sábado, maio 20, 2006

Blogantologia(s) II - (27): Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo.

Lisboa > Terreiro do Paço > 2005 >

A entrada da Rua Augusta e a colina do castelo vistas de uma janela do Ministério da Agricultura. "Da minha janela" diz ela.

© Maria Helena Moutinho (2005)

Como é bom rever-te, Lisboa e Tejo e tudo (1).


Lisboa, sete colinas,
o rio, uma paixão,
que deram origem
à arte e à ciência da olissipografia.
E a Helena era uma das meninas
que ficava bem,
à janela,
recortada em pórtico manuelino
da Casa dos Bicos
ou no laranjal
da estória da Nau Catrineta,
desenhando castelos de Espanha
nas areias de Portugal.

Lisboa, menina e moça,
tu podias não saber nada
de geografia,
nem da didáctica da educação de adultos,
nem da fisiologia do coração,
nem de desenho a três dimensões
nem do risco sísmico
nem do simples risco de existir e de estar viva.
Mas sempre tiveste por perto
o estúpido pirata de perna de pau,
vesgo e maneta,
irrompendo os teus sonhos
com o pesadelo do sentimento de um ocidental
na ponta mais fina de uma espada
guardada na Torre de Belém.

Lisboa, o casario, o castelo,
e rente ao chão,
a devoção, a procissão
da Senhora da Saúde,
que nos valia nos anos de peste,
nos meses de guerra,
nas semanas de fome
e nos dias de depressão,
a depressão funda, cavada,
do vale de Alcântara até Xabregas.

Lisboa e os livros, os incunábulos,
os alfarrabistas da Baixa-Chaiado,
as pedras, as cantarias,
as traves mestras
que nos falam da cidade
em construção,
dos arquitectos,
dos trolhas,
dos estucadores,
dos pintores de tabuletas
e de retábulos dourados,
dos aguadeiros
do poço do mouros,
do Carmo e da Trindade
de pedra e cal,
dos engenheiros hidráulicos,
dos agrónomos,
dos agrimensores,
dos silvicultores do pinhal d’el-rei,
dos santos inquisidores,
das freiras e das frieiras
que é coçá-las e deixá-las

no cemitério de todos os prazeres.
Ah, aí onde a vida acaba
na ponta de uma naifa
no Bairro Alto
das fadistas e dos seus chulos.

Mas não de tédio,
minha querida,
diz o pregão da varina,
enquanto houver o 28 para a (Des)Graça
com bilhete de ida e volta,
as Escadinhas do Duque
ou a Calçada do Combro
e os escombros do terramoto
por subir, trepar ou escalar.
E os filetes de alfaquique
ou peixe-galo
com açorda de ovas.
E os pastéis de Belém
e o bife dos ricos
à Marrare
e as iscas com elas
nas carvoarias dos galegos
e o cheiro a carvão e a sardinha,
linda que tresanda
nas ruelas e vielas dos bairros populares.
E o Portugal very tipical
do António de Ferro
com que te quiseram tramar
e as sécias e os peraltas da Belle Époque
que a Avenida da Liberdade
acaba na rotunda das públicas virtudes
e no beco dos vícios privados.

A terna, eterna, Olissipo
onde o azul do céu é único
e te leva a todos os caminhos do infinito.
Ulisses sabia-o
e guardado estava o segredo
do mais fundo do tempo.
E por isso fundeou no estuário do teu Tejo
e trouxe com ele a Helena,
troiana,
transmontana,
fenícia, grega,
cartaginesa, romana,
celta, iberíssima,
goda, visigótica,
moura, berbere, preta,
bárbara, bela, pérfida Helena,
santa e penitente,
globetrotter,
errante, caminhante,
mística, algures perdida,
loucamente perdida
nos caminhos de Santiago.

Que te importa
se Lisboa já não é
uma praça forte,
uma bolsa contra os valores
daqui d’ el-rei
que o paço e o terreiro,
a trono e a régia cabeça,
tremem e estremecem,
entre o Martinho e a Arcádia,
na iminência de um ataque
terrorista.
Dantes chamava-se anarquista,
à bomba regicida,
quando a palavra de ordem era
a bolsa ou a vida.
E não havia as avenidas novas,
do Ressano Garcia,
nem o risco dos engenheiros,
nem a construção a custos controlados,
nem o prémio Valmor,
nem o fundo de mão-obra,
nem o Dow Jones ou o NASDAK.

E estavas tu, Helena,
postada à janela,
com vistas largas
para o casario, a sé, o castelo,
o mar da palha,
a rua do ouro e a da prata,
o augusto senhor dom José a mata-cavalos,
a serra, a arrábida fóssil,
a armada outrora invencível,
a ribeira das naus,
o turista, o voyeurista,
o motorista
do senhor ministro sem pasta
nem forragem para o gado na canícula do verão,
os heróis menores, anónimos,
que vieram morrer na praia,
o velho do Restelo,
que já foi praia sem bandeira azul,
o velho do Restelo agora ainda mais velho
e mais bota de elástico,
o Cesário e a sua idiossincracia,
o Cesário, verde e rubro,
nos estádios dos eurofutebóis,
mais o Eça de Queiroz,
o estrangeirado,
que te amava à maneira dele,
a Sofia, a deusa, a olímpica,
o Almada e os seus marinheiros sem futuro,
o Ary, provocateur,
panfletário,
o luminoso Eugénio de Andrade,
a Amália e a nossa estranha forma de vida,
e tantos outros poetas que te cantaram.
Ah, e o Pessoa, subindo e descendo o Chiado,
de braço dado contigo,
recitando-te o heterónimo:
A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz.
Mas como é que eu sei se teria sido feliz ?

Esquece o Álvaro de Campos, o sedutor,
e deixa-me pôr-te a caminhar
pelos caminhos ínvios e íngremes
desta cidade-sortilégio,
que tu amas, que eu amo, que nós não amamos…
E se, contudo,
há um privilégio,
é sempre o da amizade e do amor,
é esse de poder ter-te
ao alcance da mão e do coração,
entre Paço d’Arcos e o Cais de Sodré,
ou de permeio,
entre o teu blogue e a caixa de correio.
É, enfim, esse privilégio de poder dizer-te:
Como é bom rever-te…
Helena, Lisboa, Tejo e tudo.


________


Nta de L.G.:

(1) Querida Helena: Este é o meu contributo possível para tua festa, o meu e sobretudo o da Alice, que me deu mil e uma dicas sobre ti, como amiga tua de há muitos anos.

A pretexto da prenda que escolheram para te dar (O Livro de Lisboa / coord. Irisalva Moita. Lisboa: Livros Horizonte. 1994), glosei e explorei a tua paixão por Lisboa, o mesmo é dizer, a tua incessante procura da vida, da beleza, do amor, da liberdade, da poesia, do prazer, da felicidade...

Daí a festa que te fizeram na noite de 19 de Maio de 2006, na Casa de Cabo Verde, os teus amigos e amigas de longa data, que trabalharam contigo estes anos todos. Não foi um festa de despedida, mas de (re)encontro(s). Não existe, de resto, essa palavra, despedida, no dicionário dos amantes e dos amigos.

Como escrevi no teu blogue (Caminhos), fiz votos para que algum deles ou alguma delas, te tenham dito nessa noite, ou ouvido:
- Como é bom rever-te, Helena, Lisboa e Tejo e tudo.

Trata-se, se bem reparares, de uma ideia do Álvaro de Campos, um verso que eu adaptei do famoso poema Lisbon Revisited, de 1926.

domingo, maio 14, 2006

Blogantologia(s) II - (26): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula

Às vezes este país
parece-me quase perfeito e sem mácula.
Em certos dias.
A uma certa hora.
Em certos sítios.
Visto de um determinado ângulo.
Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário.
Por exemplo, no mês de Abril, em pleno Baixo Alentejo.
Ao pôr do sol.
Experimenta ver este país
sentado no banco da frente
do piso superior do autocarro.
Ao sul.
A 250 km ao sul de Lisboa.
Ao fim da tarde.
Ao pôr do sol.

Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula,
numa viagem de regresso a casa,
de Beja a Lisboa.
Viaja sobre as planícies de Beja.
Podes ver as cegonhas
que não já trazem os bebés de França.
Num certo troço da estrada não-sei-quantos
que vai desembocar na A2.
A tal, que é mais conhecida como a autoestrada do Sul,
a que te leva para o Algarve.

Visão panorâmica.
A dois metros e meio acima do solo.
Em voo raso de cegonha.
Toma nota que a hora é importante para veres o teu país.
Tal como o sítio e o ângulo de visão.
Ao fim da tarde,
no conforto relativo do autocarro da Rede Expresso.
Nada como deixares o teu carro em Lisboa
e viajares na Rede Expresso.
Toma a viatura nº 95, de preferência o lugar nº 1.
Podias ter reservado o bilhete pela Internet
ou enviado um SMS.
Mas não vais estragar este momento único
contaminando os teus pensamentos poéticos
com as coisas prosaicas das novas tecnologias.

Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo.
Nada como um montado de sobro
e um bando de cegonhas em formação de voo.
De regresso a casa, também elas.
Nada como um horizonte quase perfeito e sem mácula.
Tão pouco como isto.
Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula.
Por nove euros e meio.
Viajando na Rede Expresso.
Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios.
Saíndo de Beja, a caminho de Lisboa.

Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país.
Noutra hora e noutro lugar, eu acrescentaria:
Nada como um pedaço de pão alentejano,
umas azeitonas com o gosto dos orégãos,
um bocado de requeijão,
um copo de vinho branco,
uma roda de amigos.

Na Festa de Nossa Senhora das Pazes,
entre ficalheiros e azinheiras centenárias.
Todos os anos no domingo seguinte à Páscoa.
Este ano veio muito menos gente.
Que a morte bateu, com mão pesada,
a muitas portas de Vila Verde de Ficalho.
Vinte e cinco mortes, dizem-me desde Janeiro.
A festa e o luto não combinam.
Mas veio gente de outras partes do mundo,
do Montijo, do Seixal, do Barreiro, de Lisboa,
da diáspora alentejana.
E a alegria e a festa do reencontro são universais.

Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa.
Quer faça chuva, quer faça sol.
E mesmo que os homens não se incorporem
na procissão da santa que dá três voltas à capelinha.
A um tiro de distância da raia espanhola.
Nossa Senhora das Pazes.
Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos
que atraem e repelem os vizinhos separados
pelas extremas de dois países do Al-Andaluz.
Desde 1232 quando o lusitano e cristão D. Sancho II
reconquista aos mouros a margem esquerda do Guadiana.

Mesmo que haja quem queira desistir da vida.
Ou dela se despedir com dignidade.
Doutor, em passando a festa, eu dou um rumo à minha vida.
E aí tu percebes a diferença
entre ter e não ter
um médico de família,
um equipa de saúde,
um centro de saúde,
ao alcance do teu braço.

Para trás deixas o verde das searas de trigo,
do Alentejo que ainda dá pão.
Para trás deixas gente fantástica.
No mínimo, gente competente, boa e generosa.
Que trabalha nos centros de saúde
e suas extensões do Baixo Alentejo.
Para trás deixas amigos.
Em Vila Verde de Ficalho.
Em Serpa.
Na Cuba.
Na Vidigueira.
Em Aljustrel.
Em Almodôvar e no Alvito.
Em Barrancos.
Em Beja.
De Castro Verde a Ferreira do Alentejo.
Em Mértola e em Moura.
Em Odemira ou em Ourique.
Médicos de família, enfermeiros, administrativos.
Em condições muitas vezes difíceis,
sem o conforto do teu gabinete de Lisboa.
Sem o ar condicionado da Sony.
Com 37 graus à sombra.
Com um frio de rachar.
Com falta de equipamentos sociais.
Dando consultas em insólitos lugares,
como o Sporting Clube de A do Pinto.
Ou fazendo SAP em velhos conventos transformados em hospitais.
Remando contra a maré
do individualismo,
do cinismo,
da arrogância,
da gestão mercantilista da saúde,
da descrença,
da desmotivação.
Remando contra os doentes da saúde,
as vítimas da aculturação médica,
os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas
do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais,
da indústria farmacêutica, dos lóbis,
do poder, da política politiqueira...
Gente que cuida dos outros e que se cuida pouco.
que cuida pouco de si própria.
E que pode estar trinta anos numa carreira administrativa
como terceiríssimos oficiais.
Ou que continua a fazer urgências mesmo para além do limite legal de idade.
Que trabalha sem rede.
E que às vezes é até agredida ou maltratada.

Um dia quiseram trabalhar em equipa.
Para prestar melhores cuidados de saúde.
Para trabalhar com outra motivação e satisfação.
Um dia pensaram na utopia igualitária.
Nos idos anos de setenta.
Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo.
Que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários
numa base cooperativa e, sobretudo, igualitária.
Fora da tradicional relação hierárquica
chefe / subordinado ou especialista / leigo.
Pondo também na equipa o utente.
Subvertendo a organização burocrática
que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.

Hoje a utopia não morreu.
Mas está mais velha e cansada.
A utopia também envelhece mas não morre.
Há muito que as equipas nucleares de saúde
perderam o seu vigor ou se desfizeram.
Mas contaminaram a cultura organizacional
da Sub-Região de Saúde de Beja.
O bichinho está lá e não morreu.
Sempre discordei dos que pensam a utopia sem tempo nem lugar.
A utopia também pode ter um tempo e um lugar.
Porque na sua dupla etimologia,
utopia tanto quer dizer nenhum lugar (ou + topia)
como lugar perfeito (eu + topia).

Eles não são heróis nem levam nenhum existência heróica.
São portugas como os outros.
Profissionais de saúde como os outros.
Apenas fazem alguma diferença.
Eu diria que é um certo modo de ser e de estar.
Algo que não se ensina em escola nenhuma.
Que não se aprende nos cursos de formação do Fundo Social Europeu
me na Faculdade de Medicina
nem nas Escolas de Enfermagem
nem nas Business Schools.
Um modo de ser e de estar
Para o qual não há receitas de cozinha.
Pequenos detalhes que fazem a diferença.
Por isso, por tudo isso, gostei de os ver,
gostei de voltar a encontrá-los.
Eles são portugas
que merecem as minhas palmas.
As nossas palmas.

Originalmente publicado, em prosa, no Blogue-fora-nada > Vd post de 21 de Abril de 2004 > Portugas que merecem as nossas palmas - VII: O pessoal dos centros de saúde do Baixo Alentejo