quarta-feira, setembro 28, 2005
Blogantologia(s) II - (7): Paimogo da Minha Infância
Lourinhã > Agosto de 2007 > Da Praia de Vale de Frades à Praia de Paimogo
Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
Paimogo da Minha Infância
Não preciso de ser geólogo
Para te amar,
Ó Praia de Paimogo
Da minha infância.
Nem de ser paleontólogo
Para desenhar na areia
As peugadas da tua errância
De dinossauro do Jurássico Superior (1).
Nem muito menos biólogo ou sociólogo
Para te conhecer aí onde
Se alimenta o recolector-caçador,
E o polvo, o povo, se esconde
Nas marés vivas de lua cheia (2).
Fugi de terramotos e tempestades,
Procurei abrigo na tua enseada,
Domei as ondas e o vento,
Desfiz mitos,
Adorei divindades,
Esculpi a esfinge alada
Que guarda a porta do teu templo.
Andei na pesca ao candeio,
Fui pescador de lagosta,
Camponês, jornaleiro, camarada,
Andarilho de costa a costa,
Negociante de peixe, almocreve,
Apanhador de algas, caçador submarino,
Amigo do fado e da boémia,
Poeta, pirata e frade,
Mulher e fêmea,
Viúva de vivo e de morto,
Zé-Ninguém, cidadão clandestino.
Vim da Bretanha em barcos a vapor,
Fui avieiro nos meses longos de verão,
Fenício, cartaginês, romano e moçárabe,
Português do mundo em cada porto (3).
Armei navios, enriqueci, trafiquei,
De escravos fui senhor,
E dono de engenhos nos brasis.
Embarcadiço e capitão do norte,
Aventureiro e explorador colonial,
Bandeirante, garimpeiro,
Prostituta e proxeneta,
E até de príncipes fui conselheiro.
Carreguei vinho nos barris
Da nossa Nau Catrineta,
Para a corte russa, imperial;
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
Adubei as minhas terras
Com o limo do mar dos sargaços;
Fiz o meu ninho de ave de rapina
No alto das tuas falésias,
Fui presa e predador,
Dos contrabandistas segui os passos,
Lavrei o mar, semeei a morte;
Sobrevivi a mil e uma guerras,
E os meus mortos enterrei
Nas tuas areias.
Vigiei o mar, o céu e a terra
Do alto setecentista do teu forte (4);
Tive visões, vi monstros e sereias,
Fugi das garras dos terópodes,
Escapei dos mandíbulas dos crocodilos,
Lutei contra muitas outras feras,
Fiz a paz e a guerra,
Da vida conheci todo os estilos,
Fui condenado às galeras
E quase devorado por gastrópodes,
Peguei de caras o minotauro,
Estive cativo do mouro
Nas longínquas mauritânias,
Choquei os teus ovos de dinossauro,
Construí castros, citânias,
Andei à deriva dos continentes,
Sobrevivi à fome e à peste,
Andei a monte, fugi a salto,
Lutei pela liberdade,
Pela lei e pela grei gritei bem alto,
De norte a sul, de leste a oeste,
E a pátria te defendi,
Contra todos os invasores.
A verdade, a verdade,
É que cobiçada por muitas gentes,
Desejada por muitos senhores,
Nunca nenhuma armada invencível te venceu,
Ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste,
Se alguma vez te perdeste,
Foi só por amores.
Quando eu era criança,
Quando eu tive a sorte de ser criança
Como diria o Fernando Pessoa,
As sardinhas voltavam sempre,
Em frágeis cardumes de prata e luar,
À praia onde haviam desovado.
Quando eu era menino e moço,
No tempo em que ainda partiam soldados
Para a Índia, para Goa,
Havia uma princesa, moura, encantada,
Numa das tuas grutas submarinas;
O corpo coberto de ágar-ágar,
Era fonte de água pura, quente e doce,
Donde bebiam os ofegantes cavalos alados,
Com as suas enormes narinas.
E o vento, a nortada,
Nas velas dos barcos e dos moínhos,
Falavam-me da tragédia antiga,
Mas ainda viva,
Da filha do teu capitão
Que se havia matado do alto da arriba,
Dizem que por amor e solidão.
No antigo reino mouro,
E depois franco e fero, da Lourinhã,
Também os búzios me diziam
Que à noite as luzinhas,
A sul das Ilhas Berlengas,
Eram as alminhas
Dos que morriam
No mar, sem sepultura cristã.
Pobres náufragos,
Marinheiros, pescadores,
Poetas loucos, errantes, noctívagos,
Imigrantes clandestinos,
Corsários, contrabandistas, pecadores,
À deriva, sem um ui nem um ai,
Agarrados às tábuas do barco Deus é Pai (5).
Hoje não acredito mais
Nessas lendas das alminhas
Que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,
Vendedores de letras de fado
E do Borda-d’Água:
Afinal essas luzinhas,
Lá longe e ali tão perto,
São apenas as traineiras
Ao largo do Mar do Serro,
Atrás dos cardumes de sardinhas.
Luis Graça
____________________
Notas de L.G.:
(1) A região do Oeste (e em particular o concelho da Lourinhã) é rica em vestígios paleontológicos dos dinossauros do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos). Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ninho de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e meu amigo, o Doutor Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”.
(2) Em Agosto de 2005 foi lançado um livro interessante sobre A Apanha Artesanal de Recursos Marinhos Costeiros no Concelho da Lourinhã, da autoria da bióloga marinha Ana Silva, natural do concelho da Lourinhã. Esta actividade, embora complementar (da agricultura, da pesca, etc.), ainda hoje é um dos traços da identidade cultural das gentes ribeirinhas deste concelho. A edição do livro é da Câmara Municipal da Lourinhã (2005).
(3) A presença humana em Paimogo está documentada por vestígios arqueológicos, remontando pelo menos ao Calcolítico. A região da Lourinhã também foi habitada por povos como os iberos, os fenícios, os gregos, os túrdulos e os cartagineses. A passagem mais marcante foi, todavia, a dos romanos e, depois, a dos mouros. Na reconquista destas terras, D. Afonso Henriques foi ajudado por cavaleiros francos (isto é, oriundos da antiga Gália), entre eles D. Jordão, que irá ser o primeiro donatário da Lourinhã (Cipriano, 2001. 17-25).
(4) O Forte de Paimogo, construído em 1674, construído durante a regência do príncipe D. Pedro, futuro rei D. Pedro II, “fazia parte de uma linha defensiva da costa portuguesa, que começava na Praça Forte da vila de Peniche e estendia até ao Forte de São Francisco de Xabregas, na cidade de Lisboa” (Cipriano, 2001.143). Embora classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 de Julho de 1955, encontrava até há pouco em estado de ruína. Apraz-me saber que a Câmara Municipal da Lourinhã procedeu à sua recuperação.
(5) O concelho da Lourinhã também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Cipriano (2001. 261-262) refere a ocorrência, de 1968 a 2000, de seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece).
Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de Março de 1971, no Mar do Serro, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de Maio de 1968), Altar de Deus (6 de Novembro de 1982), Arca de Deus (17 de Fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de Julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de Julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico, de Ribamar, donde era oriunda a minha bisavó paterna (nascida em 1864).
Referência bibliográfica:
Cipriano, Rui Marques (2001) – Vamos falar da Lourinhã. Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã.
Outras fontes:
Lusodino > Página pessoal de Octávio Mateus
Museu da Lourinhã
(*) Revisto em 23 de Junho de 2010
Originalmente publicado, a 12 Agosto 2004, no Blogue-Fora-Nada > Blogantologia(s) – XVII: Paimogo da minha infância III
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Blogantologia(s) II - (6): Bófia, lembra-te da Cova da Moura!
Publicado originalmente, no Blogue-Fora-Nada, como post de 21 de março de 2005 > Blogantologia(s) - XXV: Sobre o dia mundial da poesia e da água
Revisto em 28 de Setembro de 2005
Celebrou-se hoje,
Dia 21 de Março,
O Dia Mundial da Poesia.
Eu não o celebrei,
Como devia.
Nem eu
Nem sequer o senhor ministro de Estado
De-qualquer-coisa
Que escolheu o dia
Para falar do choque tecnológico
E do risco biológico
Que resulta
Do simples facto de eu existir.
E de tu existires.
Por sermos um corpo de intervenção
E ser pura água potável
Mais de 70% do nosso escudo de protecção.
Eu, pela minha parte,
Estava demasiado distraído
Ou cansado.
Por usura.
Por pura usura do trabalho.
Usura física.
De facto, não celebrei o dia
Como devia
Por fadiga,
Por pura fadiga física.
Mas também por falta de co-celebrantes
E ainda, confesso, pela minha falta
De sentido eclesial.
Não, não é nada pessoal,
Simplesmente acontece
Que tenho um ponto de vista mais dramático
Sobre a relação dos poetas
Com o bem e com o mal.
Em Angola, na província do Uíge,
O vírus de Marburgo mata,
E isso não é metafísica,
Todavia não tira o sono a ninguém
Nem é notícia de jornal.
Ou se o é, é fait-divers
À falta de título de caixa alta.
Os fluídos do corpo matam,
O sangue, o suor, as lágrimas,
A saliva, a merda, o vomitado, o sémen.
Já o ministro da arte, exportável,
É mais pragmático,
Ao proclamar que a poesia quando nasce
É para todos.
Faço que não com a cabeça,
Mas digo: Ámen,
Muito obrigado.
Como qualquer cidadão,
Certificado, acreditado, homologado.
Agora que eu faço
O meu exame de consciência,
À hora mortal do deitar,
Como qualquer menino bem comportado,
Falando com o seu anjo da guarda,
Vejo que o Dia Mundial da Poesia
Passou por mim, ao meu lado,
Na rua, a caminho do metro
Da Falagueira,
Um bairro do meu burgo,
Onde os polícias se deixam matar
Por balas de aço
De calibre de 9 milímetros,
Tão mortíferas
Como as febres hemorrágicas
Do Ébola e do Marburgo.
Pobre corpo de intervenção
Que não é imune aos vírus nem às balas
Nem aos quatro humores.
E ao passar rente ao muro,
De acesso ao meu bairro,
Não pude deixar de ler o grafito:
"Bófia, lembra-te da Cova Moura!"
Não me adianta saber,
Como os doutores
Que são pagos para pensar e para saber,
Que os maiores poetas do mundo
Andam distraídos
Com a parte nebulosa do centro do planeta,
Donde brota a água, o fogo, a terra e o ar.
E quiçá o Ébola e o Marburgo.
E a violência dita urbana.
E que os seus densímetros
Não captam a essência da coisa.
Ou das coisas e dos seus pormenores.
É a própria existência da falta de água
Que alimenta a vida
E rega o horto, seco, dos poetas menores,
Que constitui o âmago do problema,
Não o seu alfa e o seu omega.
É por isso que a poesia, sem âmago,
Não se vende
Nem chega às esquadras da polícia,
Nem à Cova da Moura,
Nem às escolas
Nem às igrejas
Nem aos locais de trabalho
Nem aos campos de refugiados
Nem aos bares de alterne
Nem às tristes putas da minha avenida triste
Nem aos oásis aprazíveis da civilização
Nem à Casa Branca
Nem às crianças do meu país
Nem aos agentes patogénicos de Pasteur
Nem à clínica de Roma
Onde o Papa sofreu
Por todos nós, pecadores, poetas ou não.
A poesia, mesmo sem âmago nem alma,
Simplesmente não chega
Tal como a água do Alqueva.
A poesia e a água não chegam
A nenhures.
Ou chegam e não conheço o aqueduto
Nestes tempos de incerteza e oportunidade
(De crise, dizem eles!).
A poesia e a água
Não chegam, juntas,
Através dos canais de irrigação,
Das condutas do gás
Ou dos cabos de fibra óptica.
Não chegam nem do ar nem do mar.
Nem por meio do spam do terror.
Há a poesia da punição, da oração, da expiação:
Entra-nos pelos vasos sanguínios
Da fábrica do corpo humano
Desde os tempos da Santa Inquisição.
Há a poesia mais terrorista,
E aquela que é mais hedonista.
A existencialista e a essencialista.
Para mim,
A poesia quer-se livre, de liberdade:
A solução é desalfandegá-la,
Desembrulhá-la, pô-la viva,
Comprá-la, comê-la, digeri-la,
E proclamá-la artigo de primeira necessidade,
Isenta de IVA
E de qualquer outra alcavala.
A verdade é que
A poesia não se vende nem se come
Nos bairros ditos problemáticos
Onde homicidas e suicidários
Se acoitam na anomia do Durkheim.
Confesso que
Não dei por ser Dia Mundial
da Poesia.
Não dei por nada.
Não houve rancho melhorado.
Nem alvoroço do povo.
Nem uivei à lua como um cão com cio.
Ou com raiva.
Que a raiva de cão também pode matar.
Tal como o cio.
E a anomia. E o HIV/Sida.
E as febres hemorrágicas.
E as dores menstruais do PIB
Do nosso descontentamento.
Ia caminho, dizia, da Falagueira
Fazendo contas à vida
E ao passe social
Do metro de Lisboa,
Da CP e da Carris.
E ao que me resta, do mês,
Do deve-e-haver de um marginal.
Não sou de pôr os pontos nos is,
Não sei poesia,
Nem fazê-la nem dizê-la,
Não sei conjugar o verbo existir
Quanto mais soletrar o verbo sobreviver.
Em tempos sabia de cor
Alguns duros versos do Aleixo,
Poeta menor, popular,
E analfabeto.
Hoje estou de vigília
À fábrica da Bombardier.
Desempregado.
Ex-soldado
Da guerra do ultramar.
Ex-soldador,
Miseravelmente despedido
Por um robô.
Ou trocado.
Posto a um canto.
O meu perfil ?
Uma merda, com a sua licença,
De ex-operário,
Alentejano de nascença.
Por sinal, pouco esperto.
Estado civil ?
Casado.
Um trabalhador descartável.
Sem lugar
Na Eurolândia da excelência.
Resta-me o punho, erguido,
À espera da luta,
À espera que a luta continue,
Mesmo devagar,
Sem esmorecer.
Se hoje foi Dia Mundial
Da Poesia,
Devo dizer que o dia foi mal escolhido.
Digo-o com mágoa.
Mas em jeito de adenda,
Acrescento que me resta o de amanhã,
O qual, para não me esquecer,
Apontei na agenda:
Será o Dia Mundial da Água.
Revisto em 28 de Setembro de 2005
Celebrou-se hoje,
Dia 21 de Março,
O Dia Mundial da Poesia.
Eu não o celebrei,
Como devia.
Nem eu
Nem sequer o senhor ministro de Estado
De-qualquer-coisa
Que escolheu o dia
Para falar do choque tecnológico
E do risco biológico
Que resulta
Do simples facto de eu existir.
E de tu existires.
Por sermos um corpo de intervenção
E ser pura água potável
Mais de 70% do nosso escudo de protecção.
Eu, pela minha parte,
Estava demasiado distraído
Ou cansado.
Por usura.
Por pura usura do trabalho.
Usura física.
De facto, não celebrei o dia
Como devia
Por fadiga,
Por pura fadiga física.
Mas também por falta de co-celebrantes
E ainda, confesso, pela minha falta
De sentido eclesial.
Não, não é nada pessoal,
Simplesmente acontece
Que tenho um ponto de vista mais dramático
Sobre a relação dos poetas
Com o bem e com o mal.
Em Angola, na província do Uíge,
O vírus de Marburgo mata,
E isso não é metafísica,
Todavia não tira o sono a ninguém
Nem é notícia de jornal.
Ou se o é, é fait-divers
À falta de título de caixa alta.
Os fluídos do corpo matam,
O sangue, o suor, as lágrimas,
A saliva, a merda, o vomitado, o sémen.
Já o ministro da arte, exportável,
É mais pragmático,
Ao proclamar que a poesia quando nasce
É para todos.
Faço que não com a cabeça,
Mas digo: Ámen,
Muito obrigado.
Como qualquer cidadão,
Certificado, acreditado, homologado.
Agora que eu faço
O meu exame de consciência,
À hora mortal do deitar,
Como qualquer menino bem comportado,
Falando com o seu anjo da guarda,
Vejo que o Dia Mundial da Poesia
Passou por mim, ao meu lado,
Na rua, a caminho do metro
Da Falagueira,
Um bairro do meu burgo,
Onde os polícias se deixam matar
Por balas de aço
De calibre de 9 milímetros,
Tão mortíferas
Como as febres hemorrágicas
Do Ébola e do Marburgo.
Pobre corpo de intervenção
Que não é imune aos vírus nem às balas
Nem aos quatro humores.
E ao passar rente ao muro,
De acesso ao meu bairro,
Não pude deixar de ler o grafito:
"Bófia, lembra-te da Cova Moura!"
Não me adianta saber,
Como os doutores
Que são pagos para pensar e para saber,
Que os maiores poetas do mundo
Andam distraídos
Com a parte nebulosa do centro do planeta,
Donde brota a água, o fogo, a terra e o ar.
E quiçá o Ébola e o Marburgo.
E a violência dita urbana.
E que os seus densímetros
Não captam a essência da coisa.
Ou das coisas e dos seus pormenores.
É a própria existência da falta de água
Que alimenta a vida
E rega o horto, seco, dos poetas menores,
Que constitui o âmago do problema,
Não o seu alfa e o seu omega.
É por isso que a poesia, sem âmago,
Não se vende
Nem chega às esquadras da polícia,
Nem à Cova da Moura,
Nem às escolas
Nem às igrejas
Nem aos locais de trabalho
Nem aos campos de refugiados
Nem aos bares de alterne
Nem às tristes putas da minha avenida triste
Nem aos oásis aprazíveis da civilização
Nem à Casa Branca
Nem às crianças do meu país
Nem aos agentes patogénicos de Pasteur
Nem à clínica de Roma
Onde o Papa sofreu
Por todos nós, pecadores, poetas ou não.
A poesia, mesmo sem âmago nem alma,
Simplesmente não chega
Tal como a água do Alqueva.
A poesia e a água não chegam
A nenhures.
Ou chegam e não conheço o aqueduto
Nestes tempos de incerteza e oportunidade
(De crise, dizem eles!).
A poesia e a água
Não chegam, juntas,
Através dos canais de irrigação,
Das condutas do gás
Ou dos cabos de fibra óptica.
Não chegam nem do ar nem do mar.
Nem por meio do spam do terror.
Há a poesia da punição, da oração, da expiação:
Entra-nos pelos vasos sanguínios
Da fábrica do corpo humano
Desde os tempos da Santa Inquisição.
Há a poesia mais terrorista,
E aquela que é mais hedonista.
A existencialista e a essencialista.
Para mim,
A poesia quer-se livre, de liberdade:
A solução é desalfandegá-la,
Desembrulhá-la, pô-la viva,
Comprá-la, comê-la, digeri-la,
E proclamá-la artigo de primeira necessidade,
Isenta de IVA
E de qualquer outra alcavala.
A verdade é que
A poesia não se vende nem se come
Nos bairros ditos problemáticos
Onde homicidas e suicidários
Se acoitam na anomia do Durkheim.
Confesso que
Não dei por ser Dia Mundial
da Poesia.
Não dei por nada.
Não houve rancho melhorado.
Nem alvoroço do povo.
Nem uivei à lua como um cão com cio.
Ou com raiva.
Que a raiva de cão também pode matar.
Tal como o cio.
E a anomia. E o HIV/Sida.
E as febres hemorrágicas.
E as dores menstruais do PIB
Do nosso descontentamento.
Ia caminho, dizia, da Falagueira
Fazendo contas à vida
E ao passe social
Do metro de Lisboa,
Da CP e da Carris.
E ao que me resta, do mês,
Do deve-e-haver de um marginal.
Não sou de pôr os pontos nos is,
Não sei poesia,
Nem fazê-la nem dizê-la,
Não sei conjugar o verbo existir
Quanto mais soletrar o verbo sobreviver.
Em tempos sabia de cor
Alguns duros versos do Aleixo,
Poeta menor, popular,
E analfabeto.
Hoje estou de vigília
À fábrica da Bombardier.
Desempregado.
Ex-soldado
Da guerra do ultramar.
Ex-soldador,
Miseravelmente despedido
Por um robô.
Ou trocado.
Posto a um canto.
O meu perfil ?
Uma merda, com a sua licença,
De ex-operário,
Alentejano de nascença.
Por sinal, pouco esperto.
Estado civil ?
Casado.
Um trabalhador descartável.
Sem lugar
Na Eurolândia da excelência.
Resta-me o punho, erguido,
À espera da luta,
À espera que a luta continue,
Mesmo devagar,
Sem esmorecer.
Se hoje foi Dia Mundial
Da Poesia,
Devo dizer que o dia foi mal escolhido.
Digo-o com mágoa.
Mas em jeito de adenda,
Acrescento que me resta o de amanhã,
O qual, para não me esquecer,
Apontei na agenda:
Será o Dia Mundial da Água.
Blogantologia(s) II - (5): War is over, baby
Publicado originalmente, no Blogue-Fora. Nada, em 11 Janeiro 2004 >
Blogantologia(s) - VI: O adeus às armas
Revisto e actualizado nesta data.
War is over, baby
A guerra acabou e depois
os avós contarão aos netos
tintim por tintim
como foi a última batalha de Bagdade
que não chegou a haver
mas que rimava com liberdade.
Ou não contarão e arrumarão as botas.
Que os netos têm jogos mais divertidos
no último modelo da sua playstation
e já não mais têm pachorra
para aturar os cotas.
De qualquer modo foi,
disse o repórter português,
a primeira das batalhas da história
transmitidas em directo.
Uma batalha anunciada
logo com princípio meio e fim,
como no jogo do xadrez.
Uma história das arábias
onde sobraram as espadas de deus
e dos homens faltaram as palavras sábias.
Lembras-te, baby,
tínhamos comprado pipocas
como no cinema do nosso bairro
de classe média arruinada.
Sentámo-nos no chão
entre camelos e beduínos
à espera da queda do Saddam.
Lembro-me como se fosse hoje,
estavas meio pedrada
e nós éramos coleccionadores de quedas,
a última fora a do muro de Berlim
em mil nove oitenta e nove.
Regámos com vodka e coca-cola
o começo do reich dos mil anos.
Depois os soldados regressarão a casa.
E casarão. E terão filhos que vão à escola.
Ou talvez não.
Os soldados proletários
mercenários voluntários patriotas.
Os bisnetos dos escravos
das plantações de algodão do sul.
Os filhos dos imigras
de várias raças credos e nações
do grande melting pot americano.
Na fotografia tinham um ar de idiotas
usavam grandes jeans
e chapéus à texano.
Eles guardarão a espingarda
e o capacete. No sótão.
E o canhão sem recuo no jardim em Miami.
E o clarim em Nova Orleães.
E o cartão do Tio Sam:
I wanto you for U.S. Army!
Alguns morrerão.
Talvez de solidão. Ou de tédio.
Ou de falta de fé em Deus.
Ou na Humanidade.
Ou em Deus e na Humanidade ao mesmo tempo.
Ou de stresse pós-traumático de guerra
como dizem hoje os psis.
Cacimbados, dirias tu,
meu tuga, meu guinéu
que no tempo da guerra colonial
estava por inventar a palavra stresse.
Morrerrão simplesmente de solidão
como as carcassas dos tanques
nos jardins suspensos da Babilónia.
Não importa ou que importa
se um dia todos temos de morrer
de uma merda qualquer
de peste sida ébola
gripe das aves
insolação raiva insónia
desidratação
bê-esse-é pneumonia atípica
cancro gás mostarda
trombose ou aperto da aorta.
O repórter de serviço diz
na Têvê do Berlusconi
que esta foi a última campanha de caça
ao leão da Mesopotâmia.
Ou da Abissínia tanto faz
que o Berlusconi caga na geografia
agora com as auto-estradas da globalização.
Estranho: eu imaginava-o extinto
na época dos últimos glaciares. ao leão.
Ah! se eu não fosse um sem-abrigo
se eu não fosse um desertor da guerra colonial
se eu fosse poeta proactivo
um repórter reformado da guerra fria
com pensão cama e roupa lavada
um gajo decente com sensibilidade social
e uns restos de tesão
nos tomates
eu escreveria um grafito
no meu epitáfio no meu bunker:
- Maomé meu profeta meu irmão
Estive em Badgade. Não vi nada.
Não rezei na tua mesquita azul.
Não rezei por ti nem por mim nem por nós.
Apenas tive pena do teu povo do islão
curdos xiitas sunitas árabes
e todos os outros filhos bastardos de Abraão.
Mais te direi por e-mail
que morri com um estilhaço de granada.
A meu lado um capitão dos marines
afogou-se num poço de petróleo
coberto com a bandeira dos States.
Era um caixa de óculos como o O’Neil
poeta portuga obscuro
que nem para contínuo serviu
do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Mas hão-de morrer mais.
Conta até mil e lê o jornal.
É a astróloga do ano que tudo viu
na sua bola de cristal.
Italianos dos carabineiros
espanhóis da secreta
espiões do efbiai
judeus errantes da diáspora
portugas de goa damão e diu
mexicanos do pancho villa.
Tudo por causa de um homem-bomba
que foi visto visto a sobrevoar
a Estátua da Liberdade Agrilhoada.
Mas agora és tu, private Jessica Lynch,
baby-doll em camuflado
a nova namoradinha
dos tele-espectadores globais.
Ou por breves instantes foste
a heroína. a heroinazinha.
Que a fama e a glória são
deusas avaras e cruéis.
Quiçá na próxima guerra te verei
ao serviço da bandeira da CNN
ou doutro xogum qualquer dos mass media
embeded com os bravos da mítica 7ª cavalaria.
No país do show business
das fábricas de sonhos e de fadas
e em que o sucesso é a medida de todas as coisas
está tudo a condizer.
Tu estás a condizer, minha jóia,
o Carlos Fino está a condizer.
Mais o pobre ministro da propaganda
de seu nome Mohamed Saeed al-Sahaf
que resistiu com um microfone na mão.
A GNR dos portugas em Nassíria está a condizer.
No tempo em que éramos todos telegénicos
Até o Bush, my friend George , caraças!,
por deus e pelo diabo ladeado
segurava um perú de plástico
no dia de Acção de Graças.
Tu, my darling, minha querida
ouvi dizer que és filha
de um condutor de camião.
Uma heroína do povo sem pedigree
escriturária amanuense
anjo da guarda
carinha larocas de teen-ager
de uma qualquer terra saloia estado-unidense.
Ferida em combate por engano
sorry que numa lady americana
não se bate,
diz o puro sangue árabe.
Baleada mas logo resgatada
que um camarada morto ou ferido
nunca se deixa atrás
das linhas do fogo inimigo.
Muito menos já se vê
num hospital de retaguarda do eixo do mal,
diz o Pentágono.
Li nos jornais que acumulo no WC
que já te ofereceram um milhão
(de dólares, entenda-se).
Queriam fazer um filme
com a história da tua vida
de heroína por equívoco.
Tu que só tens 19 anos. Não mais.
E já tanto (ou tão pouco) para contar.
Perdi-te o rasto, meu amor,
nas voltas que o mundo dá.
A guerra acabou.
O problema agora é de polícia
e do homem-bomba
ou da mulher do tchador
Adeus, querida,
adeus às armas,
adeus, Iraque,
adeus, Guiné..
E depois ?
Bem depois é amanhã
não há azar.
E amanhã há mais,
cantemos o hino.
A vida pode parar,
a vida pode esperar,
a vida pode até perder-se.
O espectáculo é que não, my God!
O espectáculo esse continua,
tem de continuar.
Só vou ter saudades é do Carlos Fino.
Blogantologia(s) - VI: O adeus às armas
Revisto e actualizado nesta data.
War is over, baby
A guerra acabou e depois
os avós contarão aos netos
tintim por tintim
como foi a última batalha de Bagdade
que não chegou a haver
mas que rimava com liberdade.
Ou não contarão e arrumarão as botas.
Que os netos têm jogos mais divertidos
no último modelo da sua playstation
e já não mais têm pachorra
para aturar os cotas.
De qualquer modo foi,
disse o repórter português,
a primeira das batalhas da história
transmitidas em directo.
Uma batalha anunciada
logo com princípio meio e fim,
como no jogo do xadrez.
Uma história das arábias
onde sobraram as espadas de deus
e dos homens faltaram as palavras sábias.
Lembras-te, baby,
tínhamos comprado pipocas
como no cinema do nosso bairro
de classe média arruinada.
Sentámo-nos no chão
entre camelos e beduínos
à espera da queda do Saddam.
Lembro-me como se fosse hoje,
estavas meio pedrada
e nós éramos coleccionadores de quedas,
a última fora a do muro de Berlim
em mil nove oitenta e nove.
Regámos com vodka e coca-cola
o começo do reich dos mil anos.
Depois os soldados regressarão a casa.
E casarão. E terão filhos que vão à escola.
Ou talvez não.
Os soldados proletários
mercenários voluntários patriotas.
Os bisnetos dos escravos
das plantações de algodão do sul.
Os filhos dos imigras
de várias raças credos e nações
do grande melting pot americano.
Na fotografia tinham um ar de idiotas
usavam grandes jeans
e chapéus à texano.
Eles guardarão a espingarda
e o capacete. No sótão.
E o canhão sem recuo no jardim em Miami.
E o clarim em Nova Orleães.
E o cartão do Tio Sam:
I wanto you for U.S. Army!
Alguns morrerão.
Talvez de solidão. Ou de tédio.
Ou de falta de fé em Deus.
Ou na Humanidade.
Ou em Deus e na Humanidade ao mesmo tempo.
Ou de stresse pós-traumático de guerra
como dizem hoje os psis.
Cacimbados, dirias tu,
meu tuga, meu guinéu
que no tempo da guerra colonial
estava por inventar a palavra stresse.
Morrerrão simplesmente de solidão
como as carcassas dos tanques
nos jardins suspensos da Babilónia.
Não importa ou que importa
se um dia todos temos de morrer
de uma merda qualquer
de peste sida ébola
gripe das aves
insolação raiva insónia
desidratação
bê-esse-é pneumonia atípica
cancro gás mostarda
trombose ou aperto da aorta.
O repórter de serviço diz
na Têvê do Berlusconi
que esta foi a última campanha de caça
ao leão da Mesopotâmia.
Ou da Abissínia tanto faz
que o Berlusconi caga na geografia
agora com as auto-estradas da globalização.
Estranho: eu imaginava-o extinto
na época dos últimos glaciares. ao leão.
Ah! se eu não fosse um sem-abrigo
se eu não fosse um desertor da guerra colonial
se eu fosse poeta proactivo
um repórter reformado da guerra fria
com pensão cama e roupa lavada
um gajo decente com sensibilidade social
e uns restos de tesão
nos tomates
eu escreveria um grafito
no meu epitáfio no meu bunker:
- Maomé meu profeta meu irmão
Estive em Badgade. Não vi nada.
Não rezei na tua mesquita azul.
Não rezei por ti nem por mim nem por nós.
Apenas tive pena do teu povo do islão
curdos xiitas sunitas árabes
e todos os outros filhos bastardos de Abraão.
Mais te direi por e-mail
que morri com um estilhaço de granada.
A meu lado um capitão dos marines
afogou-se num poço de petróleo
coberto com a bandeira dos States.
Era um caixa de óculos como o O’Neil
poeta portuga obscuro
que nem para contínuo serviu
do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Mas hão-de morrer mais.
Conta até mil e lê o jornal.
É a astróloga do ano que tudo viu
na sua bola de cristal.
Italianos dos carabineiros
espanhóis da secreta
espiões do efbiai
judeus errantes da diáspora
portugas de goa damão e diu
mexicanos do pancho villa.
Tudo por causa de um homem-bomba
que foi visto visto a sobrevoar
a Estátua da Liberdade Agrilhoada.
Mas agora és tu, private Jessica Lynch,
baby-doll em camuflado
a nova namoradinha
dos tele-espectadores globais.
Ou por breves instantes foste
a heroína. a heroinazinha.
Que a fama e a glória são
deusas avaras e cruéis.
Quiçá na próxima guerra te verei
ao serviço da bandeira da CNN
ou doutro xogum qualquer dos mass media
embeded com os bravos da mítica 7ª cavalaria.
No país do show business
das fábricas de sonhos e de fadas
e em que o sucesso é a medida de todas as coisas
está tudo a condizer.
Tu estás a condizer, minha jóia,
o Carlos Fino está a condizer.
Mais o pobre ministro da propaganda
de seu nome Mohamed Saeed al-Sahaf
que resistiu com um microfone na mão.
A GNR dos portugas em Nassíria está a condizer.
No tempo em que éramos todos telegénicos
Até o Bush, my friend George , caraças!,
por deus e pelo diabo ladeado
segurava um perú de plástico
no dia de Acção de Graças.
Tu, my darling, minha querida
ouvi dizer que és filha
de um condutor de camião.
Uma heroína do povo sem pedigree
escriturária amanuense
anjo da guarda
carinha larocas de teen-ager
de uma qualquer terra saloia estado-unidense.
Ferida em combate por engano
sorry que numa lady americana
não se bate,
diz o puro sangue árabe.
Baleada mas logo resgatada
que um camarada morto ou ferido
nunca se deixa atrás
das linhas do fogo inimigo.
Muito menos já se vê
num hospital de retaguarda do eixo do mal,
diz o Pentágono.
Li nos jornais que acumulo no WC
que já te ofereceram um milhão
(de dólares, entenda-se).
Queriam fazer um filme
com a história da tua vida
de heroína por equívoco.
Tu que só tens 19 anos. Não mais.
E já tanto (ou tão pouco) para contar.
Perdi-te o rasto, meu amor,
nas voltas que o mundo dá.
A guerra acabou.
O problema agora é de polícia
e do homem-bomba
ou da mulher do tchador
Adeus, querida,
adeus às armas,
adeus, Iraque,
adeus, Guiné..
E depois ?
Bem depois é amanhã
não há azar.
E amanhã há mais,
cantemos o hino.
A vida pode parar,
a vida pode esperar,
a vida pode até perder-se.
O espectáculo é que não, my God!
O espectáculo esse continua,
tem de continuar.
Só vou ter saudades é do Carlos Fino.
segunda-feira, setembro 26, 2005
Blogantologia(s) II - (3): (N)o princípio era o corpo ou a construção social do risco, segundo Antony Gormley
Originalmene publicado, no Blogue-Fora-Nada, como post de 8 de Junho de 2004 > Blogantologia(s) - XII: Antony Gormley: no princípio era o corpo
A construção social do risco
ou socio(b)logando sobre uma exposição do escultor Anthony Gormley ("Mass and Empathy")
Nova versão, actualizada , em 26.09.2005
N(o) princípio do corpo
No princípio não era ainda o verbo.
O verbo virá depois.
Critical mass. Domain field.
O Anjo do Norte.
O corpo e a morte.
E outras ideias fortes
Esculpidas no gesso, no ferro, no aço ou no cimento.
No princípio era o corpo.
A imensa mole de corpos.
A mão.
O braço.
O teu corpo.
O braço como extensão do teu corpo.
O corpo ubíquo. Iníquo.
O corpo de pé.
De cócoras.
De joelhos.
Sentado.
Dobrado.
Deitado.
Despojado.
Amontoado.
Pendurado.
Dependurado.
Petrificado.
Fossilizado.
Destroçado.
A partir do teu corpo.
Da extensão do teu braço.
Marcas um círculo à tua volta.
Aí mesmo onde as pedras fizeram uma elipse e
Pousaram.
Na terra.
A cima da terra.
O teu corpo em molde de gesso.
Recuperas o teu corpo.
Molécula a molécula.
Devolves o teu genoma à terra.
Estás num caixão.
Um sarcófago.
Um cofre.
Sem olhos.
Estanque.
Um corpo à procura dum lugar para ser.
Um corpo.
Um braço.
Algo que é teu.
O braço do teu corpo.
Mas que te é estranho.
Familiarmente estranho.
Como os restos do cordão umbilical
Que te liga(m) à matriz original
De todas as coisas.
Na tua mão seguras
O epicentro do mundo.
Chamemos-lhe provisoriamente mundo.
Punhamo-lo entre parêntesis.
O mundo.
Entre parêntesis de arame farpado.
Porque no princípio era apenas o corpo
E a extensão do teu corpo.
E a violência do teu parto.
E o cordão umbilical que te liga à terra.
Mas isto não é um corpo.
É uma maçã, diz Magritte. Ou talvez não.
Apenas um poema em construção.
Um acto de criação.
A criação em acção.
Um muro liso e branco.
O muro. O fio de prumo.
O pêndulo. A corda. O cadafalso.
A linha do horizonte na vertical.
A luz ao fundo do túnel.
O fio de Ariane que te conduz
No labirinto.
Ou ao labirinto.
Se o em si existe
É esta porção de mundo
Que está ao alcance da tua mão.
Um círculo. A exacta circunferência
Desenhada pelo teu dedo
Na areia da praia onde arribaste.
Ou poderia ter sido o dedo do deus
De Miguel Ângelo.
Ou outra criatura. Ou outro criador.
O teu corpo supunha-o blindado.
Como um caixão de chumbo.
Um sarcófago.
Blindado mas oco como uma forma.
Sem olhos.
Vazio.
Mumificado.
Afinal, o teu corpo
É apenas um material de construção.
Um poema em construção.
Um projecto.
Com especificações técnicas como qualquer projecto.
E dentro do poema um coração
Onde se lê: Cuidado, frágil.
É a relação com os outros
Que importa agora reter.
A semelhança.
A dissemelhança.
É o relacional que dá sentido
À tua ubiquidade.
À tua iniquidade.
És velho e novo.
Alto e baixo.
Servo e senhor.
Objecto e sujeito.
Doente e terapeuta.
Masculino e feminino.
Escultor e esculpido.
Medium e antropólogo.
Construído e construtor.
Vítima e predador.
Fio e labirinto.
Perdido e achado.
Fóssil e paleontólogo.
Arte e artista.
Antony e Gormley.
És mais do que um corpo.
Mais do que um corpo na cidade.
És a própria cidade em construção.
A textura da cidade.
O sociograma.
Mais do que rélation, diria rapport.
Relação de força, tensão, stresse, strain.
Tenho dificuldade em explicar-te
Onde acaba o biológico
E onde começa o social.
A linha de risco.
O risco.
O existencial e o essencial.
O normal e o patológico.
O céu e o inferno.
O axiológico.
A axila.
A estrutura asilar.
O grand renfermement.
A salutogénese e a patogénese.
A expiação do pecado original.
O mal.
Pompeia e o Etna.
Hiroshima.
O absurdo.
A angústia à flor da pele.
O envelhecer.
A dor.
A raíz da dor.
A depressão.
O medo.
A morte e o morrer.
E sobretudo o poder.
Da vida e da morte.
O poder que não é coisa,
Atributo, categoria ou variável.
Mas relação.
Um construído.
Como o teu corpo.
A tua identidade.
A estratificação socioespacial do teu corpo.
O tempo e o lugar. A equidade. A bioética.
O corpo no labirinto.
Ao labirinto.
Como o poços dos negros.
Ou dos mouros.
Na minha Lisboa.
Quem disse que o mundo é
Injusto ou errado ?
Ou foi mal planeado ?
O problema não é de filosofia
Nem de risk assessment
Mas de engenharia (meta)física.
O stresse é uma força
Que aplicada sobre o aço do teu corpo
A deforma.
Mais: O stresse mata.
E depois há o corpo que suporta
O peso.
Do próprio corpo.
Dos outros corpos.
Do mundo.
Mais do que os teus 700 quilos de ferro forjado
É o insustentável peso do mundo
Que tu habitas mais o teu corpo.
E o teu frágil coração.
Julgava-o blindado, o teu corpo.
Mas não.
Há também, antes ou depois,
O corpo solidário.
A rede.
O projecto identitário.
O projéctil balístico.
O tiro tenso do arco.
O poema em construção.
O desastre humanitário.
O fio do labirinto de Ariane.
O estado totalitário.
O corpo em acção.
O futuro sempre precário.
O futuro sem futuro.
Mesmo Robinson Crusoe na tua ilha de arribação,
És um corpo com marcas indeléveis.
No teu invólucro de gesso
Vejo a marca do bisturi.
Do naufrágio.
Da Kalashnikov.
Do trabalho.
Da doença.
Da escrita.
Da escola.
Do código de Hamurabi.
Da guerra.
Da tatuagem.
Do sucesso.
Da formatação.
Do clã.
Do vulcão.
Do lamparã dos balantas,
O espanta-pardais.
Do genoma.
Da engenharia genética.
Da iatrogénse.
Do puro terror.
Do Génesis.
Da palavra de salvação.
Da bomba de Hiroshima.
Do desembarque nas praias da Normandia.
Do fado.
Da saudade da partida.
Do horóscopo.
Da viagem.
Da memória.
Da história.
Da tua história de vida.
Mercator, ergo pestiferus.
Corpo ambulante.
Desertor.
Militante.
Mercador.
Corsário.
Marinheiro.
Recrutador de soldados.
Hóspede e hospedeiro.
Enfim, livre.
Trazes das outras ilhas a peste.
A vida.
Nunca te reconheceria apenas pela cor dos teus olhos.
Furados.
Fundação Calouste Gulbenkian,
Museu de Arte Moderna,
Lisboa, 7 de Maio de 2004. Revisto e, 26 de Setembro de 2005.
Por ocasião de uma visita guiada à exposição "Mass and Empahy", de Antony Gormley, na companhia da Prof. Dra. Isabel Loureiro, do psiquiatra Dr. Luís Gamito e de dezasseis mestrand@s de saúde pública (7º Mestrado de Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública/Universidade Nova de Lisboa, 2003/2005)
Duas instalações de Antony Gormley (n. Londres, 1950):
(i) Critical Mass II (1998). Ferro forjado. 60 unidades em tamanho natural. Molde do corpo do artista. Oficinas de carpintaria da Gulbenkian.
(ii) Domain Field (2003). Barras de ferro inoxidável. 4.76 x 4.76 mm. 287 esculturas, vários tamanhos, resultantes de moldes em gesso de habitantes de Newcastle-Gateshead com idades compreendidas entre os 2.5 anos e os 84 anos. Espaço (fabuloso) de exposições temporárias do Centro de Arte Moderna.
Outros sítios sobre Antony Gormley:
21st Century British Sculpture > Antony Gormley
Artcyclopedia > Antony Gormley
BBC > BBC Four > Audio Interviews > Antony Gormley
BALTIC > Summer 2003 Imagebank > Antony Gormley> Body and Fruit, 1993
Graeme Peacock > Photos > Angel of the North > Gateshead, Tyne & Wear, UK
A construção social do risco
ou socio(b)logando sobre uma exposição do escultor Anthony Gormley ("Mass and Empathy")
Nova versão, actualizada , em 26.09.2005
N(o) princípio do corpo
No princípio não era ainda o verbo.
O verbo virá depois.
Critical mass. Domain field.
O Anjo do Norte.
O corpo e a morte.
E outras ideias fortes
Esculpidas no gesso, no ferro, no aço ou no cimento.
No princípio era o corpo.
A imensa mole de corpos.
A mão.
O braço.
O teu corpo.
O braço como extensão do teu corpo.
O corpo ubíquo. Iníquo.
O corpo de pé.
De cócoras.
De joelhos.
Sentado.
Dobrado.
Deitado.
Despojado.
Amontoado.
Pendurado.
Dependurado.
Petrificado.
Fossilizado.
Destroçado.
A partir do teu corpo.
Da extensão do teu braço.
Marcas um círculo à tua volta.
Aí mesmo onde as pedras fizeram uma elipse e
Pousaram.
Na terra.
A cima da terra.
O teu corpo em molde de gesso.
Recuperas o teu corpo.
Molécula a molécula.
Devolves o teu genoma à terra.
Estás num caixão.
Um sarcófago.
Um cofre.
Sem olhos.
Estanque.
Um corpo à procura dum lugar para ser.
Um corpo.
Um braço.
Algo que é teu.
O braço do teu corpo.
Mas que te é estranho.
Familiarmente estranho.
Como os restos do cordão umbilical
Que te liga(m) à matriz original
De todas as coisas.
Na tua mão seguras
O epicentro do mundo.
Chamemos-lhe provisoriamente mundo.
Punhamo-lo entre parêntesis.
O mundo.
Entre parêntesis de arame farpado.
Porque no princípio era apenas o corpo
E a extensão do teu corpo.
E a violência do teu parto.
E o cordão umbilical que te liga à terra.
Mas isto não é um corpo.
É uma maçã, diz Magritte. Ou talvez não.
Apenas um poema em construção.
Um acto de criação.
A criação em acção.
Um muro liso e branco.
O muro. O fio de prumo.
O pêndulo. A corda. O cadafalso.
A linha do horizonte na vertical.
A luz ao fundo do túnel.
O fio de Ariane que te conduz
No labirinto.
Ou ao labirinto.
Se o em si existe
É esta porção de mundo
Que está ao alcance da tua mão.
Um círculo. A exacta circunferência
Desenhada pelo teu dedo
Na areia da praia onde arribaste.
Ou poderia ter sido o dedo do deus
De Miguel Ângelo.
Ou outra criatura. Ou outro criador.
O teu corpo supunha-o blindado.
Como um caixão de chumbo.
Um sarcófago.
Blindado mas oco como uma forma.
Sem olhos.
Vazio.
Mumificado.
Afinal, o teu corpo
É apenas um material de construção.
Um poema em construção.
Um projecto.
Com especificações técnicas como qualquer projecto.
E dentro do poema um coração
Onde se lê: Cuidado, frágil.
É a relação com os outros
Que importa agora reter.
A semelhança.
A dissemelhança.
É o relacional que dá sentido
À tua ubiquidade.
À tua iniquidade.
És velho e novo.
Alto e baixo.
Servo e senhor.
Objecto e sujeito.
Doente e terapeuta.
Masculino e feminino.
Escultor e esculpido.
Medium e antropólogo.
Construído e construtor.
Vítima e predador.
Fio e labirinto.
Perdido e achado.
Fóssil e paleontólogo.
Arte e artista.
Antony e Gormley.
És mais do que um corpo.
Mais do que um corpo na cidade.
És a própria cidade em construção.
A textura da cidade.
O sociograma.
Mais do que rélation, diria rapport.
Relação de força, tensão, stresse, strain.
Tenho dificuldade em explicar-te
Onde acaba o biológico
E onde começa o social.
A linha de risco.
O risco.
O existencial e o essencial.
O normal e o patológico.
O céu e o inferno.
O axiológico.
A axila.
A estrutura asilar.
O grand renfermement.
A salutogénese e a patogénese.
A expiação do pecado original.
O mal.
Pompeia e o Etna.
Hiroshima.
O absurdo.
A angústia à flor da pele.
O envelhecer.
A dor.
A raíz da dor.
A depressão.
O medo.
A morte e o morrer.
E sobretudo o poder.
Da vida e da morte.
O poder que não é coisa,
Atributo, categoria ou variável.
Mas relação.
Um construído.
Como o teu corpo.
A tua identidade.
A estratificação socioespacial do teu corpo.
O tempo e o lugar. A equidade. A bioética.
O corpo no labirinto.
Ao labirinto.
Como o poços dos negros.
Ou dos mouros.
Na minha Lisboa.
Quem disse que o mundo é
Injusto ou errado ?
Ou foi mal planeado ?
O problema não é de filosofia
Nem de risk assessment
Mas de engenharia (meta)física.
O stresse é uma força
Que aplicada sobre o aço do teu corpo
A deforma.
Mais: O stresse mata.
E depois há o corpo que suporta
O peso.
Do próprio corpo.
Dos outros corpos.
Do mundo.
Mais do que os teus 700 quilos de ferro forjado
É o insustentável peso do mundo
Que tu habitas mais o teu corpo.
E o teu frágil coração.
Julgava-o blindado, o teu corpo.
Mas não.
Há também, antes ou depois,
O corpo solidário.
A rede.
O projecto identitário.
O projéctil balístico.
O tiro tenso do arco.
O poema em construção.
O desastre humanitário.
O fio do labirinto de Ariane.
O estado totalitário.
O corpo em acção.
O futuro sempre precário.
O futuro sem futuro.
Mesmo Robinson Crusoe na tua ilha de arribação,
És um corpo com marcas indeléveis.
No teu invólucro de gesso
Vejo a marca do bisturi.
Do naufrágio.
Da Kalashnikov.
Do trabalho.
Da doença.
Da escrita.
Da escola.
Do código de Hamurabi.
Da guerra.
Da tatuagem.
Do sucesso.
Da formatação.
Do clã.
Do vulcão.
Do lamparã dos balantas,
O espanta-pardais.
Do genoma.
Da engenharia genética.
Da iatrogénse.
Do puro terror.
Do Génesis.
Da palavra de salvação.
Da bomba de Hiroshima.
Do desembarque nas praias da Normandia.
Do fado.
Da saudade da partida.
Do horóscopo.
Da viagem.
Da memória.
Da história.
Da tua história de vida.
Mercator, ergo pestiferus.
Corpo ambulante.
Desertor.
Militante.
Mercador.
Corsário.
Marinheiro.
Recrutador de soldados.
Hóspede e hospedeiro.
Enfim, livre.
Trazes das outras ilhas a peste.
A vida.
Nunca te reconheceria apenas pela cor dos teus olhos.
Furados.
Fundação Calouste Gulbenkian,
Museu de Arte Moderna,
Lisboa, 7 de Maio de 2004. Revisto e, 26 de Setembro de 2005.
Por ocasião de uma visita guiada à exposição "Mass and Empahy", de Antony Gormley, na companhia da Prof. Dra. Isabel Loureiro, do psiquiatra Dr. Luís Gamito e de dezasseis mestrand@s de saúde pública (7º Mestrado de Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública/Universidade Nova de Lisboa, 2003/2005)
Duas instalações de Antony Gormley (n. Londres, 1950):
(i) Critical Mass II (1998). Ferro forjado. 60 unidades em tamanho natural. Molde do corpo do artista. Oficinas de carpintaria da Gulbenkian.
(ii) Domain Field (2003). Barras de ferro inoxidável. 4.76 x 4.76 mm. 287 esculturas, vários tamanhos, resultantes de moldes em gesso de habitantes de Newcastle-Gateshead com idades compreendidas entre os 2.5 anos e os 84 anos. Espaço (fabuloso) de exposições temporárias do Centro de Arte Moderna.
Outros sítios sobre Antony Gormley:
21st Century British Sculpture > Antony Gormley
Artcyclopedia > Antony Gormley
BBC > BBC Four > Audio Interviews > Antony Gormley
BALTIC > Summer 2003 Imagebank > Antony Gormley> Body and Fruit, 1993
Graeme Peacock > Photos > Angel of the North > Gateshead, Tyne & Wear, UK
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Antony Gormley,
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corpo,
escultura,
risco
Blogantologia(s) II - (2): Poemombro ou um ombro amigo
Originalmente publicado como post de 6 Maio 2004 >
Blogantologia(s) - X: O poemombro
Poemombro ou um ombro amigo
Às vezes a gente pensa
que o mundo vai desabar.
Às vezes a gente julga
que o céu vai cair
em cima das nossas cabeças.
Às vezes a gente deixa de ver.
E de sentir. E até de pensar.
Às vezes a gente vê que não há luz.
Que estamos num túnel.
Que não há luz ao fundo do túnel.
Que há alguém que te diz:
- É o fim! Acabou-se!
Ou então:
- É bom que esqueças,
Desiste,
Parte para outra!
Às vezes a gente tem dúvidas.
E pergunta se vale a pena.
Se valeu a pena.
Às vezes a gente até duvida
do amor e da amizade
dos que nos amam e gostam de nós.
Às vezes a coisa parece que está feia.
Às vezes parece que tudo é feio.
Que a coisa está preta e feia.
A vida, o país, o mundo à nossa volta.
Os outros.
O marido ou a mulher.
Os filhos
Os amigos.
Os colegas de trabalho.
Os vizinhos.
Os concidadãos.
Os homens e as mulheres do meu país.
A humanidade,
por fim globalizada.
Às vezes dá-te uma enorme vontade de chorar.
E de parar no caminho.
E de chorar numa pedra do caminho.
Às vezes a gente quer desistir de caminhar.
A gente sente que lhe faltam as forças.
E que já que foi longe de mais.
Que não nascemos para caminhantes.
Que já fizemos a nossa parte.
Que já cumprimos o nosso papel.
Que as pernas estão cansadas.
As pernas. O corpo. A alma.
Os músculos. Os ossos.
Que andamos a caminhar há muito tempo.
Que já demos a volta ao mundo
não sei quantas vezes.
Às vezes a gente apercebe-se
Que tem uma enorme vontade de chorar.
Mas que não tem lágrimas para o fazer.
Não tem sequer forças para o fazer.
E é então que nos dá uma raiva danada.
Telúrica. Fulminante. Brutal.
Uma raiva de vulcão.
E descobrimos o terrível vulcão que há em nós.
E a gente, de repente,
dá de novo à chave de ignição.
... E retoma o caminho.
Querid@ amig@:
Eu sei que não podemos competir com os vulcões.
Que só explodem de mil em mil anos.
Ou de cem mil em cem mil, tanto faz.
E que são uma força bruta da natureza.
Brutal. Fulminante. Telúrica.
Mas temos o direito de explodir.
De dizer o que nos vai na alma.
Temos o direito ao nosso vulcão.
Tu tens direito ao teu vulcão.
Tens direito mesmo ao teu vulcãozinho.
O direito de mostrar o que te dói
no corpo e na alma.
De chorar. De chorar de raiva.
Ou mesmo baixinho.
A única diferença,
além da escala de tempo,
é que os vulcões não têm uma ombro amigo.
Para chorar.
Para encostar a cabeça e chorar.
No dia dos teus anos, como hoje,
Ou em qualquer outro dia da semana.
Em qualquer outro dia do ano.
Sempre que te apetecer.
Sempre que te der raiva de chorar.
Se @s amig@s têm algum préstimo
É justamente para saber ouvir.
Ouvir, escutar, entender
Mais do que falar, analisar ou compreender.
Para estar contigo.
Simplesmente para estar ao pé de ti.
Ou para te segredar ao ouvido
Qualquer coisa que te faça sorrir.
Ao ouvido, baixinho.
E sobretudo para te oferecer
o ombro amigo.
Pode até ter pouco préstimo
Mas sempre é mais macio e quente
Do que a pedra do caminho.
Lisboa, 29 de Abril de 2004 / Revisto em 26 de Setembro de 2005
PS - Um (pre)texto que serviu de prenda de aniversário para uma amiga, a Matilde, que fazia anos neste dia e que estava a precisar de um ombro amigo.
Do nosso ombro amigo. Luís e Alice.
Blogantologia(s) - X: O poemombro
Poemombro ou um ombro amigo
Às vezes a gente pensa
que o mundo vai desabar.
Às vezes a gente julga
que o céu vai cair
em cima das nossas cabeças.
Às vezes a gente deixa de ver.
E de sentir. E até de pensar.
Às vezes a gente vê que não há luz.
Que estamos num túnel.
Que não há luz ao fundo do túnel.
Que há alguém que te diz:
- É o fim! Acabou-se!
Ou então:
- É bom que esqueças,
Desiste,
Parte para outra!
Às vezes a gente tem dúvidas.
E pergunta se vale a pena.
Se valeu a pena.
Às vezes a gente até duvida
do amor e da amizade
dos que nos amam e gostam de nós.
Às vezes a coisa parece que está feia.
Às vezes parece que tudo é feio.
Que a coisa está preta e feia.
A vida, o país, o mundo à nossa volta.
Os outros.
O marido ou a mulher.
Os filhos
Os amigos.
Os colegas de trabalho.
Os vizinhos.
Os concidadãos.
Os homens e as mulheres do meu país.
A humanidade,
por fim globalizada.
Às vezes dá-te uma enorme vontade de chorar.
E de parar no caminho.
E de chorar numa pedra do caminho.
Às vezes a gente quer desistir de caminhar.
A gente sente que lhe faltam as forças.
E que já que foi longe de mais.
Que não nascemos para caminhantes.
Que já fizemos a nossa parte.
Que já cumprimos o nosso papel.
Que as pernas estão cansadas.
As pernas. O corpo. A alma.
Os músculos. Os ossos.
Que andamos a caminhar há muito tempo.
Que já demos a volta ao mundo
não sei quantas vezes.
Às vezes a gente apercebe-se
Que tem uma enorme vontade de chorar.
Mas que não tem lágrimas para o fazer.
Não tem sequer forças para o fazer.
E é então que nos dá uma raiva danada.
Telúrica. Fulminante. Brutal.
Uma raiva de vulcão.
E descobrimos o terrível vulcão que há em nós.
E a gente, de repente,
dá de novo à chave de ignição.
... E retoma o caminho.
Querid@ amig@:
Eu sei que não podemos competir com os vulcões.
Que só explodem de mil em mil anos.
Ou de cem mil em cem mil, tanto faz.
E que são uma força bruta da natureza.
Brutal. Fulminante. Telúrica.
Mas temos o direito de explodir.
De dizer o que nos vai na alma.
Temos o direito ao nosso vulcão.
Tu tens direito ao teu vulcão.
Tens direito mesmo ao teu vulcãozinho.
O direito de mostrar o que te dói
no corpo e na alma.
De chorar. De chorar de raiva.
Ou mesmo baixinho.
A única diferença,
além da escala de tempo,
é que os vulcões não têm uma ombro amigo.
Para chorar.
Para encostar a cabeça e chorar.
No dia dos teus anos, como hoje,
Ou em qualquer outro dia da semana.
Em qualquer outro dia do ano.
Sempre que te apetecer.
Sempre que te der raiva de chorar.
Se @s amig@s têm algum préstimo
É justamente para saber ouvir.
Ouvir, escutar, entender
Mais do que falar, analisar ou compreender.
Para estar contigo.
Simplesmente para estar ao pé de ti.
Ou para te segredar ao ouvido
Qualquer coisa que te faça sorrir.
Ao ouvido, baixinho.
E sobretudo para te oferecer
o ombro amigo.
Pode até ter pouco préstimo
Mas sempre é mais macio e quente
Do que a pedra do caminho.
Lisboa, 29 de Abril de 2004 / Revisto em 26 de Setembro de 2005
PS - Um (pre)texto que serviu de prenda de aniversário para uma amiga, a Matilde, que fazia anos neste dia e que estava a precisar de um ombro amigo.
Do nosso ombro amigo. Luís e Alice.
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quinta-feira, setembro 22, 2005
Blogantologia(s) II - (1): O paraíso terrestre
Um dia as pombas da paz do Picasso
Repousarão nos museus da guerra.
E até as moscas,
Regressadas dos campos de batalha,
Ficarão espetadas em alfinetes
Nos mostruários.
As moscas.
Exangues.
E a merda das moscas.
Elevadas à categoria
De artefactos culturais.
Ouvi um coronel, veterano da guerra fria, dizer:
- Mais vale uma mosca na sopa quente
Do que um míssil na cozinha.Respondi-lhe, com uma frase de um general
(Que é mais ovoestrelado do que um coronel):
- A guerra não é mais do que
A continuação da política de Estado
Por outros meios.
Nunca cheguei a perceber
Por que é que a verdadeira felicidade
Estava nos detalhes.
Faltava-me o todo
Dos detalhes.
Que é sempre maior do que a soma
Dos detalhes.
Em Bambadinca.
Onde milhões de insectos caíam na sopa.
Fria.
Posso não perceber de epistemologia,
Mas a única filosofia de vida
Que eu ouvi,
Foi na tropa,
E era fascista
(Um epíteto que eu agora
Raramente oiço
Nem uso, por pudor).
Começava em merda e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
Como qualquer vulgar detergente
De cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
É fazendo merda, que tu aprendes;
E sobretudo nunca te esqueças
Que é com a merda dos grandes,
Que os pequenos se afogam.
Na tropa nunca soube
Onde ficava o norte.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Prometeram-me depois um mundo melhor:
Não me disseram quando
Nem a que preço.
Descobri que era tarde
E caríssimo.
- Ter a consciência limpa, meu ?!
- É ter a memória com as baterias em baixo.
- Por favor avisem-me,
Quando elas estiverem a cinco por cento.
Procuro uma mão
Disposta a ajudar
O meu braço.
Esquerdo.
Decepado.
Pago com o American Express Card.
Golden, claro!
Pequenos anúncios do meu jornal diário.
Morrer é quando chegas um beco sem saída
E não tens um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
Na Ponta do Inglês,
Em Guileje
Ou em Banjara,
Tanto faz.
Quando se é tuga ou português.
A vida com a morte se paga.
Há sempre moscas à espera
Do teu cadáver.
E jagudis.
E formigas bagabaga.
- A prática, dizem-te, leva à perfeição,
Excepto no jogo da roleta russa.
- Por isso tu vivias cada dia, meu,
Como se fosse
O único que te restasse
O primeiro, o original, o irrepetível.
Não sei se gostarias de ter conhecido
Adão e Eva
No Paraíso.
Mas só agora reparo,
Há qualquer coisa de errado neste filme.
Repousarão nos museus da guerra.
E até as moscas,
Regressadas dos campos de batalha,
Ficarão espetadas em alfinetes
Nos mostruários.
As moscas.
Exangues.
E a merda das moscas.
Elevadas à categoria
De artefactos culturais.
Ouvi um coronel, veterano da guerra fria, dizer:
- Mais vale uma mosca na sopa quente
Do que um míssil na cozinha.Respondi-lhe, com uma frase de um general
(Que é mais ovoestrelado do que um coronel):
- A guerra não é mais do que
A continuação da política de Estado
Por outros meios.
Nunca cheguei a perceber
Por que é que a verdadeira felicidade
Estava nos detalhes.
Faltava-me o todo
Dos detalhes.
Que é sempre maior do que a soma
Dos detalhes.
Em Bambadinca.
Onde milhões de insectos caíam na sopa.
Fria.
Posso não perceber de epistemologia,
Mas a única filosofia de vida
Que eu ouvi,
Foi na tropa,
E era fascista
(Um epíteto que eu agora
Raramente oiço
Nem uso, por pudor).
Começava em merda e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
Como qualquer vulgar detergente
De cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
É fazendo merda, que tu aprendes;
E sobretudo nunca te esqueças
Que é com a merda dos grandes,
Que os pequenos se afogam.
Na tropa nunca soube
Onde ficava o norte.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Prometeram-me depois um mundo melhor:
Não me disseram quando
Nem a que preço.
Descobri que era tarde
E caríssimo.
- Ter a consciência limpa, meu ?!
- É ter a memória com as baterias em baixo.
- Por favor avisem-me,
Quando elas estiverem a cinco por cento.
Procuro uma mão
Disposta a ajudar
O meu braço.
Esquerdo.
Decepado.
Pago com o American Express Card.
Golden, claro!
Pequenos anúncios do meu jornal diário.
Morrer é quando chegas um beco sem saída
E não tens um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
Na Ponta do Inglês,
Em Guileje
Ou em Banjara,
Tanto faz.
Quando se é tuga ou português.
A vida com a morte se paga.
Há sempre moscas à espera
Do teu cadáver.
E jagudis.
E formigas bagabaga.
- A prática, dizem-te, leva à perfeição,
Excepto no jogo da roleta russa.
- Por isso tu vivias cada dia, meu,
Como se fosse
O único que te restasse
O primeiro, o original, o irrepetível.
Não sei se gostarias de ter conhecido
Adão e Eva
No Paraíso.
Mas só agora reparo,
Há qualquer coisa de errado neste filme.
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