domingos
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das beiras,
Dos alentejos.
Fugindo da fome
E dos cavalos da GNR.
Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.
Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…
E também nunca gostei do alvoroço do povo,
dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes
Na maré vazia
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas.
Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.
No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinés.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.
Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde.
O Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Chamar a partêra
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.
Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A agonia do porco.
O sangue.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As partidas que os grandes pregavam à pequenada,
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os beijos roubados na palha do trigo,
O peixe a secar ao sol no telheiro,
O pilau que o menino exibia para criada,
O chicharro.
O carapau.
Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos, no Inverno,
Os filhos dos pescadores de Peniche.
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro. As galinhas. A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.
O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.
Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo, mas o teu sangue.
Tomavámos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.
Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai, misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou )
Tinha uma explicação para tudo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite
Junto à Igreja do Castelo.

Eu e os meus queridos nharros (1969)
© Luís Graça (2005)
Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
As meninas da rua do clube,
Aos serões
E meteram-me na camioneta do Claras
(Ou era dos Capristanos ?)
Com destino a Santarém.
Eu e o meu baú,
terrivelmente sozinho
ante os dilemas da fé,
da vida,
da carne
do pecado,
da morte,
da ressurreição eterna
Lá atrás ficava o mar,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem sete, oito, nove, dez anos.
Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.
Revisto em Julho de 2007. L. G.