terça-feira, dezembro 20, 2005

Blogantologia(s) II - (23): As intermitências do amor

Na bicha das cinco da tarde
No pára arranca
Do trabalho para casa
Pára não pára
Arranca não arranca
A vida
A vida tão cara
Tão complicada às vezes
À tarde
Uma mulher só na cidade
Formiguinha
No grande formigueiro humano
Ouves o sax do velho Luís Morais (1)
Evocando as cores e os sons
Das impossíveis ilhas tropicais
Às cinco da tarde
Na RDP África
Lura essa voz magnífica (2)
E amor ca tem
O amor que não chega
Por e-mail
Rato toupeira
Nas autoestratadas
Das linhas de montagem
Onde pára arranca a vida
Ah! que pena
Já não se escrevem mais cartas de amor
Diz o locutor de serviço
Com selo e lacre
E envelope fechado
E carimbo do correio
Para certificar a data-hora
Dos nossos desencontros
Aqui e agora
Ou de alguém que se foi embora.
Tiram-te a pele o tutano
De permeio
E não há coração que aguente
O pára arranca da bicha
Do trabalho para casa
Um homem e uma mulher sós na cidade
Na mesa a toalha barata
Aos quadrados
A sopa fria
E os amores de verão
E no outono a depressão
E se há inferno é no inverno
A solidão
A caixa do correio cheia
Por causa dessa coisa do spam
Desesperando por esperar
Um toque um e-mail um sinal
A cama os lençóis desfeitos
À tarde demasiado tarde para amar
No Monte Abraão (3)
Um homem e uma mulher
No pára arranca da vida
Na segunda circular da cidade sitiada
A paixão de quarentena
O corpo exangue
A doença endémica do amor
Proibido amar
Diz o semáforo
Multicolor
E não é amor é dor
Diz a morna
Que o B.Leza faria cem anos (4)
Se ele ainda hoje fosse vivo
Lá no Mindelo piquinino
Às cinco da tarde a casa vazia
Os filhos que partiram
Mas deixaram cá as fotos
De quando eram bebés
E ternurentos
E eram filhos de sua mãe
Ah! as intermitências da liberdade vigiada
O guarda-mor da saúde
Mantendo tenso o cordão sanitário
Que estrangula a vida
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer enterrai-o
A pele esticada o tutano chupado
A merda de vida
Que o aumento da esperança de vida te traz
Sobre os carris dos quilómetros
Do teu têgêvê do futuro
As contas por pagar
A carreira amorosa congelada
Os cheques que vencem
Antes de a paixão esfriar e morrer
Ao virar da última rua do quarteirão
E o Ribeiro Sanches (5)
Físico-mor do reino no exílio
A dizer-te que não há cura
Para os males de amor
E se a paixão é doença
Não sei o que fazes aqui
Parada na estúpida estrada
Que te leva do trabalho para casa
A casa vazia
A sopa fria no prato
O trabalho sem pica
A vida sem sal
Cada meco a falar sozinho
No Comboio do Cacém
No autocarro da Carris
Na CRIL na CREL (6)
No carro comprado a prestações
Os amigos de Alex cada um para seu canto
E o baile dos anos sessenta
Que ficou para as calendas gregas
As flores no cabelo
O Make Love Not War
A agenda sobrecarregada
E a tua velha senhora no fim da estação da vida
Em casa à tua espera
O comboio que regressa à tua África perdida
Os erros meus as doces ilusões
Terríveis as decepções
Os amanhãs que não cantam
O mundo que a gente queria mudar de repente
Assim com um toque de varinha mágica
A crise de valores
A profusão de cores
E a muamba que já não é mesma muamba
De manhã ao acordar
Para mais um dia
Para afivelar a máscara
E desempenhar os papéis
Que esperam de nós os outros
Les autres c’est l’enfer (7)
Não te adianta chorar sobre o leite derramado
Ou dizer que fizeste tudo errado
O homem o curso os filhos o país de retorno
O século ao dobrar do milénio
Por que é esta é a tua estória
E o teu tempo e o teu espaço
E até pode ter um final feliz
A tua telenovela das cinco
No pára arranca da vida
Só depende do autor ou da autora
Do guião
E do tempo de reflexão
Que antecede a acção
Deixa o carro na garagem
Compra um passe social
Vai a pé ou de metro
Atira a matar
Direito ao coração
Que diz que não aguenta
Mais uma paixão aos cinquenta
E tal
Querida amiga afinal
Fomos feitos para amar
E não há volta a dar-lhe
Se há uma antídoto para a morte
É o amor escreve o Saramago
E eu acho que ele tem razão
Mas o meu livro de culinária existencial
Diz para lhe acrescentares
Uma pitada de humor quê bê
Ao amor
Se conseguires rir-te do amor
Estás salva.
Carpe diem (8)
Compra um bom vinho tinto
E põe um cêdê
Ouve a tua Mariza Monte
Ou grita à janela
Do Monte
Abraão
Porque gritar faz bem
Gritar à janela a plenos pulmões
Liberta a tua energia negativa
Esses miasmas esses iões
Senta-te depois no sofá
Desliga a televisão
E põe a máscara da tua serenidade
Dá tempo de antena a ti própria
Que a vida não se delega
Ou então pinta um grafito
Nas muralhas da cidade
Vi há dias um
- Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só pode ser de um adolescente
Apaixonado doente
No teu caso, eu sugeria uma pequena emenda
- Amor ? Amor ?... Sou eu!
E ninguém morre louco de amores intermitentes
No píncaro do verão
No pára arranca
Do trabalho para casa
E da casa para o trabalho
Dizem que a vida é bela
E que somos nós que damos cabo dela

Luís Graça
__________

(1) Músico, saxofonista-clarinetista do Mindelo, Cabo Verde, desaparecido em 2002
(2) Cantora portuguesda, de ascendência cabo-verdiana. Canta em crioulo.
(3) Zona habitacional de Queluz, concelho de Sintra, arredores de Lisboa
(4) O maior compositor de mornas, nascido no Mindelo, Cabo Verde
(5) O maior médico português do Séc. XVIII, um 'homem das Luzes'
(6) CREL= Cintura Rodoviária Externa de Lisboa; CRIL= Cintura Rodoviária Interna de Lisboa.
(7) "O inferno são os outros" (conhecida frase do francês Jean-Paul Sartre, na sua peça de teatro Huis-clos)
(8) Expressão latina: goza dos dias


Querida M(a):

Não sabíamos o que te dizer
Com princípio meio e fim
A pretexto dos teus anos
Ou do último mês do ano de 2005.
Mas se fosse um recado
A deixar no gravador do telefone
Seria uma coisa assim.

Para alguma coisa, afinal, hão-de servir os amigos
Que não gostam de ver os seus amigos tristes.
Um grande beijoca destes teus amigos de Alex.
A happy, healthy new year!
Vamos fazer figas para que assim seja.
E sobretudo fazer para que assim seja.
Vais ver que a dor vai passar.
E que a primavera há-de chegar.

Luís & Alice,
Alfragide, 15 de Dezembro de 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

Puxa que fôlego você tem para escrever, hein!!! Acho seu blog muito interessante. Ainda não tive tempo de ler tudo, mas tenho feito aos poucos. Abraços!