Na bicha das cinco da tarde
No pára arranca
Do trabalho para casa
Pára não pára
Arranca não arranca
A vida
A vida tão cara
Tão complicada às vezes
À tarde
Uma mulher só na cidade
Formiguinha
No grande formigueiro humano
Ouves o sax do velho Luís Morais (1)
Evocando as cores e os sons
Das impossíveis ilhas tropicais
Às cinco da tarde
Na RDP África
Lura essa voz magnífica (2)
E amor ca tem
O amor que não chega
Por e-mail
Rato toupeira
Nas autoestratadas
Das linhas de montagem
Onde pára arranca a vida
Ah! que pena
Já não se escrevem mais cartas de amor
Diz o locutor de serviço
Com selo e lacre
E envelope fechado
E carimbo do correio
Para certificar a data-hora
Dos nossos desencontros
Aqui e agora
Ou de alguém que se foi embora.
Tiram-te a pele o tutano
De permeio
E não há coração que aguente
O pára arranca da bicha
Do trabalho para casa
Um homem e uma mulher sós na cidade
Na mesa a toalha barata
Aos quadrados
A sopa fria
E os amores de verão
E no outono a depressão
E se há inferno é no inverno
A solidão
A caixa do correio cheia
Por causa dessa coisa do spam
Desesperando por esperar
Um toque um e-mail um sinal
A cama os lençóis desfeitos
À tarde demasiado tarde para amar
No Monte Abraão (3)
Um homem e uma mulher
No pára arranca da vida
Na segunda circular da cidade sitiada
A paixão de quarentena
O corpo exangue
A doença endémica do amor
Proibido amar
Diz o semáforo
Multicolor
E não é amor é dor
Diz a morna
Que o B.Leza faria cem anos (4)
Se ele ainda hoje fosse vivo
Lá no Mindelo piquinino
Às cinco da tarde a casa vazia
Os filhos que partiram
Mas deixaram cá as fotos
De quando eram bebés
E ternurentos
E eram filhos de sua mãe
Ah! as intermitências da liberdade vigiada
O guarda-mor da saúde
Mantendo tenso o cordão sanitário
Que estrangula a vida
Sangrai-o e sangrai-o
E se morrer enterrai-o
A pele esticada o tutano chupado
A merda de vida
Que o aumento da esperança de vida te traz
Sobre os carris dos quilómetros
Do teu têgêvê do futuro
As contas por pagar
A carreira amorosa congelada
Os cheques que vencem
Antes de a paixão esfriar e morrer
Ao virar da última rua do quarteirão
E o Ribeiro Sanches (5)
Físico-mor do reino no exílio
A dizer-te que não há cura
Para os males de amor
E se a paixão é doença
Não sei o que fazes aqui
Parada na estúpida estrada
Que te leva do trabalho para casa
A casa vazia
A sopa fria no prato
O trabalho sem pica
A vida sem sal
Cada meco a falar sozinho
No Comboio do Cacém
No autocarro da Carris
Na CRIL na CREL (6)
No carro comprado a prestações
Os amigos de Alex cada um para seu canto
E o baile dos anos sessenta
Que ficou para as calendas gregas
As flores no cabelo
O Make Love Not War
A agenda sobrecarregada
E a tua velha senhora no fim da estação da vida
Em casa à tua espera
O comboio que regressa à tua África perdida
Os erros meus as doces ilusões
Terríveis as decepções
Os amanhãs que não cantam
O mundo que a gente queria mudar de repente
Assim com um toque de varinha mágica
A crise de valores
A profusão de cores
E a muamba que já não é mesma muamba
De manhã ao acordar
Para mais um dia
Para afivelar a máscara
E desempenhar os papéis
Que esperam de nós os outros
Les autres c’est l’enfer (7)
Não te adianta chorar sobre o leite derramado
Ou dizer que fizeste tudo errado
O homem o curso os filhos o país de retorno
O século ao dobrar do milénio
Por que é esta é a tua estória
E o teu tempo e o teu espaço
E até pode ter um final feliz
A tua telenovela das cinco
No pára arranca da vida
Só depende do autor ou da autora
Do guião
E do tempo de reflexão
Que antecede a acção
Deixa o carro na garagem
Compra um passe social
Vai a pé ou de metro
Atira a matar
Direito ao coração
Que diz que não aguenta
Mais uma paixão aos cinquenta
E tal
Querida amiga afinal
Fomos feitos para amar
E não há volta a dar-lhe
Se há uma antídoto para a morte
É o amor escreve o Saramago
E eu acho que ele tem razão
Mas o meu livro de culinária existencial
Diz para lhe acrescentares
Uma pitada de humor quê bê
Ao amor
Se conseguires rir-te do amor
Estás salva.
Carpe diem (8)
Compra um bom vinho tinto
E põe um cêdê
Ouve a tua Mariza Monte
Ou grita à janela
Do Monte
Abraão
Porque gritar faz bem
Gritar à janela a plenos pulmões
Liberta a tua energia negativa
Esses miasmas esses iões
Senta-te depois no sofá
Desliga a televisão
E põe a máscara da tua serenidade
Dá tempo de antena a ti própria
Que a vida não se delega
Ou então pinta um grafito
Nas muralhas da cidade
Vi há dias um
- Amor ? Amor ? … Amor és tu!
Só pode ser de um adolescente
Apaixonado doente
No teu caso, eu sugeria uma pequena emenda
- Amor ? Amor ?... Sou eu!
E ninguém morre louco de amores intermitentes
No píncaro do verão
No pára arranca
Do trabalho para casa
E da casa para o trabalho
Dizem que a vida é bela
E que somos nós que damos cabo dela
Luís Graça
__________
(1) Músico, saxofonista-clarinetista do Mindelo, Cabo Verde, desaparecido em 2002
(2) Cantora portuguesda, de ascendência cabo-verdiana. Canta em crioulo.
(3) Zona habitacional de Queluz, concelho de Sintra, arredores de Lisboa
(4) O maior compositor de mornas, nascido no Mindelo, Cabo Verde
(5) O maior médico português do Séc. XVIII, um 'homem das Luzes'
(6) CREL= Cintura Rodoviária Externa de Lisboa; CRIL= Cintura Rodoviária Interna de Lisboa.
(7) "O inferno são os outros" (conhecida frase do francês Jean-Paul Sartre, na sua peça de teatro Huis-clos)
(8) Expressão latina: goza dos dias
Querida M(a):
Não sabíamos o que te dizer
Com princípio meio e fim
A pretexto dos teus anos
Ou do último mês do ano de 2005.
Mas se fosse um recado
A deixar no gravador do telefone
Seria uma coisa assim.
Para alguma coisa, afinal, hão-de servir os amigos
Que não gostam de ver os seus amigos tristes.
Um grande beijoca destes teus amigos de Alex.
A happy, healthy new year!
Vamos fazer figas para que assim seja.
E sobretudo fazer para que assim seja.
Vais ver que a dor vai passar.
E que a primavera há-de chegar.
Luís & Alice,
Alfragide, 15 de Dezembro de 2005
terça-feira, dezembro 20, 2005
quinta-feira, dezembro 08, 2005
Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné
Originalmete publicado em Luís Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-Fora-nada, postdt de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite!
Excertos do Diário de um Tuga. L.G.
Bambadinca,13.2.1971
Esquecer a Guiné
Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe (1).
As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.
Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Da Noite das Facas Longas.
Esquecer a Guiné... por uma noite!
A matilha de bulldogs (ou cães grandes) (2)
Gozando as delícias do sistema
No ar condicionado de Bissau.
O pobre do Pastilhas (3)
Que, à hora do lusco-fusco,
Se torna um animal acossado pelo medo,
Rondando os abrigos subterrâneos.
Os olhos de gazela morta
Dos putos
Que andam à cata de comida
Nos bidões do lixo da tropa.
A bela futa-fula (4)
Fugida do harém
Do cornudo comandante de milícias.
Os milhões de unidades de penicilina
Que um gajo paga
Em troca do corpo quente de uma bajuda (5)
Que fode com um batalhão inteiro.
Os páras (6)
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impates,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres.
A histeria do Major Eléctrico (7):
"Ah, se isto fosse uma fábrica,
Seus sacanas!...
Eu despedia-vos a todos,
Cambada de malandros!"...
(Referia-se ao meu grupo de nharros
Que abriam trincheiras
No perímetro do aquartelamento de Bambadinca.
De tronco nu.
Com cinquenta graus ao sol
E 100% de humidade!...
Para o filho da puta
Poder dormir descansado,
À noite, na cama,
Num colchão de espuma,
Sem o pesadelo de um turra
A entrar-lhe pelo quarto adentro,
Armado de Kalashnikov!).
Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas(8).
Que um gajo tem que chegar
Com uns trocos a casa
Para poder casar.
O terror das crianças balantas (9),
Nascidas no mato (10),
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das Gê-Eme-Cês
Do tempo da guerra da Coreia (11).
O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher (12).
É a Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.
E o médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados (13)
E aspirina
Para os pretos.
Mais as lâminas de aço dos rockets (14),
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.
O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm nos cardápios
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa, à Estrela,
É coisa boa,
Apanhas o Eléctrico 28,
Dos Prazeres à Graça,
Dos prazeres de graça,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial, ou oficiosa,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Chico-esperto, portuga,
Vítima da hepatite!
Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos,
Já feitos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.
Mas aos catorze anos
Tu já sabias desta guerra;
Aos dezasseis, que não havia escapatória;
E, aos dezoito,
Que já estavas apanhado na rede
Como um cão...
Tudo somado vais fazer
Trinta e três meses (!)
De vida militar
(Vinte e dois na Guiné!),
Se é que chegas são e salvo
Ao próximo mês de Março
De mil novecentos
E setenta e um.
E que até lá chega finalmente,
O teu salvador,
O teu periquito (15),
O desgraçado que te vem render
E arriar a bandeira das quinas.
Esquece a Guiné, meu tuga.
A guerra.
A aprendizagem da morte.
A inocência
Que se perde para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem,
Ao nosso lado.
E a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
Os restos dos cadáveres humanos.
Num dólmen camuflado.
Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão frondoso
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Oito de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Por defeito de fabrico,
Disse o relator do relatório.
Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioteiros,
Estúpiuda verborreia,
E a bandeira verde-rubra
Dos tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.
Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva.
Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses (16) batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte...
O capim.
O capim alto.
A seara da savana arbustiva.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue
Na mata.
Os panfletos de acção psicológica
Que não chegaram ao seu destinatário.
Espalhados pelo pânico de uma emboscada.
Um velho recorte de jornal,
Encontrado num acampamento do IN,
Com a fotografia de Che Guevara
Na Guiné em 1965.
A propaganda revolucionária.
Multiplicar as Guinés e os Vietnames.
Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador (17),
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão (18)
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro.
Esquecer a Guiné... por umas horas!
O jogo da roleta russa de ir e voltar,
De Bambandica ao Xime.
Numa lata de uma autometralhadora Daimler.
Só tu e o condutor.
Desenfiados.
Mais o Tchombé,
A mascote da companhia, o puto.
Sem escolta nem picagem.
Sem conhecimento de ninguém.
Só para ires beber uma cerveja.
Só para matares o tédio.
Só para desafiares o medo.
Ou para exorcizares os teus fantasmas.
Por pura estupidez.
Ou por simples bravata.
Esquecer a Guiné...
O Básico (19)
Que tem alucinações
E vê elefantes à noite
Junto ao arame farpado.
A história que te contaram,
Do tipo de Guileje (20)
Que deu em doido,
A pescar peixes dentro de uma tina.
O proxeneta do Vermelhinha (21)
Que comprou uma bajuda
E pô-la a render.
As alfaces que crescem, viçosas,
No antigo cemitério (22) de Bambadinca.
O furriel felupe (23), caçador de cabeças.
O Uloma, com as trinta e tal cabeças, dizia-se,
Conservadas em frascos de álcool.
O negócio que o nosso barbeiro e fotógrafo fez
Com a horrível foto de uma cabeça,
Cortada à catana.
A cabeça de um pobre camponês
Que lavrava a sua lala.
No sítio errado, à hora errada.
A derradeira salada de atum, cebola e tomate
E o derradeiro copo de vinho verde
Que se partilha com um camarada e um amigo.
Um homem que vai morrer.
À hora marcada.
Dentro de três ou quatro horas.
Em vinte e seis de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Qualquer um de nós,
Que está aqui à volta da mesa,
Pode vir a morrer
Na próxima hora.
Na próxima operação.
Por que há sempre uma hora
Para morrer.
De um tiro no coração,
De um roquetada,
De um fino estilhaço
De uma mina antipessoal,
Da explosão de uma granada de morteiro...
O jovem capitão de artilharia,
Vinte e quatro anos,
Acabado de sair da Academia Militar,
Que se recusa a sair com os seus homens
Para a Ponta do Inglês (24),
[Depois do desastre
De 26 de Novembro de 1970] (25).
O filho da puta do segundo comandante
Que lhe manda dizer, alto e som:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
Nem que seja a reboque de uma GMC!"...
Meu Deus,
Que pedaço de inferno foi este
Que me coube em vida, na terra ?
__________
Notas (L.G. / Lisboa. 25 de Abril de 2005):
(1) Sinchã Jobel, Zona de intervenção do Comandante-Chefe, a norte do Rio Geba, sob controlo da guerrilha (ou IN, abreviatura de inimigo)
(2) Designação depreciativa do pessoal militar afecto ao Comandante-Chefe, em Bissau.
(3) Referência à figura do enfermeiro militar.
(4) Uma das etnias da Guiné, aparentada com os fulas. Em geral, as mulheres futa-fulas eram de uma grande beleza.
(5) Rapariga, mulher solteira (por oposição a mulher grande, casada).
(6) Diminuitivo de tropas paraquedistas
(7) Alcunha de um célebre major, segundo comandante do Batalhão sedeado em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70) (se a memória me não falha).
(8) Garrafa de cerveja de litro. A sua forma cónica na parte superior sugeria uma granada de RPG (bazuca).
(9) Uma das principais etnias da Guiné de onde eram recrutados muitos dos combatentes do PAIGC.
(10) Em linguagem de caserna, mato significava território fora do controlo das NT (nossas tropas). Também possou a quer dizer "muito", "bué"...
(11) Viaturas de transporte militar, de fabrico norte-americano (General Motors Company), de grande potência e de elevado consumo de combustível.
(12) Enfermeira paraquedista.
(13) Vítimas do stresse de guerra. Também conhecidos por "cacimbados" "apanhados do clima". O termo stresse ainda não fazia parte, na época, do nosso vocabulário (e muito menos a expressão stresse pós-traumático de guerra).
(14) Granadas-foguetes. Os RPG (rocket-propelled grenades), de fabrico russo ou chinês, eram uma das armas mais timídas pelas NT, em situações de combate como as emboscadas.
(15) Alusão à farda, novinha em folha, dos novatos que nos vinham render (A generalidade dos quadros da CCAÇ 12 eram de origem metropolitana e de rendição individual).
(16) Fogo de artilharia lançado a partir dos aquartelamentos das NT (ou unidades de quadrícula). Em geral os obuses eram de calibre 105 mm (de 140 mm, os de maior alcance).
(17) O picador tinha a difícil tarefa de detectar minas (antipessoais ou anticarro) nos trilhos e nos caminhos utilizados pelas NT. Não havia detectores de minas com sensores electrónicos. Apenas um pau com um prego de ferro aguçado na extremidade. Os picadores, tal como os guias, pertenciam, em geral, às milícias africanas. A sua taxa de mortalidade era altíssima.
(18) Muito (manga) dinheiro (patacão).
(19) Soldado afecto apenas às actividades de apoio logístico (por ex., cozinha, faxina), por oposição ao operacional (soldado-atirador).
(20) Tristemente famoso aquartelamento no sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, que acabaria por ser evacuado e abandonado pelas NT, tal como Gadamael, em meados de 1973. Já no meu tempo estes dois nomes eram míticos, a par de Madina do Boé, entretanto abandonada.
(21) Soldado que era especialista em jogar à vermelhinha (jogo de azar, com três cartas).
(22) Alusão a uma vala comum do cemitério do posto administrativo de Bambadinca onde terá havido muitas execuções sumárias, de balantas, beafadas e outros, no início da guerra (1963/64, segundo relatos dos mais velhos dos meus insuspeitos soldados fulas).
(23) Felupe, uma das muitas etnias da Guiné, da zona de Constava-se, no meu tempo, que os felupes ainda praticavam a necrofagia, uma forma de canibalismo ritual. Este tristemente famoso furriel (Uloma, de seu nome, se a memória me não falha) pertencia à 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(24) Local sito na confluência dos Rios Geba e Corubal, na região do Xime.
(25) Referência ao Capitão da CART 2714 (unidade de quadrícula do Xime, envolvida na trágica Op Abencerragem Candente).
Excertos do Diário de um Tuga. L.G.
Bambadinca,13.2.1971
Esquecer a Guiné
Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe (1).
As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.
Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Da Noite das Facas Longas.
Esquecer a Guiné... por uma noite!
A matilha de bulldogs (ou cães grandes) (2)
Gozando as delícias do sistema
No ar condicionado de Bissau.
O pobre do Pastilhas (3)
Que, à hora do lusco-fusco,
Se torna um animal acossado pelo medo,
Rondando os abrigos subterrâneos.
Os olhos de gazela morta
Dos putos
Que andam à cata de comida
Nos bidões do lixo da tropa.
A bela futa-fula (4)
Fugida do harém
Do cornudo comandante de milícias.
Os milhões de unidades de penicilina
Que um gajo paga
Em troca do corpo quente de uma bajuda (5)
Que fode com um batalhão inteiro.
Os páras (6)
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impates,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres.
A histeria do Major Eléctrico (7):
"Ah, se isto fosse uma fábrica,
Seus sacanas!...
Eu despedia-vos a todos,
Cambada de malandros!"...
(Referia-se ao meu grupo de nharros
Que abriam trincheiras
No perímetro do aquartelamento de Bambadinca.
De tronco nu.
Com cinquenta graus ao sol
E 100% de humidade!...
Para o filho da puta
Poder dormir descansado,
À noite, na cama,
Num colchão de espuma,
Sem o pesadelo de um turra
A entrar-lhe pelo quarto adentro,
Armado de Kalashnikov!).
Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas(8).
Que um gajo tem que chegar
Com uns trocos a casa
Para poder casar.
O terror das crianças balantas (9),
Nascidas no mato (10),
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das Gê-Eme-Cês
Do tempo da guerra da Coreia (11).
O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher (12).
É a Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.
E o médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados (13)
E aspirina
Para os pretos.
Mais as lâminas de aço dos rockets (14),
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.
O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm nos cardápios
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa, à Estrela,
É coisa boa,
Apanhas o Eléctrico 28,
Dos Prazeres à Graça,
Dos prazeres de graça,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial, ou oficiosa,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Chico-esperto, portuga,
Vítima da hepatite!
Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos,
Já feitos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.
Mas aos catorze anos
Tu já sabias desta guerra;
Aos dezasseis, que não havia escapatória;
E, aos dezoito,
Que já estavas apanhado na rede
Como um cão...
Tudo somado vais fazer
Trinta e três meses (!)
De vida militar
(Vinte e dois na Guiné!),
Se é que chegas são e salvo
Ao próximo mês de Março
De mil novecentos
E setenta e um.
E que até lá chega finalmente,
O teu salvador,
O teu periquito (15),
O desgraçado que te vem render
E arriar a bandeira das quinas.
Esquece a Guiné, meu tuga.
A guerra.
A aprendizagem da morte.
A inocência
Que se perde para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem,
Ao nosso lado.
E a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
Os restos dos cadáveres humanos.
Num dólmen camuflado.
Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão frondoso
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Oito de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Por defeito de fabrico,
Disse o relator do relatório.
Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioteiros,
Estúpiuda verborreia,
E a bandeira verde-rubra
Dos tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.
Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva.
Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses (16) batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte...
O capim.
O capim alto.
A seara da savana arbustiva.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue
Na mata.
Os panfletos de acção psicológica
Que não chegaram ao seu destinatário.
Espalhados pelo pânico de uma emboscada.
Um velho recorte de jornal,
Encontrado num acampamento do IN,
Com a fotografia de Che Guevara
Na Guiné em 1965.
A propaganda revolucionária.
Multiplicar as Guinés e os Vietnames.
Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador (17),
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão (18)
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro.
Esquecer a Guiné... por umas horas!
O jogo da roleta russa de ir e voltar,
De Bambandica ao Xime.
Numa lata de uma autometralhadora Daimler.
Só tu e o condutor.
Desenfiados.
Mais o Tchombé,
A mascote da companhia, o puto.
Sem escolta nem picagem.
Sem conhecimento de ninguém.
Só para ires beber uma cerveja.
Só para matares o tédio.
Só para desafiares o medo.
Ou para exorcizares os teus fantasmas.
Por pura estupidez.
Ou por simples bravata.
Esquecer a Guiné...
O Básico (19)
Que tem alucinações
E vê elefantes à noite
Junto ao arame farpado.
A história que te contaram,
Do tipo de Guileje (20)
Que deu em doido,
A pescar peixes dentro de uma tina.
O proxeneta do Vermelhinha (21)
Que comprou uma bajuda
E pô-la a render.
As alfaces que crescem, viçosas,
No antigo cemitério (22) de Bambadinca.
O furriel felupe (23), caçador de cabeças.
O Uloma, com as trinta e tal cabeças, dizia-se,
Conservadas em frascos de álcool.
O negócio que o nosso barbeiro e fotógrafo fez
Com a horrível foto de uma cabeça,
Cortada à catana.
A cabeça de um pobre camponês
Que lavrava a sua lala.
No sítio errado, à hora errada.
A derradeira salada de atum, cebola e tomate
E o derradeiro copo de vinho verde
Que se partilha com um camarada e um amigo.
Um homem que vai morrer.
À hora marcada.
Dentro de três ou quatro horas.
Em vinte e seis de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Qualquer um de nós,
Que está aqui à volta da mesa,
Pode vir a morrer
Na próxima hora.
Na próxima operação.
Por que há sempre uma hora
Para morrer.
De um tiro no coração,
De um roquetada,
De um fino estilhaço
De uma mina antipessoal,
Da explosão de uma granada de morteiro...
O jovem capitão de artilharia,
Vinte e quatro anos,
Acabado de sair da Academia Militar,
Que se recusa a sair com os seus homens
Para a Ponta do Inglês (24),
[Depois do desastre
De 26 de Novembro de 1970] (25).
O filho da puta do segundo comandante
Que lhe manda dizer, alto e som:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
Nem que seja a reboque de uma GMC!"...
Meu Deus,
Que pedaço de inferno foi este
Que me coube em vida, na terra ?
__________
Notas (L.G. / Lisboa. 25 de Abril de 2005):
(1) Sinchã Jobel, Zona de intervenção do Comandante-Chefe, a norte do Rio Geba, sob controlo da guerrilha (ou IN, abreviatura de inimigo)
(2) Designação depreciativa do pessoal militar afecto ao Comandante-Chefe, em Bissau.
(3) Referência à figura do enfermeiro militar.
(4) Uma das etnias da Guiné, aparentada com os fulas. Em geral, as mulheres futa-fulas eram de uma grande beleza.
(5) Rapariga, mulher solteira (por oposição a mulher grande, casada).
(6) Diminuitivo de tropas paraquedistas
(7) Alcunha de um célebre major, segundo comandante do Batalhão sedeado em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70) (se a memória me não falha).
(8) Garrafa de cerveja de litro. A sua forma cónica na parte superior sugeria uma granada de RPG (bazuca).
(9) Uma das principais etnias da Guiné de onde eram recrutados muitos dos combatentes do PAIGC.
(10) Em linguagem de caserna, mato significava território fora do controlo das NT (nossas tropas). Também possou a quer dizer "muito", "bué"...
(11) Viaturas de transporte militar, de fabrico norte-americano (General Motors Company), de grande potência e de elevado consumo de combustível.
(12) Enfermeira paraquedista.
(13) Vítimas do stresse de guerra. Também conhecidos por "cacimbados" "apanhados do clima". O termo stresse ainda não fazia parte, na época, do nosso vocabulário (e muito menos a expressão stresse pós-traumático de guerra).
(14) Granadas-foguetes. Os RPG (rocket-propelled grenades), de fabrico russo ou chinês, eram uma das armas mais timídas pelas NT, em situações de combate como as emboscadas.
(15) Alusão à farda, novinha em folha, dos novatos que nos vinham render (A generalidade dos quadros da CCAÇ 12 eram de origem metropolitana e de rendição individual).
(16) Fogo de artilharia lançado a partir dos aquartelamentos das NT (ou unidades de quadrícula). Em geral os obuses eram de calibre 105 mm (de 140 mm, os de maior alcance).
(17) O picador tinha a difícil tarefa de detectar minas (antipessoais ou anticarro) nos trilhos e nos caminhos utilizados pelas NT. Não havia detectores de minas com sensores electrónicos. Apenas um pau com um prego de ferro aguçado na extremidade. Os picadores, tal como os guias, pertenciam, em geral, às milícias africanas. A sua taxa de mortalidade era altíssima.
(18) Muito (manga) dinheiro (patacão).
(19) Soldado afecto apenas às actividades de apoio logístico (por ex., cozinha, faxina), por oposição ao operacional (soldado-atirador).
(20) Tristemente famoso aquartelamento no sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, que acabaria por ser evacuado e abandonado pelas NT, tal como Gadamael, em meados de 1973. Já no meu tempo estes dois nomes eram míticos, a par de Madina do Boé, entretanto abandonada.
(21) Soldado que era especialista em jogar à vermelhinha (jogo de azar, com três cartas).
(22) Alusão a uma vala comum do cemitério do posto administrativo de Bambadinca onde terá havido muitas execuções sumárias, de balantas, beafadas e outros, no início da guerra (1963/64, segundo relatos dos mais velhos dos meus insuspeitos soldados fulas).
(23) Felupe, uma das muitas etnias da Guiné, da zona de Constava-se, no meu tempo, que os felupes ainda praticavam a necrofagia, uma forma de canibalismo ritual. Este tristemente famoso furriel (Uloma, de seu nome, se a memória me não falha) pertencia à 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(24) Local sito na confluência dos Rios Geba e Corubal, na região do Xime.
(25) Referência ao Capitão da CART 2714 (unidade de quadrícula do Xime, envolvida na trágica Op Abencerragem Candente).
sábado, dezembro 03, 2005
Blogantologia(s) II - (21): O deve-e-o-haver de 2004
Máscara do Mali.
Fonte: Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 21 de Novembro de 2004 (Um dos melhores museus de etnologia da Europa, aqui tão perto!).
Foto: © Luís Graça (2004).
Post originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > Blogantologia(s) - XXII: Saldo(s) para o ano de 2005
A todos os homens e mulheres (i) que cabem na minha lista de e-mails ou (ii) que a transbordam ou (iii) que circulam, a desoras e sem rumo, na blogosfera, (iv) quer façam ou não o favor de serem meus amigos: deixem-me desejar-vos o melhor da vida para o Novo Ano que, dizem, aí vem!!!
L.G.
Car@s amig@s planetári@s:
Eis-nos chegad@s
Ao fim do ano de dois mil e quatro,
E digo fim
Porque é já inverno
E faz frio
E porque acabei de arrancar
A última folha amarelada do calendário.
E digo fim para não praguejar
E para não ir parar com os quatro costados
Ao inferno.
Dizemos fim do ano
Por mera convenção ou conveniência.
Ou se calhar,
Por tristeza ou desfastio,
Cansaço, saturação, impaciência.
Depressão, dirá muita boa gente.
Ou só por que nos deu na real veneta;
Em suma, dizemos fim
Sem qualquer razão aparente.
Na prática não chegámos ao fim,
Não chegámos a parte nenhuma,
A pé, de carro, de barco ou de dromedário,
À boleia, a nado ou até de parapente,
Que o chegar é sempre a um algum sítio,
Lugar, porto, ilha, montanha de bruma,
País, continente, planeta,
Ou pico do Evereste.
E chegar ao fim
É sempre sinónimo de festa.
Não arribámos a nenhum porto
Ou outro ponto imaginário
Do globo terrestre;
Não fomos pioneiros,
Não descobrimos a misteriosa citânia
Da nossa proto-história lusitana
Nem sequer a porta do risonho futuro
Que há-de vir;
É tudo treta,
Não fomos os primeiros
Nem sequer os últimos
A cortar a meta;
Não fomos notícia,
Nem mesmo em Alcácer Quibir;
Não estávamos entre os anónimos mineiros
Soterrados na China e na Ucrânia;
Não houve festa, nem luto, nem bomba atómica,
Não houve alvoroço, nem foguetes,
Nem estátua equestre,
Nem sequer a banda trágico-cómica
Dos bombeiros voluntários
Do Emir Kusturica.
À nossa espera
Ou no nosso enterro.
Vendo bem,
Não fizemos nada de heróico,
Não salvámos a humanidade,
Não fizemos a guerra,
Não lutámos contra os canhões,
Não assinámos a paz,
Nem sequer levámos a carta a Garcia.
Enfim, não ganhámos nenhum prémio,
Nem sequer o Nobel, nem a lotaria,
Muito menos o Euromilhões;
Em resumo, dizem-nos que,
No ano da graça do senhor
De dois e mil e quatro,
Tu e eu, nós todos,
Nada temos de concreto
Para celebrar.
Mas chegados ao fim do ano,
É costume fazer-se o balanço,
Se não da viagem,
Pelo menos do deve-e-haver
Das nossas vidas,
Da carga preciosa que transportamos connosco,
Que é a vida e o dever de a viver.
Que é o fogo da vida
E a obrigação de o alimentarmos,
O pequeno milagre
Ou o simples facto
De estarmos vivos,
De ainda estarmos vivos
E de estarmos juntos.
Façamos, pois, o balanço,
Meus amigos,
O deve-e-haver deste ano
De dois mil e quatro,
Que se calhar foi um annus horribilis
Como os anteriores,
Para a maior parte dos homens e mulheres,
Noss@s vizinh@s planetári@s.
Que a vinte e três de dezembro,
O horóscopo da humanidade
Não está em condições de prever
Terramotos, catástrofes, pestes, tsunamis,
O cortejo dos horrores
Que costumam acompanhar os cavaleiros do Apocalipse.
Façamos o balanço das nossas vidas
Como pessoas, como grupos,
Como instituições, como países.
Siga-se, nesta matéria, a tradição,
Que a tradição ainda manda,
E com isso não vai grande mal ao mundo
(Se querem saber a minha opinião).
Como sempre, houve coisas boas
E coisas más
Ao longo do ano que agora finda.
Releguemos as más para os historiadores.
Ou para o nosso confessor, psiquiatra ou confidente.
Ou para o diário secreto de Narciso.
Em boa verdade, as coisas más vão ao fundo,
Não flutuam como os corpos,
São, por definição, para esquecer.
- Dorme, que foi um sonho mau!,
Diziam-te em criança.
Criança sem juízo,
Sem dente do siso.
Abramos, pois, os nossos corações
Para falar ou dar testemunho
Das coisas boas que nos aconteceram.
Que a hora é de desafivelar as máscaras
Dos actores que também somos.
Maus, canastrões,
Mas que importa, se o palco é tudo!
Falemos dos acontecimentos
De que fomos protagonistas.
Pequenos, sem dúvida,
À nossa escala, à escala humana,
Mas importantes,
Para nós, a nossa família, os nossos amigos,
As empresas ou organizações onde trabalhamos,
As pessoas que confiaram em nós,
Que apostaram e acreditaram em nós.
Falemos das situações de que fomos
Actores de verdade, actores de facto.
Independentemente do nosso papel,
E do tamanho do nosso papel.
Ou do número de graus de liberdade
A que temos direito
Ou que fazem parte do nosso contrato.
Que o importante foi ser actor
E não mero figurante.
Falemos dos projectos
De que fomos gestores
Ou simples trabalhadores
De equipa.
Falemos dos conhecimentos novos
Que tivemos o privilégio
De produzir, obter ou divulgar
Através do nosso trabalho, estudo ou formação.
Dos livros que lemos ou escrevemos
Ou que comprámos para ler mais tarde,
”Quando formos velhinh@s
E tivermos todo o tempo do mundo”
(Oh, doce ilusão!).
Não nos esqueçamos de evocar
As pessoas fantásticas que conhecemos.
Mas também os filmes de última hora
Que perdemos no trânsito da vida.
Ou as estórias que não ouvimos ou não lemos,
Por falta de paciência ou de audiência
Ou de simples lugar de estacionamento
No hall congestionado do planeta azul.
Falemos das oportunidades que tivemos
De fazer coisas novas,
Inovadoras, ou simplesmente úteis,
Para nós, para os outros, para o nosso país.
E que não desperdiçámos.
Ajudando o mundo a tornar-se
Mais amigável
Ou, pelo menos, mais habitável.
Falemos das pequenas coisas boas
Que nos aconteceram,
Não por mero acaso,
Mas porque as merecemos,
(Sem falsa modéstia!),
Porque lutámos por elas,
Porque outros nos ajudaram a conseguí-las
Porque juntos conseguimo-las.
Falemos ainda do nosso crescimento interior:
Se estamos mais sábios, mais atentos,
Mais conscientes da água que corre nos nossos rios
Ou do HIV/SIDA que nos está matando,
É porque crescemos por dentro.
Mas sejamos capazes também de falar
Das brincadeiras ou partidas
(Não das sacanices!)
Que fizemos uns aos outros.
Que o brincar não é proibido,
Ou não deveria sê-lo,
Que o brincar devia mesmo ser obrigatório
Na escolinha da vida
E nos locais de trabalho
Onde, já crescidos, a ganhamos.
Falemos dos e-mails que trocámos
E que encheram as nossas caixas de correio.
Das anedotas que contámos.
Até das de mau gosto,
Xenófobas, racistas e sexistas.
Falemos do pão, do queijo e do vinho
Que partilhámos com alguém,
Ao fim da tarde,
Não importa onde,
No Alentejo, em Angola, ou no Minho,
Em qualquer parte onde
Temos um amigo, um parceiro, um compincha.
Que o companheiro (do latim cum + pane) é
Justamente aquele que compartilha connosco
O pão e o vinho à mesma mesa.
Sim, falemos das emoções
Que pusemos em cima da mesa.
Ou da ausência delas.
Da paz que conseguimos, em certas ocasiões,
Estabelecer connosco e com os outros.
Sim, falemos da paz:
Nada como um minuto de paz
Ao fim do dia, no fim do ano.
Um minuto, uma hora,
Mesmo se o fim do ano é uma treta
Do calendário gregoriano.
Falemos, por isso, e já agora
D@s velh@s amig@s que voltámos a encontrar.
Em viagem,
Num terminal de aeroporto,
Numa esquina de rua congestionada,
Num bar triste de uma cidade
Em que estávamos de passagem.
Falemos d@s nov@s amig@s que fizemos.
Sem esquecer @s querid@s amig@s
Que perdemos, assim sem mais nada,
Por razões de vida ou de morte,
Ou de que perdemos simplesmente o norte,
O telefone, o fax, o endereço, o e-mail, a morada.
É a pensar em vocês tod@s
Com quem trabalhei, interagi, vivi, falei,
Discuti, barafustei,
E, se calhar, até magoei e decepcionei,
Durante o ano de dois mil e quatro,
É a pensar em tod@s vós,
Que eu peço ao Pai Natal
(Que eu ainda acredito nele,
Seja isso idiota ou infantil,
Muito pouco ou nada racional!)
Para pôr no vosso sapatinho
Esta singela mensagem:
“Que a nossa amizade seja…
O saldo contabilístico, positivo,
Que transita para o ano de dois mil e cinco”.
Estou-vos obrigado,
A todos vós,
Pela parte de mérito que vos coube
Nas pequenas coisas boas
Que me aconteceram, nos aconteceram,
Em dois mil e quatro.
Resta-me pedir-vos, sensibilizado:
"A mim, desculpem-me lá qualquer coisinha!"...
L.G.
Lisboa, 23 de Dezembro de 2004
Fonte: Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 21 de Novembro de 2004 (Um dos melhores museus de etnologia da Europa, aqui tão perto!).
Foto: © Luís Graça (2004).
Post originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > Blogantologia(s) - XXII: Saldo(s) para o ano de 2005
A todos os homens e mulheres (i) que cabem na minha lista de e-mails ou (ii) que a transbordam ou (iii) que circulam, a desoras e sem rumo, na blogosfera, (iv) quer façam ou não o favor de serem meus amigos: deixem-me desejar-vos o melhor da vida para o Novo Ano que, dizem, aí vem!!!
L.G.
Car@s amig@s planetári@s:
Eis-nos chegad@s
Ao fim do ano de dois mil e quatro,
E digo fim
Porque é já inverno
E faz frio
E porque acabei de arrancar
A última folha amarelada do calendário.
E digo fim para não praguejar
E para não ir parar com os quatro costados
Ao inferno.
Dizemos fim do ano
Por mera convenção ou conveniência.
Ou se calhar,
Por tristeza ou desfastio,
Cansaço, saturação, impaciência.
Depressão, dirá muita boa gente.
Ou só por que nos deu na real veneta;
Em suma, dizemos fim
Sem qualquer razão aparente.
Na prática não chegámos ao fim,
Não chegámos a parte nenhuma,
A pé, de carro, de barco ou de dromedário,
À boleia, a nado ou até de parapente,
Que o chegar é sempre a um algum sítio,
Lugar, porto, ilha, montanha de bruma,
País, continente, planeta,
Ou pico do Evereste.
E chegar ao fim
É sempre sinónimo de festa.
Não arribámos a nenhum porto
Ou outro ponto imaginário
Do globo terrestre;
Não fomos pioneiros,
Não descobrimos a misteriosa citânia
Da nossa proto-história lusitana
Nem sequer a porta do risonho futuro
Que há-de vir;
É tudo treta,
Não fomos os primeiros
Nem sequer os últimos
A cortar a meta;
Não fomos notícia,
Nem mesmo em Alcácer Quibir;
Não estávamos entre os anónimos mineiros
Soterrados na China e na Ucrânia;
Não houve festa, nem luto, nem bomba atómica,
Não houve alvoroço, nem foguetes,
Nem estátua equestre,
Nem sequer a banda trágico-cómica
Dos bombeiros voluntários
Do Emir Kusturica.
À nossa espera
Ou no nosso enterro.
Vendo bem,
Não fizemos nada de heróico,
Não salvámos a humanidade,
Não fizemos a guerra,
Não lutámos contra os canhões,
Não assinámos a paz,
Nem sequer levámos a carta a Garcia.
Enfim, não ganhámos nenhum prémio,
Nem sequer o Nobel, nem a lotaria,
Muito menos o Euromilhões;
Em resumo, dizem-nos que,
No ano da graça do senhor
De dois e mil e quatro,
Tu e eu, nós todos,
Nada temos de concreto
Para celebrar.
Mas chegados ao fim do ano,
É costume fazer-se o balanço,
Se não da viagem,
Pelo menos do deve-e-haver
Das nossas vidas,
Da carga preciosa que transportamos connosco,
Que é a vida e o dever de a viver.
Que é o fogo da vida
E a obrigação de o alimentarmos,
O pequeno milagre
Ou o simples facto
De estarmos vivos,
De ainda estarmos vivos
E de estarmos juntos.
Façamos, pois, o balanço,
Meus amigos,
O deve-e-haver deste ano
De dois mil e quatro,
Que se calhar foi um annus horribilis
Como os anteriores,
Para a maior parte dos homens e mulheres,
Noss@s vizinh@s planetári@s.
Que a vinte e três de dezembro,
O horóscopo da humanidade
Não está em condições de prever
Terramotos, catástrofes, pestes, tsunamis,
O cortejo dos horrores
Que costumam acompanhar os cavaleiros do Apocalipse.
Façamos o balanço das nossas vidas
Como pessoas, como grupos,
Como instituições, como países.
Siga-se, nesta matéria, a tradição,
Que a tradição ainda manda,
E com isso não vai grande mal ao mundo
(Se querem saber a minha opinião).
Como sempre, houve coisas boas
E coisas más
Ao longo do ano que agora finda.
Releguemos as más para os historiadores.
Ou para o nosso confessor, psiquiatra ou confidente.
Ou para o diário secreto de Narciso.
Em boa verdade, as coisas más vão ao fundo,
Não flutuam como os corpos,
São, por definição, para esquecer.
- Dorme, que foi um sonho mau!,
Diziam-te em criança.
Criança sem juízo,
Sem dente do siso.
Abramos, pois, os nossos corações
Para falar ou dar testemunho
Das coisas boas que nos aconteceram.
Que a hora é de desafivelar as máscaras
Dos actores que também somos.
Maus, canastrões,
Mas que importa, se o palco é tudo!
Falemos dos acontecimentos
De que fomos protagonistas.
Pequenos, sem dúvida,
À nossa escala, à escala humana,
Mas importantes,
Para nós, a nossa família, os nossos amigos,
As empresas ou organizações onde trabalhamos,
As pessoas que confiaram em nós,
Que apostaram e acreditaram em nós.
Falemos das situações de que fomos
Actores de verdade, actores de facto.
Independentemente do nosso papel,
E do tamanho do nosso papel.
Ou do número de graus de liberdade
A que temos direito
Ou que fazem parte do nosso contrato.
Que o importante foi ser actor
E não mero figurante.
Falemos dos projectos
De que fomos gestores
Ou simples trabalhadores
De equipa.
Falemos dos conhecimentos novos
Que tivemos o privilégio
De produzir, obter ou divulgar
Através do nosso trabalho, estudo ou formação.
Dos livros que lemos ou escrevemos
Ou que comprámos para ler mais tarde,
”Quando formos velhinh@s
E tivermos todo o tempo do mundo”
(Oh, doce ilusão!).
Não nos esqueçamos de evocar
As pessoas fantásticas que conhecemos.
Mas também os filmes de última hora
Que perdemos no trânsito da vida.
Ou as estórias que não ouvimos ou não lemos,
Por falta de paciência ou de audiência
Ou de simples lugar de estacionamento
No hall congestionado do planeta azul.
Falemos das oportunidades que tivemos
De fazer coisas novas,
Inovadoras, ou simplesmente úteis,
Para nós, para os outros, para o nosso país.
E que não desperdiçámos.
Ajudando o mundo a tornar-se
Mais amigável
Ou, pelo menos, mais habitável.
Falemos das pequenas coisas boas
Que nos aconteceram,
Não por mero acaso,
Mas porque as merecemos,
(Sem falsa modéstia!),
Porque lutámos por elas,
Porque outros nos ajudaram a conseguí-las
Porque juntos conseguimo-las.
Falemos ainda do nosso crescimento interior:
Se estamos mais sábios, mais atentos,
Mais conscientes da água que corre nos nossos rios
Ou do HIV/SIDA que nos está matando,
É porque crescemos por dentro.
Mas sejamos capazes também de falar
Das brincadeiras ou partidas
(Não das sacanices!)
Que fizemos uns aos outros.
Que o brincar não é proibido,
Ou não deveria sê-lo,
Que o brincar devia mesmo ser obrigatório
Na escolinha da vida
E nos locais de trabalho
Onde, já crescidos, a ganhamos.
Falemos dos e-mails que trocámos
E que encheram as nossas caixas de correio.
Das anedotas que contámos.
Até das de mau gosto,
Xenófobas, racistas e sexistas.
Falemos do pão, do queijo e do vinho
Que partilhámos com alguém,
Ao fim da tarde,
Não importa onde,
No Alentejo, em Angola, ou no Minho,
Em qualquer parte onde
Temos um amigo, um parceiro, um compincha.
Que o companheiro (do latim cum + pane) é
Justamente aquele que compartilha connosco
O pão e o vinho à mesma mesa.
Sim, falemos das emoções
Que pusemos em cima da mesa.
Ou da ausência delas.
Da paz que conseguimos, em certas ocasiões,
Estabelecer connosco e com os outros.
Sim, falemos da paz:
Nada como um minuto de paz
Ao fim do dia, no fim do ano.
Um minuto, uma hora,
Mesmo se o fim do ano é uma treta
Do calendário gregoriano.
Falemos, por isso, e já agora
D@s velh@s amig@s que voltámos a encontrar.
Em viagem,
Num terminal de aeroporto,
Numa esquina de rua congestionada,
Num bar triste de uma cidade
Em que estávamos de passagem.
Falemos d@s nov@s amig@s que fizemos.
Sem esquecer @s querid@s amig@s
Que perdemos, assim sem mais nada,
Por razões de vida ou de morte,
Ou de que perdemos simplesmente o norte,
O telefone, o fax, o endereço, o e-mail, a morada.
É a pensar em vocês tod@s
Com quem trabalhei, interagi, vivi, falei,
Discuti, barafustei,
E, se calhar, até magoei e decepcionei,
Durante o ano de dois mil e quatro,
É a pensar em tod@s vós,
Que eu peço ao Pai Natal
(Que eu ainda acredito nele,
Seja isso idiota ou infantil,
Muito pouco ou nada racional!)
Para pôr no vosso sapatinho
Esta singela mensagem:
“Que a nossa amizade seja…
O saldo contabilístico, positivo,
Que transita para o ano de dois mil e cinco”.
Estou-vos obrigado,
A todos vós,
Pela parte de mérito que vos coube
Nas pequenas coisas boas
Que me aconteceram, nos aconteceram,
Em dois mil e quatro.
Resta-me pedir-vos, sensibilizado:
"A mim, desculpem-me lá qualquer coisinha!"...
L.G.
Lisboa, 23 de Dezembro de 2004
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tempo,
trabalho
quinta-feira, dezembro 01, 2005
Blogantologia(s) II - (20) : O país que via passar os comboios
Lisboa > Museu daElectricidade > 2006
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
O país que via passar os comboios
14:13h.
Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes.
Abro talvez uma excepção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros,
Quando havia o cavador, o boi, a charrua, o burro,
O camponês, o portuga camponês e burro,
A horta, a saída directa para os campos.
As hortas.
O termo apeadeiro faz-me lembrar os tempos
Em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios.
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Caneças, Colares, Sintra...
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
Que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Aos Fontes.
Mesmo que a minha professora de sociologia histórica,
Filomena Mónica, discípula do E.P. Thompson,
Só goste dos corticeiros
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel
Da Nokia ou da Siemens, tanto faz.
Que as novas tecnologias quando nascem (não) são para todos.
Ou talvez houvesse stresse
Mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, é tão velho como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
Os ferroviários também punham bombas nas linhas de caminhos de ferro.
Para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem.
Resistência ao ocupante nazi.
Será que hoje seriam caçados como terroristas internacionais ?
Não sou ferroviário nem resistente.
Nem anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos.
Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
Vim de boleia.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.
- Lisboa, Sociedade Anónima ?
- Não, Lisboa, Santa Apolónia,
Corrige o portuga por detrás do guiché.
- Mas eu não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
- Lisboa, SA!
Sou um mau utilizador do comboio.
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
- 2ª classe ?,
Pergunta o portuga que fala em nome da CP.
Como se me tirasse as medidas.
Ou espreitasse para a minha secreta conta bancária.
2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe. Gente de 2ª classe
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
E a tua gente de 3ª classe
Nos porões nauseabundos dos cargueiros
Que rumavam às Américas!).
- 2ª classe ou turística ?
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há turística e conforto
No alfa pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
Minha querida professora.
- Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP,
Já não há 2ª classe, garanto-lhe eu.
Em contrapartida, o outro gajo, o do guiché,
Ainda não fez o upagrade do seu software sociolinguístico.
É por isso é que a CP ainda tem a imagem negativa que tem
Junto do público.
- O senhor,desculpe, mas eu sou fã dos comboios
E tinha que lhe dizer isto.
Também vou para Lisboa, desço na Gare do Oriente...
Tenho tempo.
Nada como esperar um comboio numa estação de tipo Coimbra B
Para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Como uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo.
Que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
Que está afixada na parede da estação de Coimbra B.
Alguém mandou afixar.
Creio que em bronze (sou mau em metais):
- "Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
No dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
O Papa João Paulo II".
O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B, o que diria a corte papal!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores.
E os vindouros.
Mas lá fica a tabuleta.
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu,
a caminho do sul.
Para ninguém.
Quem lê neste país placas de bronze afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país?
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
Desaparafusa a placa e leva-a para casa,
Para o museu ou para a loja.
Não acontece nada em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II.
Em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
Na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia.
Mas esta é a minha leitura.
Peço desculpa aos mais doutos blogadores do que eu.
Peço desculpa aos lentes de Coimbra.
Chega o Alfa.
Just in time,
Como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
Na ponta mais ocidental da Europa.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência
das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor.
Provinciana e ronceira, lá diria o Eça.
Acelera o Alfa.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros.
Isto faz bem à minha auto-estima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
Que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso
Da estação deprimente de Coimbra B.
- Quanto vai dar ?
- Chega aos 200 ou mais,
Diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei.
Nem gosto de apostas.
Deixei de ser solidário.
- Umas cartas para passar o tempo ?
- Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.
Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória colectiva.
O caminho de Santiago.
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
- Chega à tabela.
Dezassete e seis na Estação do Oriente,
Diz-me o pica, orgulhoso.
- Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela
Ba nossa terra.
Fico sempre com inveja
Quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
- Já não te calha na rifa.
Agora são vinte e cinco cães a um osso.
- Vai desejar tomar alguma coisa ?,
Pergunta no futuro próximo o homem do chá, café, laranjada...
- Um Prozac, por favor.
- Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
- Sim ?
- Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último.
Estação de Atocha.
Madrid.
Não leu nos jornais ?
- Não, acabo de chegar doutro planeta.
- En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías...
- Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos.
- Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
Muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
Que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
Se dirigen luego a Chamartín
Y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha
Desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
Que va a Andalucía...
- Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
- Só faço a península ibérica.
Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela...
- E não tem medo do futuro dos comboios ?
- Não... Com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida
De qualquer jeito.
- Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.
Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto. Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
Que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café para te tirar o sono.
- Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, ainda menino e moço!?
- É a voz do sangue, o meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas, uma feixe de linhas e cheiro a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais.
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa.
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
- Política, meu estúpido!,
A primavera política do Marcelo Cetano.
Eras jovem
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris.
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor.
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
Para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
Os grandes de Espanha que estão no Prado...
- És doido, ou quê ?!
Com a pide à perna,
Mais os fascistas da guardia civil!
Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo.
O país que mexe.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
Quando estou no hotel.
Três estrelas, o hotel. Novo.
Bom serviço.
Mas faz frio à noite.
- Voyeurismo, pensa ela.
A rapariga do bar.
Oito páginas,
Entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatinha dengosa"...
Linguagem de código.
A semiótica da solidão.
Do sexo triste e solitário.
- Ligue para o meu telemóvel,
Qu a crise bate a todas as portas,
Sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.
- A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
- Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
- Não sei se cresceu bem...
Não sou de cá.
O Politécnico, o túnel de Viriato.
Os colóquios. Os debates. As ideias.
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O comércio.
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Cavaquistão.
- Ruas, estás de granito!,
Diz o grafito.
(Ruas é o presidente da Câmara)
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:
- Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
- Só falta a Universidade,
Que mais de 10 mil universitários já cá temos.
- Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
Os malandros da Covilhã.
Outro lóbi beirão, o da Covilhã.
Registo o orgulho dos putos
Da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
Que realizam anualmente as suas jornadas de enfermagem.
Este ano, na sua 16ª edição.
O país mexe.
Viseu mexe.
O país profundo mexe.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
Vstidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).
16:30h. Passou o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
- O Alfa vai a 140, ó puto.
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
Lio do tabelau de bord.
- Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
- Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras.
Modernização da linha.
Tenho um pensamento para com os trabalhadores anónimos
Que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? Africanos ? Imigras ? Clandestinos ?
- Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
- Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, o inferno na terra.
Mas aí são magrebinos.
- O novo proletariado do Século XXI.
- Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
- Dá o Benfica na SporTV.
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
O branqueamento de dinheiro
Qe vai por essa nova Lisboa Oriental.
A luxuriante estação do Oriente.
Just in time.
17:06h.
Cheguei.
Balanço do cliente:
- Pensei que já fosse o TGV.
O TGV é que é.
- Não é o TGV,
Ms por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular.
Turística, claro.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal & Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
E o puto tinha razão:
Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo
Os 210.
Um dia ainda vou ter orgulho na CP
E na terra onde nasci
E onde nunca vi passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
Nem chegam a Viseu.
Um abraço aos viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem.
De Expresso, pelo IP3 acima.
Com regresso de comboio.
Se não matarem o comboio que pára em Coimbra B.
E não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha
Qando voltar a Coimbra B.
De Lisboa SA com amor.
(Revisto nesta data)
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
O país que via passar os comboios
14:13h.
Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes.
Abro talvez uma excepção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros,
Quando havia o cavador, o boi, a charrua, o burro,
O camponês, o portuga camponês e burro,
A horta, a saída directa para os campos.
As hortas.
O termo apeadeiro faz-me lembrar os tempos
Em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios.
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Caneças, Colares, Sintra...
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
Que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Aos Fontes.
Mesmo que a minha professora de sociologia histórica,
Filomena Mónica, discípula do E.P. Thompson,
Só goste dos corticeiros
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel
Da Nokia ou da Siemens, tanto faz.
Que as novas tecnologias quando nascem (não) são para todos.
Ou talvez houvesse stresse
Mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, é tão velho como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
Os ferroviários também punham bombas nas linhas de caminhos de ferro.
Para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem.
Resistência ao ocupante nazi.
Será que hoje seriam caçados como terroristas internacionais ?
Não sou ferroviário nem resistente.
Nem anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos.
Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
Vim de boleia.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.
- Lisboa, Sociedade Anónima ?
- Não, Lisboa, Santa Apolónia,
Corrige o portuga por detrás do guiché.
- Mas eu não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
- Lisboa, SA!
Sou um mau utilizador do comboio.
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
- 2ª classe ?,
Pergunta o portuga que fala em nome da CP.
Como se me tirasse as medidas.
Ou espreitasse para a minha secreta conta bancária.
2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe. Gente de 2ª classe
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
E a tua gente de 3ª classe
Nos porões nauseabundos dos cargueiros
Que rumavam às Américas!).
- 2ª classe ou turística ?
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há turística e conforto
No alfa pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
Minha querida professora.
- Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP,
Já não há 2ª classe, garanto-lhe eu.
Em contrapartida, o outro gajo, o do guiché,
Ainda não fez o upagrade do seu software sociolinguístico.
É por isso é que a CP ainda tem a imagem negativa que tem
Junto do público.
- O senhor,desculpe, mas eu sou fã dos comboios
E tinha que lhe dizer isto.
Também vou para Lisboa, desço na Gare do Oriente...
Tenho tempo.
Nada como esperar um comboio numa estação de tipo Coimbra B
Para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Como uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo.
Que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
Que está afixada na parede da estação de Coimbra B.
Alguém mandou afixar.
Creio que em bronze (sou mau em metais):
- "Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
No dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
O Papa João Paulo II".
O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B, o que diria a corte papal!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores.
E os vindouros.
Mas lá fica a tabuleta.
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu,
a caminho do sul.
Para ninguém.
Quem lê neste país placas de bronze afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país?
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
Desaparafusa a placa e leva-a para casa,
Para o museu ou para a loja.
Não acontece nada em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II.
Em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
Na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia.
Mas esta é a minha leitura.
Peço desculpa aos mais doutos blogadores do que eu.
Peço desculpa aos lentes de Coimbra.
Chega o Alfa.
Just in time,
Como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
Na ponta mais ocidental da Europa.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência
das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor.
Provinciana e ronceira, lá diria o Eça.
Acelera o Alfa.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros.
Isto faz bem à minha auto-estima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
Que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso
Da estação deprimente de Coimbra B.
- Quanto vai dar ?
- Chega aos 200 ou mais,
Diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei.
Nem gosto de apostas.
Deixei de ser solidário.
- Umas cartas para passar o tempo ?
- Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.
Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória colectiva.
O caminho de Santiago.
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
- Chega à tabela.
Dezassete e seis na Estação do Oriente,
Diz-me o pica, orgulhoso.
- Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela
Ba nossa terra.
Fico sempre com inveja
Quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
- Já não te calha na rifa.
Agora são vinte e cinco cães a um osso.
- Vai desejar tomar alguma coisa ?,
Pergunta no futuro próximo o homem do chá, café, laranjada...
- Um Prozac, por favor.
- Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
- Sim ?
- Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último.
Estação de Atocha.
Madrid.
Não leu nos jornais ?
- Não, acabo de chegar doutro planeta.
- En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías...
- Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos.
- Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
Muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
Que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
Se dirigen luego a Chamartín
Y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha
Desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
Que va a Andalucía...
- Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
- Só faço a península ibérica.
Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela...
- E não tem medo do futuro dos comboios ?
- Não... Com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida
De qualquer jeito.
- Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.
Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto. Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
Que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café para te tirar o sono.
- Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, ainda menino e moço!?
- É a voz do sangue, o meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas, uma feixe de linhas e cheiro a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais.
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa.
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
- Política, meu estúpido!,
A primavera política do Marcelo Cetano.
Eras jovem
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris.
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor.
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
Para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
Os grandes de Espanha que estão no Prado...
- És doido, ou quê ?!
Com a pide à perna,
Mais os fascistas da guardia civil!
Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo.
O país que mexe.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
Quando estou no hotel.
Três estrelas, o hotel. Novo.
Bom serviço.
Mas faz frio à noite.
- Voyeurismo, pensa ela.
A rapariga do bar.
Oito páginas,
Entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatinha dengosa"...
Linguagem de código.
A semiótica da solidão.
Do sexo triste e solitário.
- Ligue para o meu telemóvel,
Qu a crise bate a todas as portas,
Sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.
- A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
- Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
- Não sei se cresceu bem...
Não sou de cá.
O Politécnico, o túnel de Viriato.
Os colóquios. Os debates. As ideias.
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O comércio.
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Cavaquistão.
- Ruas, estás de granito!,
Diz o grafito.
(Ruas é o presidente da Câmara)
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:
- Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
- Só falta a Universidade,
Que mais de 10 mil universitários já cá temos.
- Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
Os malandros da Covilhã.
Outro lóbi beirão, o da Covilhã.
Registo o orgulho dos putos
Da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
Que realizam anualmente as suas jornadas de enfermagem.
Este ano, na sua 16ª edição.
O país mexe.
Viseu mexe.
O país profundo mexe.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
Vstidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).
16:30h. Passou o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
- O Alfa vai a 140, ó puto.
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
Lio do tabelau de bord.
- Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
- Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras.
Modernização da linha.
Tenho um pensamento para com os trabalhadores anónimos
Que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? Africanos ? Imigras ? Clandestinos ?
- Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
- Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, o inferno na terra.
Mas aí são magrebinos.
- O novo proletariado do Século XXI.
- Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
- Dá o Benfica na SporTV.
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
O branqueamento de dinheiro
Qe vai por essa nova Lisboa Oriental.
A luxuriante estação do Oriente.
Just in time.
17:06h.
Cheguei.
Balanço do cliente:
- Pensei que já fosse o TGV.
O TGV é que é.
- Não é o TGV,
Ms por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular.
Turística, claro.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal & Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
E o puto tinha razão:
Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo
Os 210.
Um dia ainda vou ter orgulho na CP
E na terra onde nasci
E onde nunca vi passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
Nem chegam a Viseu.
Um abraço aos viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem.
De Expresso, pelo IP3 acima.
Com regresso de comboio.
Se não matarem o comboio que pára em Coimbra B.
E não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha
Qando voltar a Coimbra B.
De Lisboa SA com amor.
(Revisto nesta data)
____________
(1) Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em post de 25 Março 2004 > Portugal sacro-profano - XVI: De Coimbra B a Lisboa SA
Blogantologia(s) II - (19): Quanto é bom voltar a ver-te voar
Originalmenete publicado no Blogue-Fora-Nada, em post de 16 de Junho de 2005 > Blogantologia(s) - XIII: Para ti
Para ti, A., em jeito de poemacção, de poemafeição, de poemamor, de poemagradecimento, de poemapoio ou tão só de poemassombração. Como quiseres, que em poesia não há relações lineares de causa-efeito.
Quanto é bom voltar a ver-te voar
gaivota deusa alada
cortas fundo o branco
da manhã
e até ao cabo mais ocidental
do meu corpo
quero-te e espero-te
a viajar
no último comboio da madrugada
até ao fim até ao sul
paro escuto e olho
os semáforos do nevoeiro no país verde-rubro
mas já a maré enche de azul
as praças da cidade
e tu amor sem arribar
porto seguro e encantatório
ilha secreta gruta radar
com uma palmeira à janela
e uma bandeira em cada promontório
dizem que és filha da liberdade
do rio e da foz do vulcão e da lava
e em dias de neblina também és oásis
aldeia palafita e ponto final
entre as arribas e a praia-mar
não olhei para o calendário
nas paredes da falésia
nem fixei o dia o mês o ano ou a era
mas hoje o teu voo é preclaro sinal
de primavera
ponho um cêdê do fado novo
paro escuto perscruto
o telefone os búzios a guitarra
mas tu amante sibila cartomante
sem aportar
frias são as estrias do poema
e hirto o sax-grito
do último navio na noite
mas a letra do fado me diz
que tu gaivota deusa alada
estás p’ra chegar.
quanto é bom voltar a ver-te
voar.
lisboa (1985-2005)
Para ti, A., em jeito de poemacção, de poemafeição, de poemamor, de poemagradecimento, de poemapoio ou tão só de poemassombração. Como quiseres, que em poesia não há relações lineares de causa-efeito.
Quanto é bom voltar a ver-te voar
gaivota deusa alada
cortas fundo o branco
da manhã
e até ao cabo mais ocidental
do meu corpo
quero-te e espero-te
a viajar
no último comboio da madrugada
até ao fim até ao sul
paro escuto e olho
os semáforos do nevoeiro no país verde-rubro
mas já a maré enche de azul
as praças da cidade
e tu amor sem arribar
porto seguro e encantatório
ilha secreta gruta radar
com uma palmeira à janela
e uma bandeira em cada promontório
dizem que és filha da liberdade
do rio e da foz do vulcão e da lava
e em dias de neblina também és oásis
aldeia palafita e ponto final
entre as arribas e a praia-mar
não olhei para o calendário
nas paredes da falésia
nem fixei o dia o mês o ano ou a era
mas hoje o teu voo é preclaro sinal
de primavera
ponho um cêdê do fado novo
paro escuto perscruto
o telefone os búzios a guitarra
mas tu amante sibila cartomante
sem aportar
frias são as estrias do poema
e hirto o sax-grito
do último navio na noite
mas a letra do fado me diz
que tu gaivota deusa alada
estás p’ra chegar.
quanto é bom voltar a ver-te
voar.
lisboa (1985-2005)
Blogantologia(s) II - (18): Em Dezembro
Publicado originalmente no Blogue-Fora-Nada, em post de 28 de Janeiro de 2005 > Blogarias V - Em Dezembro
em dezembro
não fazia frio
em dezembro
não fazia ainda neve
em dezembro era natal
e comiam-se rabanadas
em janeiro
cantavam-se as janeiras
e bebia-se o vinho novo
em dezembro
ainda não havia neve
pra cozer as pencas pró natal
não havia neve
à porta dos camponeses pobres do norte
nem as peugadas dos pés descalços
das criancinhas do augusto gil
batem leve levemente
como quem chama por mim...
ah onde está o tipicismo da miséria rural
que os escritores burgueses descobriram antes de nós
o camilo o eça o ramalho o aquilino
em dezembro
o pai natal já não descia pelo fumeiro
por entre os salpicões e os presuntos
vinha de peugeot pelas estradas de frança
e trazia tiparrillos pra malta fumar
à lareira
em dezembro
a maria do norte cortava erva pró gado
e cantava a plenos pulmões
uma canção do sul
candoz. natal de 1976
em dezembro
não fazia frio
em dezembro
não fazia ainda neve
em dezembro era natal
e comiam-se rabanadas
em janeiro
cantavam-se as janeiras
e bebia-se o vinho novo
em dezembro
ainda não havia neve
pra cozer as pencas pró natal
não havia neve
à porta dos camponeses pobres do norte
nem as peugadas dos pés descalços
das criancinhas do augusto gil
batem leve levemente
como quem chama por mim...
ah onde está o tipicismo da miséria rural
que os escritores burgueses descobriram antes de nós
o camilo o eça o ramalho o aquilino
em dezembro
o pai natal já não descia pelo fumeiro
por entre os salpicões e os presuntos
vinha de peugeot pelas estradas de frança
e trazia tiparrillos pra malta fumar
à lareira
em dezembro
a maria do norte cortava erva pró gado
e cantava a plenos pulmões
uma canção do sul
candoz. natal de 1976
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