domingo, novembro 27, 2005

Blogantologia(s) II - (17): Com Brueghel, domingo à tarde

Domingo à tarde…
Sempre detestei os domingos à tarde.
Ou chovia ou fazia vento.
E um cão uivava
Na vinha vindimada pelo Senhor.

Sobretudo nada acontecia
No domingo à tarde.
E até o tempo parava
No relógio da igreja
Da minha aldeia.

Mesmo que a vida tivesse um sentido,
E a gente escutasse a boa nova
Do Padre Escudeiro,
No largo do Convento,
Soalheiro,
A vida ia no sentido inexorável
Dos ponteiros do relógio.
Dextrorsum, aprenderei mais tarde.
Ou, por outras palavras,
Do berço à cova,
Os novos sucedendo-se aos velhos,
Os netos aos avós…

Minto: pelo menos, havia a bola.
As pequenas alegrias da bola.
E a escola,
O bibe às riscas,
A sacola às costas,
O bife ao domingo,
O bacalhau com grão às sextas-feiras,
A Quaresma,
O Senhor dos Passos,
A Paixão,
A Páscoa,
A Ressurreição da Carne,
O supremo heroísmo
De alguém que morre para te salvar,
Jesus Cristo, repete a tua catequista,
Que era linda,
E tinha mamas grandes
E que viria a morrer, coitada,
De cancro da mama…

Havia as festas, as procissões,
A procissão do Senhor Morto,
A bolsa lacrimal,
O incenso ligeiramente enjoativo das missas,
O carrocel,
A charanga dos bombeiros,
A sirene dos bombeiros
Que marcava as doze horas de domingo,
O São Sebastião,
O São João
No 24 de Junho,
O dia em que os camponeses da minha aldeia
Iam à praia molhar os tornozelos,
Os homens de ceroulas arregaçadas,
E elas de saias compridas.
Os matulões
Pegando nos putos a berrar e a espernear
E baptizando-os na água salgada
Do Grande Oceano.
Para que as carnes enrijassem
E os meninos medrassem
E fossem grandes homens,
Fortes e valentes,
Como os seus pais e os seus avós
tinham sido,
Que os bisavós e os tetravós,
Esses, já ninguém sabia quem eram,
Nem de onde tinham vindo.
Na época do trinta e um,
Poucos moços, velhos nenhum.


Ah, os camponeses e os seus burros
Que ainda não estavam em extinção.
Iam aos magotes
Até à praia da Areia Branca
Na festa do São João.
Levavam a trouxa e a merenda,
Os tremoços e as pevides,
As ameixas e os abrunhos,
O pão cozido no forno a lenha.
Comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho,
Misturado com a areia,
Em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores.
Pouca saúde, muita vida,
Que Deus não dava tudo.


O bife ao domingo…
Cheguei a ganhá-lo
No talho do Chico Zeferino,
A tasca ao lado
Onde pontificava a matriarca
Da Tia Clorinda…
Em troca de uma pirueta
Contra a parede.
Menino com vocação circense,
Era de pequenino
Que se torcia o pepino.








O Tio Silvano

© Luís Graça (2005)


Na Praia da Areia Branca,
Pelo São João,
Lembro-me do meu querido tio Silvano,
Carpinteiro e cavaleiro,
Utilizando-me como escudo
Em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de Junho
De novecentos cinquenta e tal
Que passei a ter medo do mar
E prometi a mim mesmo
(promessa de menino!)
Nunca vir a ser
Marinheiro.
Nem moleiro, nem sapateiro,
Nem carpinteiro.

Havia ainda o São Sebastião,
Os carros de pão,
As promessas,
Os leilões,
As rezas, os exorcismos,
As benzeduras da Ti’Adelina
Contra o mau olhado,
O samparo,
A varíola,
A varicela,
A rubéola,
A tosse convulsa…
A bruxa de São Bartolomeu,
Ou Samert’meu
O santo que pisava a seus pés
Um diabo negro como o carvão....
Da peste, da fome, e da guerra
E do bispo da nossa terra,
Libera nos, Domine.


E no 1º de Dezembro,
A banda a tocar
O Tio Zé da Pêra Branca
Que era o hino da Restauração.
E que um punhado pouco ou nada heróico de patriotas,
Vagamente republicanos,
Fazia seu, na minha aldeia,
Para acicatar o Franco e o Salazar.

Tinha-lhe medo, ao cara de pau,
Especado na parede da minha escola
Do Conde de Ferreira,
Olhando-me de soslaio,
Vigiando-me e punindo-me.
De um lado o Tomás
E do outro o Salazar.
Ou era ainda o Craveiro Lopes
Ou até o Óscar Carmona .
Ou quiçá o façanhudo do Gomes da Costa?

Naquele tempo não havia nem fax
nem o correio azul
nem a Internet
e o tempo era uma eternidade!
Se calhar nuncam souberam,
Lá na minha terra,
Que o Carmona tinha morrido em 1951,
E que no Palácio Cor de Rosa
Sucedera-lhe o gentil Craveiro Lopes.
E depois o Cabeça de Abóbora, em 1958…

Na minha terra, só conhecia um carteiro,
o ti Arrrrr…nesto,
Que era mais salazarista do que Salazar,
E, fora disso, meu amigo,
Monárquico dos quatro costas,
Ou não fora ele
Afilhado da Viscondezinha!
E havendo só um carteiro
Como é que se poderiam distribuir
Todas as notícias do mundo, as boas e as más,
Pelas casas das pessoas, boas e más ?


E ao alto, a cima do quadro negro,
O Cristo crucificado,
O tal que morreu para me salvar.
Era de pequenino
Que se torcia o pepino,

Todos os dias da semana,
Incluindo o domingo à tarde.
Na escola, na catequese,
Na rua e na igreja,
Para se ser um menino bem comportado.
E um português digno do seu glorioso passado.



Lourinhã: finais dos anos 40.
Jogava-se à bola no largo do convento...
© Luís Graça (2005)











Havia a bola, o hóquei em patins,
O Campeonato Mundial de Montreux,
E pouco mais.
Ouvia-se o relato do hóquei,
Debaixo dos lençóis,
Numa galera inventada pelo Zé Pestana
Que há-de emigrar para o Canadá,
E registar patentes das suas engenhocas!

Jogava-se à bola
Em Portugal
Quando nós éramos pequeninos.
Na era dos cinco violinos.
Jogávamos à bola
Os de xanatas ou botas
Contra os de pé descalço
No largo do coreto
Depois da missa matinal
E do peixe salgado com batatas.
Que era a comida dos pobres
No Inverno da minha aldeia.
Os da aldeia de baixo contra os de cima.
Os da Lourinhã contra os Casal Novo
E da Pedreira,
E que eram muito mais matulões do que eu.
Os da Terra contra os da Lua.
Os Travassos contra os Jesus Correia.

Jogava-se hóquei
Com um pedra esquinada
E de pau de tramagueira
E botas de couro cardadas
No largo do coreto da minha aldeia.
E a senhora professora Dona Helena
Que te punha a vigiar e a punir
A turma dos insurrectos,
Essa chusma de insectos,
De repetentes, de analfabetos,
De quem a Nação nunca viria a ter orgulho.

Em frente ao quadro preto,
Com uma giz branco na mão,
E o ponteiro na outra,
Qual garboso lanceiro de Aljubarrota!
E a pedra
Que te vem de fora,
Arremessada por um matulão.
Podia ter-te morto,
O safado,
O moinante,
O ressaibiado,
Que odiava a escola,
A civilização, o progresso,
Que só queria a derrota
Do Projecto de Educação Nacional,
Com os meninos
Que lá iam cantando e rindo,
Como no nosso Livro da Terceira Classe


Jogava-se à bola
Domingo à tarde.
Os graúdos.
Os solteiros contra os casados.
Os vivos contra os mortos.
O pobres contra os pobres.
A bola.
Os bufos.
As disputas entre aldeias vizinhas.
Os do Nadrupe contra os do Sobral.
O alvoroço do povo.
O cabo chefe.
E o louco.
E o beato.
Os analfabetos contra os espertos.
E o porco no estertor da morte.
O regedor.
O provedor da Misericórdia.
Os ricos, os remediados e os pobres.
E a guarda republicana a cavalo.
E o rei, deposto.





















Quando eu era pequenino... mais a mana

© Luís Graça (2005)



Não havia televisão.
Havia Deus, a Pátria e a Família
E pouco mais.
A escola do Conde de Ferreira,
O carro de praça do Ti’ Adelino,
A igreja do castelo,
A alcova,
O Poço Novo
Onde as mulheres iam lavar a roupa,
Os segredos do confessionário,
Mal guardados a sete chaves.
Havia a vida privada,
Exposta na via pública.
Havia ainda a cadeia da comarca
No largo do convento.
E por detrás das grades,
Um facínora das Cezaredas,
Com que nos metiam medo,
À noite ao deitar.
O papão.
O lobo mau.
O inferno.
A via eterna.
A danação da alma.
E o pai-patrão de todos nós.
E a feira anual.
E a barraca onde só iam os homens feitos.
E as virtuosas mães
Que por ali passavam,
Por engano,
Persignavam-se,
Coravam
E lançavam olhares de fogo,
Como os dragões.
Um dia hei-de descobrir
O terrível mistério
Que escondia a barraquinha da feira
Do tempo em que ainda havia
Casas de passe no meu país,
E os famosos aventais de pau
no lendário Bairro Alto
da formosa Lisboa
onde se ia de camioneta uma vez na vida.



Ah!, e o respeitinho
Que era muito bonito!
E o comandante dos bombeiros
E o legionário,
O senhor Fernando Pessoa,
Sósia do original,
Escriturário camarário,
Que era chefe da Legião Portuguesa,
E que não fazia mal a uma mosca.
E que morreu virgem
e chupado como uma carocha!
Mais o senhor capitão,
Presidente do município,
Que inaugurava os fontanários
Do Estado Novo.
Havia ainda a charanga no coreto.
Mas isso era em Agosto
Na festa da Nossa Senhora da Conceição.





















1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os aliados, as potências do eixo...



Minto: eu nunca vira a GNR
A cavalo.
Isso era no Barreiro
E eu ainda não sabia que existia o Barreiro
Ou a Marinha Grande
E os operários em contrução.
Muito menos Peniche,
Ali tão perto,
E o Álvaro Cunhal,
foragido,
grande herói da classe operária,
e imnimigo mortal
da Nação.
Ou sequer o Tarrafal.
O meu pai nunca me falou do Tarrafal.
Falava-me do Monte Cara, do Lazareto,
Os tubarões, a morna, a coladera,
O Mindelo, São Vicente,
A ilha onde até as pedras tinham venéreo,
A fome do Joãozinho,
A morte do João:
Nosso cabo, bó impedido
Joãozinho morreu.
De fome, da grande fome,
Da fome milenar, intrínseca,
De Liberdade,
Igualdade,
Fraternidade,
E de pão de milho
e de pão de trigo misturado com centeio.
E do pilão
E do crioulo.

Lembro-me do Mousinho de Albuquerque,
Navio da nossa orgulhosa marinha mercante.
Lembro-me…
Enfim, havia o Império,
Do Minho a Timor,
Desmesurado para tão parcas gentes.
Lembro-me das cartas apaixonadas
Que o meu pai escrevia à minha mãe,
Com o carimbo de Cabo Verde:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Assim que eu sair da tropa,
Trataremos do casamento.


O 1º Cabo Henriques, nº 188/41,
expedicionário em São Vicente.
1941-43.
Para defender a Pátria
contra tudo e contra todos:
os amigos, os aliados, as potências do eixo,
a Igreja, Deus e o Diabo...

Um cão uivava aos domingos
Enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor
Descansavam o corpo, magoado.
Os malteses, os ratinhos.
Vinham em magotes das beiras,
Dos alentejos.
Fugindo da fome
E dos cavalos da GNR.



Eu ia para o rio brincar
Apanhar as bolotas dos carvalhos,
Enquanto o meu pai jogava
A ponta esquerda.
Coitado do sapateiro,
Nunca passou da cepa torta.
Por jogar à bola
E a ponta esquerda
Num campo pelado.
No campo pelado da vida.
No campo de jogos da minha terra.
Ao domingo à tarde.

Nasci algures a oeste
De qualquer coisa.
Não vem no mapa-mundo
A minha terra
Nem no registo civil
Me puseram a nascer nela.
Sou da vila,
Logo vilão,
E ao vilão, cuidado,
Ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão…
E também nunca gostei do alvoroço do povo,
dos ajuntamentos, dos loucos…
Livra-te do louco e do alvoraço do povo.
Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro…
Nem de jogar à bola.
Nem do nome da minha terra.
Nem de ver matar o porco.
Fui guarda-redes.
Efémero.
De equipas efémeras.
Nas férias grandes
Na maré vazia
No Paimogo.
A baliza, desmedida,
Com as Berlengas, ao fundo.
O farol, recortado, entre as brumas.
Podia ter sido um filme com happy end,
Mas não foi.
Nunca me perguntei porquê,
Por falta de ensejo ou de desejo.

No Paimogo, os padres
Jogavam à bola de sotaina preta.
E eu jogava o pião,
No adro da igreja,
Com ar de menino bem comportado.
Como o Marcelino, pão e vinho,
Do cinematógrafo.
Domingo à tarde não havia ainda matinés.
Entrava-se no cinema, escondido, à noite,
Debaixo do capote do papá.
Minto: nunca tratei o meu pai por papá.
Que a rica teve um menino,
E a pobre pariu um moço.

Debulhava-se o trigo e o centeio
No campo de jogos
Do Nadrupe.
Chamava-se assim a minha aldeia,
A terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.
Brueghel podê-la-ia ter pintado
Num qualquer domingo à tarde.
O Ti’ Adolfo, de carroça,
Indo à vila, acossado pela hora do parto,
Chamar a partêra
Foi assim que eu nasci no Nadrupe.

Lembro-me da matança do porco.
Do facalhão com que matavam o porco.
O alvoroço do povo.
Os gritos do porco.
Os uivos do louco.
A agonia do porco.
O sangue.
A casa farta.
Os corpos a sangrar de saúde.
As partidas que os grandes pregavam à pequenada,
As maçãs reinetas metidas na palha,
Os beijos roubados na palha do trigo,
O peixe a secar ao sol no telheiro,
O pilau que o menino exibia para criada,
O chicharro.
O carapau.

Quatro tostões o par, o chicharro,
No verão de todas as farturas.
Vinham em bandos, no Inverno,
Os filhos dos pescadores de Peniche.
Estender a mão à caridade
Dos camponeses,
De barriga farta,
No pós-guerra,
Em que eu nasci.
O chiqueiro. As galinhas. A retrete.
As batatas comidas em comum.
Numa travessa que tinha um cavalinho ao meio
E que ainda não era o cavalo da GNR.
Louça de Sacavém, barata,
Para o povo,
O terceiro estado.
E nada de alvoraçá-lo.
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer, enterrai-o.

O vinho dava de comer
A um milhão de camponeses
Que eram todos os habitantes da minha aldeia.
Lembro-me de vomitar a ceia
Quando o meu pai chegou
A anunciar a vinda de mais um herdeiro,
O terceiro.
Era bebé
E chamava-se… Maria do Rosário.


Se há uma idade da inocência
É quando se sobe à figueira
Da minha tia da Quinta do Bolardo
E se parte a cabeça
E se descobre o sangue,
Não o de Cristo, mas o teu sangue.
Tomavámos banho, nus,
Nas tinas de fazer o vinho,
Os meninos do campo e da cidade.
E dormíamos com primas mamalhudas.

Até um dia em que no calendário
Deixou de haver o domingo à tarde.
Morreu o tio Silvano,
De morte súbita,
Assim de repente,
Em plena força da idade.
Lembro-me dos gritos lancinantes
Da Maria Luísa.
O último adeus, o cemitério.
Eu não sabia o que era morte.
Só a do porco.
E Deus era pai, misericordioso.
E o Padre Escudeiro
(que sucedeu ao Tobias
O que te baptisou )
Tinha uma explicação para tudo.
Mas eu nunca mais fui capaz
De ir brincar à noite
Junto à Igreja do Castelo.





















Eu e os meus queridos nharros (1969)

© Luís Graça (2005)



Deixou de haver domingo à tarde.
Bordaram-me o enxoval,
As meninas da rua do clube,
Aos serões
E meteram-me na camioneta do Claras
(Ou era dos Capristanos ?)
Com destino a Santarém.
Eu e o meu baú,
terrivelmente sozinho
ante os dilemas da fé,
da vida,
da carne
do pecado,
da morte,
da ressurreição eterna
Lá atrás ficava o mar,
O piar da coruja
Na torre da Igreja do Castelo,
os fogos fátuos no cemitério.
Os terrores do inferno,
E o moinho do Tio Xico Marteleira
E os ventos que sopravam nas cabaças,
E amante do moleiro
Que vigiava os putos
Que lhe iam roubar as peras e as ameixas.
A magia, enfim,
Das coisas quando se tem sete, oito, nove, dez anos.

Levei o Brueghel comigo.
Creio que o perdi para sempre
Quando me senti estrangeiro como o Camus,
Na minha própria terra.
Enterrei-o definitivamente
Nas bolanhas da Guiné,
Entre os mais pobres dos pobres,
Os meus camponeses fulas pretos da Guiné.

Revisto em Julho de 2007. L. G.

1 comentário:

Anónimo disse...

é sempre emocionante ler algo sobre a nossa terra...
ainda para mais quando se fala de um tio nosso (o saudoso tio Zé Pestana - que penso ser o mesmo)e de um jogo que desde miudo ouvia o meu tio rodrigo contar as suas aventuras do jogo de hoquei no largo da igreja, ao pé do coreto (já desaparecido, infelizmente)...

um grande abraço de um filho do Nadrupe, morador do Largo da Igreja.

Nelson Ribeiro.

(nelson.n.ribeiro@gmail.com)